Tumor

São dois cirurgiões na sala de operações. A cirurgiã principal vem acompanhando o paciente periodicamente em seu consultório foi quem indicou a necessidade da cirurgia. O residente, com quem conversa sobre o caso e a quem explica as complicações, implicações e indicações. Além deles, há anestesista, instrumentista, assistentes e paciente.

Pela conversa da cirurgiã com seu residente, a operação não parece complicada, ao menos para alguém que vive disso. Um cirurgião (cirurgiã) cardíaco. Quantos corações ele opera por ano? Quarenta? Cem? Duzentos? Não faço idéia. Mas que seja uma dúzia, ainda assim deve haver procedimentos que lhe sejam corriqueiros e outros que demandem mais cuidado e estudo por não serem tão familiares ou por serem difíceis mesmo.

Este parece ser um procedimento desses mais corriqueiros e que não demandam técnica rara. O paciente está na casa dos trinta, aparenta boa forma física, saúde, mas tem a condição é grave. Há algo no coração, um tumor ou coisa que o valha. Algo muito ruim que lhe compromete as funções com agressividade e que os médicos por experiência sabem não valer a pena tentar identificar antes de extirpar.

A medicina avançou a esse ponto em que sabe inúteis seus diagnósticos frente à urgência por ação e resultado. Não tanto quanto à correção de seus procedimentos, é certo. Ainda há muita discussão sobre qual o correto tratamento para cada caso e se tais e tais tratamentos mais ajudam ou mais atrapalham e sobre onde residem as verdadeiras causas de alguns males. Ao menos há estratégias, ainda que sejam orientadas por estatísticas. Hoje opera-se o coração a este tipo de paciente. Os antigos operariam-lhe o fígado. Talvez ajudasse também. Talvez os certos fossem eles. Talvez esses pacientes bebessem tanto para esquecer da doença que matassem o fígado, por isso os médicos achassem que lidavam com doença hepática. Talvez de tanto chorarem, no futuro, outra geração de médicos, creia ser doença oftalmológica. Riem os médicos. O paciente sedado, totalmente sedado graças a D”s, está aliviado de não ouvir-lhes as galhofas.

Quem nunca viu uma cirurgia destas, costuma imaginar os médicos como compenetrados relojoeiros, com lentes, pinças e outros equipamentos todos da mais alta precisão, trabalhando microscópicamente como quem escreve um nome num grão de arroz. Quem vê pela primeira vez, não consegue evitar de se impressionar com as serras de marcenaria, algo que parece morsa mas que força ao contrário, presilhas, o tamanho das lâminas, a força, o tranco, para se separar ossos e abrir o peito do paciente, o tamanho das toalhas que secam o suor que escorre da testa da cirurgiã, as piadas e esforço de oficina. Não é coisa para qualquer um, para qualquer médico. Não basta estudar e treinar. Precisa ter força. Força e estômago. Não é fácil abrir o peito de alguém. Quase tão difícil quanto — quem já tentou, imagine — abrir o próprio peito, o coração, a outra pessoal, nem digo “a si mesmo”, porque isso todos sabemos ser impossível.

As cicatrizes que ficam dessas cirurgias são sempre medonhas. Tortas, compridas, largas, manchadas. Impressionam. Quem as vê critica. Pensa serem resultado de relaxo. Não considera que o cru peito humano é mais forte e frágil que o de uma ave tenra a custo destrinchada e servida à família no almoço do feriado. A marca indisfarçável do peito violado oprime o amante mais do que, na literatura romântica, a virgindade perdida.

Conta a cirurgiã, como exemplo, de ter conhecido uma garota linda, corpo maravilhoso, perfeito sob o vestido de crochê canelado, sem decote, gola careca, muito justo. Percebia-se todo o desenho do seio, a marca do mamilo, o contorno e a textura da auréola. A calcinha sem costura que não marcava a pele firme do quadril e deixava perceber o formato do rego e o volume da virilha. Linda e com o corpo perfeito. Mas, após abrir-lhe o zíper das costas que lhe acompanhava toda a coluna cervical, o vestido desceu aos poucos como a cortina que se abre à frente do palco mostrando, entre os dois peitos que davam água na boca, a cicatriz. Pouco menos de dois palmos, de altura, quase um dedo de largura, pálida, mal desenhada. “É impressionante demais até para nós que estamos acostumados. Ainda bem que ela se ofendeu com minha cara, broxou e foi embora. Eu não teria presença de espírito para continuar. Imagina para quem nunca viu.”

