Farruca

Dizem que o sujeito achou que a mulher o estava traindo. De vez em quando, ao acordar, reparava em alguma coisa estranha na casa. Uma vez foi poeira, terra, nos sapatos dela. Noutra, a terra estava numa pegada no banheiro. A chuva, do lado de fora, não podia ter entrado sozinha. Houve ainda a vez em que achou o vestido dela úmido – de chuva? – no varal, logo pela manhã. Fogosa que ela era, de certo não se dava por satisfeita só com ele. Concluiu que a mulher se aproveitava de seu sono pesado para sair à noite. Para onde? Sair escondida… só podia ser para coisa errada. E à noite… Não convinha perguntar-lhe. A alarmaria e ela mudaria o comportamento. Ele precisava agüentar acordado e segui-la.

Tentou algumas noites, por semanas. Em algumas, conseguiu. Chegou a virar noites acordado. Noites em que viu a mulher dormir tranqüila e pesado. Noutras, caiu no sono depois de muita espera. Mas, as noites em que teve certeza, em seu interior e nas evidências que procurou, pelas roupas dela e pela casa… essas noites foram aquelas em que dormiu feito pedra, sem nem se lembrar em que ponto da noite caiu no sono ou como. Será que ela o drogava? Desconfiou mesmo. Algo na comida, em sua bebida.

Simulou uma doença misteriosa que lhe tirava a fome a noite. Que lhe endrojava o estômago por causa de qualquer copo de água à noite. Doença que lhe atacava também aos fins de semana. A mulher ralhou. Que ele desfazia de seus cuidados, de sua comida. Que comia no trabalho, então, só podia ser algo com ela. Que devia estar-lhe fazendo isso porque tinha outra. Ele resistiu e sustentou por semanas a doença de mentira. Ainda assim, nas poucas noites, duas ou três no mês, em que não agüentou e dormiu pesado à noite inteira, nessas noites pegou no sono logo que apagou a luz… foi nessas que teve certeza. A mulher, de algum jeito, o punha para dormir e saia à gandaia.

Resolveu de visitar a mãe. Mãe também é mulher e sabem e, Deus me perdoe porque falo das mães e da minha também, fazem as coisas que mulheres fazem.

Fez algum rodeio para explicar-lhe. Não tanto pela vergonha de achar-se corno, mas, sobretudo, pela de dar o braço a torcer à mãe que nunca aprovou-lhe o casamento. Antes de procurá-la chegou mesmo a achar que procurava pêlos em cascas de ovos, influenciado pela opinião da mãe sobre sua esposa. Opinião que só foi verbalizada duas vezes. Quando ela percebeu que ele estava visitando com muita frequência a casa da jovem vizinha viúva. E quando ele disse que iam se casar. Tirando essas vezes, nunca se teve expressões mais que as involuntárias de mãe contrariada.

Logo que o filho começou a falar, a mãe disse que não era gente de se meter em assuntos de casal. Que ele resolvesse em casa. Ele teve de insistir e de se explicar muito para convencê-la a dar um conselho ou responder tecnicamente uma pergunta. Ela aconselhou-o. Que devia ter suspeitado antes de casar. Que agora respeitasse sua mulher e conversasse com ela a sós em casa sobre os problemas.

Mas também respondeu tecnicamente à pergunta. Que não era médica para saber de remédios, mas que mulher não procura médico se quer fazer algo de errado, pôr o marido a dormir para fazer algo de errado. Mulher procuraria outra mulher, uma bruxa, talvez a própria farruca.

Ele se benzeu ao ouvir falar da assombração com que a mão que punha medo à infância. Era ensinado a não brincar com ela. A farruca odeia homens. Usa-os para matar seu desejo animal. Seu inútil desejo animal. Amaldiçoada por Deus, seca do ventre, não pode ter filhos. Deseja os homens e seu sexo. Consome-os, desesperada, tentando ser mãe. A mãe é mulher, não se impressiona com a história. Mas que não vá o filho atrás da bruxa porque ela não é de dar papo a homem. Certamente algum mal lhe fará.

Ele voltou para casa ainda mais curioso. Pelo caminho, já bolou um plano. Precisava de uma mulher, não a mãe, muito menos a esposa, que conhecesse uma bruxa para perguntar-lhe o feitiço para por homem a dormir. Assim, saberia como defender-se dele. Não tinha amizades com mulheres. Muito menos saliências. Sua mulher lhe bastava, se não exatamente como amiga, certamente como amante. Foi assim que se apaixonou.

Pensando bem, é melhor mesmo que não seja a uma amiga que pedirá isso. Percebe que seria uma vergonha se um conhecido soubesse que ele se acha corno e outra muito pior se descobrir que não é. Pediria isso a uma desconhecida? Uma mulher desconhecida? Uma com quem não tivesse convívio. Lembra-se então das prostitutas. Cobram para serem mulheres dos homens. É disso que precisa, de uma mulher de aluguel, profissional. Uma transação comercial. Paga-lhe o serviço de ser mulher, não de ser mulher numa cama para ele, de