Essa frase não saiu bem do jeito que ela pensava. Ela (pensando bem) se arrependeria depois. Falou correndo pensar. Ficou uma frase simplista assim mesmo, porque ela se afobou com o sangue que juntava no peito aberto. Um corte desses no peito verte bastante sangue. É muito esforço (e desespero) para manter limpo. Estancada a hemorragia, ou apenas sugado o sangue, mesmo os médicos nunca têm certeza, o coração está exposto.

A equipe toda olha. É uma reverência ritual que não conseguem evitar. Um órgão que trabalha tanto e representa tanto mais. “Está aqui, é bem grande mesmo.” A cirurgiã apresentou a doença que aparecia como um grande encrustado mais ou menos ao meio do órgão e que se espalhava em tentáculos que serviam de correntes ao seu redor. Além da ferida, por si só cruel e profunda, estranguláva-o.

O residente tem receio de ser chamado a intervir. “Você tira?”

A cirurgiã não pensava em deixar-lhe o crédito. Para a remoção, usou, um alicate, lâminas e um instrumento que, de tão grande, parecia uma ferramenta: um podão, a tesoura de podar roseiras, ou uma daquelas de destrinchar frango. Precisou de mais de uma hora e meia de muita força e esforço e de pouco cuidado para não machucar o paciente, foi violenta mesmo, bruta. Suava. Ainda mais quando, estressada, achou que ele merecia.

Quando tirou aquela massa estranha, de cor inorgânica mas humana, parecida com  uma pedra de onde saíam galhos retorcidos de roseira ou uma trepadeira trançada cheia de espinhos, olhou-a com respeito e bufou, livre enfim da trabalheira que teve por conta de um retardado que não se cuida.

Jogou a massa, com nojo, na bacia de metal que lhe ofereceram. Dá o diagnóstico: “Amor daninho. Era bem grande esse. Não sei como não o matou.”

O residente achou-se na obrigação de fazer algo: “Fecho?”

“Pode fechar”

“O rombo que ficou é grande. Colocamos algo nele?”

“Não faz caso. Só estanca e cauteriza. Esses tipo sempre reincidem. Antes de ficar bom, pega outro igual, talvez pior.”

 

Maze

“Sonhar acordado” é uma expressão curiosa, mas que parece mesmo se aplicar bem para aquelas situações em que estamos avoados (outra expressão curiosa) pensando na morte da bezerra (outra). Como quando dormimos, esses sonhos às vezes calham ser pesadelos, manifestações de preocupações, inquietações, lembranças mal enterradas de casos mal resolvidos (desculpe-me o pleonasmo).

Terreno fértil para sonhar acordado, voltava o sujeito para casa. Aquele caminho monótono de todo dia. O peso da nuvem de entulho sobre a cabeça escurece o céu e arca o pescoço, força a vista para baixo. Experimente qualquer dias destes e verá, perceberá, que dá para andar quilômetros assim, qualquer pessoa, quando automatiza os seus caminhos rotineiros, quando não presta mais atenção e põe o pé na rua já a pensar em uma maneira de variar, de mudar, de escapar para um mundo paralelo onde ficasse sentado no banco da praça e o mundo se metamorfoseasse a seu redor tornando-se a feição da vontade do momento. A pessoa anda, pensando, cabela baixa sem perceber as pedras chutadas, olhar ao longe sem atentar às ruas atravessadas, atenção perdida que não nota os encontrões evitados.

Foi voltando nessa perdição de nuvens de sonhos, conversas de louco consigo mesmo e rabiscos num quadro branco que ele nem percebe que pendurou à frente imaginária de suas vistas, que o sujeito, de repente, se viu num labirinto. Ele não consegue se lembrar de como chegou ali, mas de alguma forma sabe (afinal de contas, voltava pelo mesmo monótono caminho de todos os dias). Tanto sabe que, logo que levantou os olhos e viu algo diferente que não consegue descrever, percebeu que estava num labirinto, um maze, desses comuns de se ver em jardins de mansões e palácios em filmes, desenhos animados e games. Por menos de segundo, viu-se pelos olhos do iluminado, voltando ao hotel com o machado na mão. Depois pelos de um Pac Man sem bolinhas para recolher enquanto fugisse dos fantasmas.

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Olha para as paredes, iluminadas de bege pelo sol e pela lua do já finalzinho de tarde. Nem precisa prestar atenção à sua volta e já se desenharam em sua cabeça imagens e imagens de todos os labirintos de verdade e de ficção que já havia visto antes. Completou-as com os detalhes dos inexistente que achou que mereciam existir pelo requinte da elegância simplória que lhes reconhecia e também pelos que julgava serem impossíveis não existir, posto que de sua existência dependia toda a coerência do universo tal como conhecido.

As paredes são altas, uns bons metros de altura, exageradas para os labirintos de jardim de filmes, para alguns de verdade onde já esteve, onde já brincou. Logo se lembrou do de uma cidade que visitou no sul. Estreito e, ainda por cima, mal aparado. Não dava para andar sem esbarrar nas paredes dos dois lados com os ombros. A forma circular, o tinha feito compará-lo a um rocambole. Este não. Os corredores muito largos e as paredes altas, em vez de agigantarem o labirinto, apequenaram-lhe. A ele que, tivesse encontrado uma fresta, fugiria dali como rato ou barata. Mas não viu fresta, ao menos não suficiente para que passasse. Este labirinto devia ter sido construído para impedir a fuga de ratos de seu porte.

Procurou uma referência no alto. Foi então que as dimensões realmente o impressionaram. Do céu, só se via o azul pintado de poluição. Tanto o sol que se punha quanto a lua que o refletia, estavam tão baixos que não eram visíveis. As sombras eram tão longas que cobriam todo chão e também as partes mais baixas das paredes, que lhe estavam ao alcance. A luz, fraca e fria, parda, não era suficiente para que sua espinha não gelasse junto com a noite que ia chegando. Ainda assim, não havia no céu nenhuma estrela, nenhuma nuvem ou pássaro que pudesse usar como guia.

Lembrou-se do conselho de, para sair de um labirinto fechado, coberto, seguir sempre a mesma parede, dobrar as esquinas sempre na mesma direção, e só dar meia-volta se chegar num beco sem saída, ainda assim, seguindo a mesma parede.

Pôs a mão na parede à sua direita e a seguiu. Dobrou à direita na primeira esquina e em todas as outras em que pode escolher, não tirou a mão da parede, metódico como deve ser quem precisa acertar. No receio de se confundir e piorar a situação, andou de mãos dadas com a parede, com o próprio labirinto. Andou bastante, até as pernas se cansarem quase tanto quanto a cabeça, para se tocar de que essa parede não se conectava a nenhuma outra, como um biombo, que não levava à saída. Que ele andava em círculos e que já havia voltado umas quatro ou cinco vezes ao mesmo lugar.

À sua volta, as fachadas das paredes eram tão monotonamente parecidas que ele nem conseguiria dizer como percebeu que o lugar era o mesmo, que andava em círculos, mas percebeu ou, talvez por medo de assumir de vez que estava perdido, aceitou. Já havia voltado várias vezes àquela rua igual à outras, àquela parede como as outras, pelo mesmo caminho, pela mesma parede, pelas mesmas esquinas, sem saber como sabia isso. Como se reconhecesse o calor deixado por sua mão direita quando passou por ali antes. Como se desconfiasse de nunca ter saído do lugar.

Tentou a mesma estratégia com a mão esquerda na parede à sua esquerda, dobrando sempre à esquerda, com cuidado de não desgrudar dela, já estava um começou escuro de noite, pintado de azul petróleo como em desenho de criança. Novamente, mas agora já mais logo, percebeu que andava em círculos.
torchinamazePerplexo, é assim que se diz o confuso orgulhoso, parou olhando para o alto das paredes a admirar sua perdição. Nelas enfim reconheceu seu bairro, as fachadas dos prédios de seu quarteirão.

Deu a volta ao quarteirão procurando sua rua, seu prédio. Deu duas voltas. Em nenhuma encontrou sua rua, menos ainda seu prédio. Havia algo de deformado. Faltava, ou ele é quem não percebia, um dos lados do quarteirão. O seu lado.

Pensou em procurar por um vizinho, ela padaria, pela farmácia, alguém ou algum lugar onde pedir ajuda. À porta da farmácia, olha para dentro. Não havia. Não havia dentro, não havia como entrar. A frente era chapada, sem relevo, sem entrada. Não havia reentrâncias ou relevo nos muros, ou beiradas, para subir e pular para dentro de algum. Não havia quem chamar. As fachadas, os muros, as grades e portões, eram imagens chapadas, projetadas, como fotos, como slides. Pensou daqueles livros infantis em que você monta um pedaço de uma cidade recortando e dobrando, e colando, edifícios de papel, hospital, igreja, escola, inabitados,  com portas e campainhas chapados que não adiantam em nada. Lembrou-se de uma vez em que, criança, montou uma dessas sentado no coberto da área de serviço e viu uma formiga subir no mapa e caminhar pela rua, visitante, única alma viva em sua cidade-fantasma. Imaginou-se formiga desorientada numa maquete de bairro feita de papel e cartolina, decorada com recortes de revistas e canetinha hidrográfica. Bairro de predinhos baixos que sobem muito alto, grudados, como um muro de arranha-céus geminados.

Não sentia o frio da noite escura. Céu preto sem estrelas nem lua. Os prédios tinham a iluminação esperada dos postes a esta hora da noite, embora não houvesse postes. A luz não tinha de onde vir. O vento, o frio, tinham, mas não vinham. Formiga sente frio? Talvez fosse isso mesmo. E a iluminação viesse de fora dos limites do labirinto, de alguma lâmpada ou abajur da casa do menino que brincava.

Já estava cansado, cansaço de saco cheio que faz a cabeça doer.  Cansaço de não ver saída, de acreditar numa metáfora absurda, embora tenha certeza de que alguma saída existe, e de que é óbvia, e de que somente ele que está dentro não a encontra. Imagina a criança olhando de cima aquela maquete já enfastiada da brincadeira. Olhando o labirinto numa revista de atividades, dessas bem primárias que se compra em bancas de jornal. Olhando-o com um lápis colorido na mão e se achando o máximo por resolvê-lo tão facilmente. A criança marca o caminho com um risco todo torto e bem forte do lápis vermelho. Inconscientemente, ele procura o risco e não o encontra. Admira-se de ter perdido a noção e tentado salvar-se pelo que imaginou.

Imaginou mais. Os donos do castelo que tem o maze no jardim. Seus convidados em casais brincando de esconder para namorar escondido nos caminhos. O adolescente que se preocupa mais em fugir dos caçadores e sobreviver do que em passar de fase no videogame no fliperama da João Batista. Todos a olhar de cima, a verem ele e a saída que ele não via.

Mais cansado ainda por estar cansado, sabia que não ia conseguir. Olhou para os lados, para cima, procurando novidade. Uma informação nova que lhe ajudasse. Não achou, mas só se desesperou mesmo, e desatou a chorar, quando percebeu que não tinha mais nada que pudesse fazer além de se comportar como se ainda tivesse esperança.

Baile de Máscaras

Chegando ao baile, é hora de pôr a máscara. Coisa ridícula que eu vinha escondendo no bolso interno do paletó. Máscara de material sintético preto, macio, parecido com couro, cheia de filigranas feitas com strass, miçangas, paetês, lantejoulas, purpurina, essas coisas que as professoras do primário nos dizem para usar como enfeites em coisas que elas mesmas não teriam coragem de vestir. Eu rio, mal humor meu. Na verdade, apenas me sinto ridículo em entrar fantasiado numa festa. Espero que o taxista não me veja vestindo-a. Espero também que ninguém lá de dentro veja. Prefiro que não me reconheçam e não saibam que sou eu aqui pagando mico como todos os outros convidados.

Me parece tão antiquado isso. Cafona. Baile de máscaras. Todos máscarados como no cartaz daquele filme dos tons de cinzas, ou pior, como no do Kubrick. Implico com essa mania de quererem mandar nas roupas dos convidados. Todos os homens de camisas brancas e ternos pretos. Todas as mulheres de vestidos pretos. Idéia da aniversariante.

Devo ser o último a chegar. Fingi ter algo para fazer no trabalho e procurei chegar quando achei que a festa se encaminhava para o bolo e seus parabéns. Já não há mesmo mais nada salgado onde devia ser a mesa do buffet. Alguns garçons e garçonetes, também mascarados, mas de ternos e vestidos brancos, retiram bandejas vazias e limpam migalhas que me parecem ser de massa podre, de petit fours talvez.

Outra coisa que me incomoda nessas festas é não conseguir conversar. O ambiente está muito barulhento. Não dá para saber o que toca o conjunto no tablado do lado oposto ao da entrada. As pessoas falam muito, agitadas, sem que seja possível imaginar quem fala com quem. Parece não haver contato visual que dure mais do que um ou dois segundos. A atenção de quem fala, e todos falam, se volta de um lado para outro, em movimentos violentos de pescoço, que me lembram os de galinhas ciscando. Assim todos falam e não sei se tem alguém a ouvir.

De cada lado da entrada, há uma escada larga de pedra que parece mármore de pia de cozinha. Dão para o balcão alto que circunda o salão e que parece vazio. Eu subo a da esquerda, mais para fugir dos olhos que chacoalham de um lado para o outro como  se fossem chicotes, do que do barulho que, de tão alto, deixa tonto. Os olhares conseguem ser mais altos e mais estonteantes ainda.

O balcão não está realmente vazio. Ele tem vários frisos onde alguns casais e outras combinações com mais ou menos pessoas tentam focar a atenção numa conversa mas acabam todos mudos procurando atividade que os deixe menos encabulados.

Vou até o final do balcão, sobre a quina do tablado, sem encontrar um friso vazio ou um banco. Mas é um lugar onde fico razoavelmente escondido. Na beirada da mureta, se fôr preciso, com um passo e meio para trás, fujo do olhar de alguém que esteja no térreo. Uma coluna que vai do chão ao teto, enfeitada com uma cortina de camurça cor de vinho, impede que outras pessoas do balcão me vejam.

Toca um sino ou tambor várias vezes. O barulho me lembra um prato bem pesado de bateria. A aniversariante aparece no meio dos convidados e anuncia uma valsa e o brinde usando a mesma as mesmas palavras da última miss universo ao receber sua coroa.

Todos recebem taças de champanhe, mesmo eu. O garçom parece ter-me espreitado desde que cheguei para ter certeza de que eu não fugiria do ritual. Em parte fugi. Parece que somos em número ímpar e, escondido que estava fiquei sem par para a valsa.

Salvo, de minha posição de vigia, assisto os casais rodopiarem se trombando ao som de um clichê. Me parecem crianças brincando em gangorras ou balanços, exceto que crianças não seguem regras e ali todos acompanham estritamente o roteiro de seus papéis como se tivessem medo de serem repreendidos por quem os assistisse ou dirigisse. Assistindo, acho que sou só eu.

A música termina abrupta, sem aquele toque retumbante que costumam ter as valsas ao final. Me lembro de como a música terminava ao levantarmos a agulha da vitrola e é curioso que a banda tenha soado assim. Então, o brinde. A aniversariante diz que todos tirem suas máscaras. Demoro a tirar a minha, meio pela timidez de me revelar a quem talvez me observasse ali isolado, meio também por, desconectado do ritual, demorar a captar a ordem. Os outros tiram as suas num movimento extático que parece único, sincronizado, enquanto eu ainda fecho os dedos pegando a minha.

Máscaras fora, me assusto, o coração parece que engasga e sei que fico branco. Ninguém mais tem rosto. Nem olhos, nem boca ou narinas, como se eles houvessem saído com as máscaras. Ficam só a protuberância do nariz e as depressões fechadas onde me parece que deveriam estar os olhos. Seguram erguidas as taças esperando a ordem para gritar um viva ou coisa do tipo e beber a champanhe que já amornou, o que de fato não conseguirão.

Com a iniciativa já tomada antes do susto, nem imagino frear o movimento, tiro minha máscara também. Então não consigo ver mais nada ou mesmo tentar falar, o que já não me admira.

Aí sim, já consciente, coloco-a de volta e vejo todos parados nas mesmas posições. Parece um quadro surrealista ou foto de uma cena de balé moderno. Sorrio, último sorriso, arregalando os olhos para guardar bem nítida a imagem que deveria me parecer bizarra mas que, em vez disso, acho linda. Levantando a taça em brinde, como todos os outros, e tiro novamente a máscara.

Bolo

Fiquei pouco tempo na faculdade de física. Logo me decepcionei desgostoso com ela.

Do Instituto de Física, uma coisa de que me lembro foi de me falarem sobre a dificuldade de descobrir a idade das estrelas. Foram longas aulas chatas sobre isso que só agradaram aos que achavam que deviam gostar delas para honrar suas camas de nerds).

Gosto muito de olhar o céu em noites claras e olhá-las, por minutos a fio. Claro que tenho minhas preferidas.

Uma em particular tem iluminado meu final de dia. Tem um brilho bonito e feliz que eu não entendo mas me distrai dos pensamentos com que ruins que os adultos grilados têm de lidar durante os dias (e as noites).

A idade, imagino, basta alcançá-la para pergintar. Por outro lado, conhecer como consegue brilhar, de onde veio, o que se passa a seu redor, continua um mistério, como é com todas as coisas bonitas que gostaríamos de entender.

Ainda assim, mais humano e, creio eu, até poético, é podermos dar-lhe uma data de aniversário para acender uma vela sobre um pedaço de um delicioso bolo de chocolate que ela nunca comerá (rs) e cantar parabéns.

Listas

“E a mina da recepção?”
“E aquela mais próxima do elevador?”
“E a secretária de fulano?”
“E aquela que veio falar contigo hoje de manhã?”

Não chegava a ser um interrogatório porque ele também respondia às perguntas. Era o Antônio comparando meu gosto por mulheres com o dele. A história começou com outra das constante acusações dele de que eu não gosto de mulheres bonitas e tenho queda pelas muito zoadas.

Era hora do almoço e a Lili sentou ao nosso lado e pode pegar boa parte da conversa. “E eu?” Antônio olhou-a com receio, mas eu, Joselito, o instiguei a continuar.

“Lili não conta porque está ouvindo e isso influencia a resposta. E a do caixa do restaurante?”

“A da primeira mesa junto à porta?”

Ao final, Antônio se disse surpreso. Nossas listas eram quase idênticas, guardadas poucas divergências inconciliáveis. “Poxa, achei que você fosse um total cata-bagulho! Nossos gostos são quase iguais!” E, antes desse comentário, eu achei que ele fosse mais elegante do que eu.

Lili retrucou de pronto, antes que eu concordasse com ele (e concordaria).

“Os gostos de vocês são totalmente diferentes. Olhem as diferenças nas listas e as caras e comentários que vocês faziam para cada nome. Você gosta de mulheres bonitas, quanto mais loira e mais magra mais entusiasmado fica. Portuga gosta das simpáticas e fica mais entusiasmado com as que mais contato tem com ele.”

O comentário estendeu o almoço e o café dos três. Foi assunto ainda algumas vezes. Na hora senti um orgulho de ser diferente, de valorizar algo além da beleza. Até hoje me lembro. Mas hoje uma dúvida me bateu e reflito algumas coisas. A pouca diferença das listas. Será que, suponho, nós três, embora valorizemos coisas diferentes não confundimos várias vezes beleza e simpatia? Não serão dois conceitos com áreas cinzas comuns? Sou mais fútil do que pensei e ele menos?

Mas, afinal, continuo gostando do que gosto e preferindo quem prefiro, sem pensar porquê. Ao menos até virar de novo assunto de conversa de desocupados.

Stop Whispering

Me lembro de muitos sonhos recorrentes que tenho desde criança.

Alguns são assustadores, mas a maioria é nonsense como o do deserto de areia alaranjada (que parece a Farinha Láctea da Nestlé que as mães usavam para fazer mingau). Eu ando quilômetros pelo deserto, beirando um despenhadeiro (um despenhadeiro na areia??!?!) até o supermercado para comprar papel higiênico. Chegando lá, as famosas pirâmides de Gizé são na verdade pilhas de papel higiênico, daquele vermelho grosso que as pessoas comparam a lixa, e a esfinge é um leão de chácara jogado preguiçoso a um canto, quase dormindo, tomando conta para que os fregueses não roubem nada. Para a pirâmide não desmoronar, eu tenho de escalá-la e pegar os rolos mais do alto. Na subida, alguns se soltam e rolam pirâmide abaixo. Me sinto um Indiana Jones. Chego ao topo, me sento, pego o primeiro rolo, o mais alto, levanto acima de minha cabeça para mostrar a todos que consegui e, invariavelmente, a montanha toda desmorona e me engole. Eu caio para dentro dela, por um buraco muito mais fundo do que ela, que parece um vulcão aberto entre os rolos de papel, e acordo no chão do quarto.

Outro nonsense é aquele em que minha namorada me diz que é homem. Eu fico chocado com a revelação, mas então Caio na real e lhe digo para olhar dentro da calcinha e ver que é mulher. Ela ri de minha ingenuidade e me responde que eu é que vejo o mundo ao contrário.

Muita gente se benze quando eu conto do sonho em que vou visitar o túmulo de minha tia Isolina, no cemitério em frente de casa, atravessando a rua. O cemitério está em expansão e, ao fundo, há uma fileira de escavadeiras, que começa na ribanceira da baixada da favela e se perde no horizonte depois de Carapicuíba. Elas abrem covas atrás de covas. Parecia uma bandeja de ovos meio torta. O cemitério não tem mais muros, é um terreno baldio gigante, já limpo de mato e da favela que deveria estar na base da ribanceira. As escavadeiras têm espaço para cavar até a serra. O sol é forte e as covas grandes e fundas o bastante para nelas enterrar um sobrado. Eu olho, curioso, para dentro de uma, a ver se é verdade que a altura deixa dá vertigem e caio depois de me irmão me dizer para ter cuidado e antes da mãe gritar “Eu te avisei!” e “Olha o trabalho que você vai dar agora!”. Então percebo que as paredes são altas, íngremes e planas demais para eu subir e, em vez de me desesperar, acordo.

Tem um outro que eu não entendo direito, com todo mundo de quem me lembro (todo mundo de quem vou me lembrando durante o sonho) sentado em poltronas de cinema (de algum cinema curiosamente confortável). Aquela iluminação fraca de antes do filme começar. Eu correndo, igual Pac Man, entre as poltronas, pelos corredores e fileiras, não sei de quem, não sei porquê, não sei se atrás de algo que nunca sei o que é.

Já os sonhos mais perturbadores de todos começam variados, cuidando da criação no quintal, comprando laranjas na feira, consertando a dobradiça do guarda-roupas, mas eventualmente chegam a uma situação que, ela sim, é recorrente. É quando tento falar algo e não tenho voz. Não percebo nada diferente em mim, tirando a voz que não sai ou não soa. Tento mais uma ou duas vezes até que, frustrado, tento gritar e nada. Então fico nervoso e grito, feito criança birrenta, até não agüentar de tanto meus pulmões e garganta doerem. O silêncio continua até eu acordar.

And the wise man said I don’t want to hear your voice
And the thin man said I don’t want to hear your voice
And they’re cursing me and they won’t let me be
There’s nothing to say and there’s nothing to do

Stop whispering, start shouting

And my mother say we don’t love you son some more
And the buildings say let me spit on your face some more
And the feeling is that there’s something wrong ‘cause I can’t find the words and I can’t find the song

Stop whispering, start shouting

Dear sir, I have a complaint
Can’t remember what it is
Doesn’t matter anyway
Stop whispering, stop whispering

Radiohead

Deserto

O sujeito que vive num deserto desses bem extensos, o Saara, a Arábia, o Outback, por exemplos. Embaixo só areia. Em cima só sol. Ao redor um mormaço infernal. Ele precisa passar o dia todo enrolado num cobertor grosso para não queimar a pele toda e nem assas com o calor. De tão quente, o cobertor que usamos para não deixar o corpo perder calor, eles usam para não deixar ganhar. Sua vida é viajar parando de poço a poço, e são dias de um poço a outro, à procura de água.

Ele fica feliz de lhe acompanharem sua família, seus amigos, sua tribo (se é assim que chamam). Faz fogueira à noite para cozinhar e se aquecer. E o pior do deserto dizem que é isso, ele é muito quente de dia, mas muito frio à noite, de congelar o sangue nas veias. Em volta do fogo, come, canta, conversa, deve alguém tocar alguma coisa, olha para o céu mais perto que existe sobre a terra e se diz abençoado. Imagina a inveja que temos das estrelas que ele consegue ver tão nitidamente. Deve ser por isso que tantos desses países têm estrelas e luas em suas bandeiras.

Nós aqui, nossa imaginação, as notícias e algum preconceito nos levam a crer que esse deserto seja cercado de cidades miseráveis e em pé de guerra, isso quando não em guerra constante. Também o achamos privilegiado, abençoado mesmo, por estar no deserto e não nas cidades que o cercam.

Mas, e isso pode ser por limitação de meus conceitos ou pura arrogância minha, quando encontro uma flor bonita… Quando encontro uma rosa delicada e fresca, alegre, alheia ao que há de ruim no mundo… O que imagino é se ele, encontrando-a também, enxergaria a beleza que vejo nela e se consideraria, se seria tentado a isso, abandonar o deserto para descobrir como é, de perto, um jardim.

Bebel

A Bebel era amiga da Bibi. Essa é a coisa de que melhor me lembro sobre ela dos tempos da escola. A Bibi hoje é professora de português no interior. Já lhe mostrei algumas coisas que escrevi para cá sem, no entanto, lhe dizer onde postaria.

Lá pela quinta-série, elas se sentavam nas duas carteiras atrás de mim, na fileira encostada à parede das janelas que davam para as árvores entre as quais ajudamos a plantar a horta da escola. Essas janelas era na verdade vitrôs que começavam a mais ou menos um metro de altura e subiam até o teto da escola. Um ao lado do outro, muito próximos, davam a volta em todo o prédio sem respeitar as paredes mal-feitas que separavam as salas de aula.

Muito próximas também, talvez inseparáveis como BFFs (como diriam hoje), eram a Bebel e a Bibi. Não me lembro de muitas vezes ter visto uma sem a outra. Não se sentavam sempre na mesma posição e não me lembro mesmo se havia um padrão sobre como decidiam a cada dia quem se sentaria atrás de mim e quem ficaria na outra mais atrás. Foi meu amigo da frente quem lhes apelidou. Chamáva-lhes gaguejando, imitando voz de criança pequena que tivesse dificuldade para falar seus nomes.

Foi assim também que a Bebel, preta alta, muito bonita e simpática, apesar do constante rosto triste, e que sempre usava tiara forçando o cabelo para trás, me apelidou de Xelande. Num dia em que era ela atrás de mim, sentados tortos, de costas para a janela, como se estivéssemos lado a lado em poltrona de cinema, fingiu se confundir com meu nome e, percebendo que sorri, nunca mais me chamou por ele. Xelande ficou por anos. Muitos anos.

Dois ou três depois de já não estudarmos mais juntos, no caminho para minha escola, vi uma garota de corpo maravilhoso à minha frente. Uns vinte metros à minha frente. Por uns três quarteirões, me admirei dela, pensando em como é possível tentar puxar conversa com uma mulher tão bonita. Em frente à prefeitura, ela teve de esperar o semáforo e eu a alcancei. Parei à seu lado direito sem lhe olhar, acanhado, o pescoço imobilizado olhando para a luz verde que não queria passar a vermelha (naquele tempo, nem todos os semáforos tinham ainda o amarelo).

Me assustei um pouco quando a garota maravilhosa me falou surpresa: “Xelande!”

saudades

Saudades que batem dos trens que passaram para vários destinos e não peguei. De tantas festas, tantos carnavais que não me fazem falta. Da perna que nunca quebrei. Da vergonha que nunca passei. Do filme ruim que assisti anos depois da estreia. Da cadela de estimação que o pai enterrou por mim. Do caixão de meu irmão que minha mãe me pediu para não acompanhar. Da comida sem sal da avó e do time ridículo do avô.  Da professora que elogiou meu verso, da que ficou zangada por eu não querer escrever e da que ficou vermelha quando percebeu que eu escrevia sobre ela. Saudades do vacilo com a mina de quem eu tanto gostava e recusei até mesmo beijar porque, trouxa que sou, achei que tinha obrigação maior a cumprir. Saudades de quando eu fôr muito velho e tiver só saudades para me fazer sorrir. Saudades de não estar agora cansado a ponto de me arrepender de ir-me ao cansaço. De não aparecer para te dar boa noite ou ao menos dizer que vou ter saudades. Saudades da lua que, por certo, não aparecerá na noite de amanhã e das estrelas que não me importam se não houver lua. Do medo. Do choro do arrependimento. Mas desse não preciso ter saudades. De qualquer jeito ele vem…

Temas

Man, wake up, there’s a full moon shining.
Man, too long we’ve been sleeping. What is it we’re really feeling?
   — Sally Oldfield, Mandala

De tempos em tempos, me canso da cara deste blog e começo a fuçar para deixar as coisas diferentes. Há uns dois meses atrás foram os posts sem título que me irritaram porque se confundiam com os anteriores. Resolvi colocar uma imagem em cima de cada post, mas elas começaram a ocupar muito espaço na tela do note. Agora foi o tema, para deixar as imagens mais comportadas. Mas este aqui ainda não está perfeito. O menu que some na tela do tablet me incomoda um pouco. Daqui a pouco sou capaz de o trocar de novo.

Mas o que acho mais curioso quando faço essas reformas é a impressão que me causam meus posts antigos. Encontro tanta coisa mal-feita e outras que são simplesmente tão bobas que as apago sem remorso de fingir que nunca existiram! Acabo parando horas a mexer neles. A alguns só remendo uma coisa ou outra, corrijo algum equívoco, ortografia, gramática, algo que me escapuliu. Outros chegam a ser embaraçosos de tão mal feitos!

Por isso que digo que este é um blog-mandala. Não consigo revisitar nada sem reescrever.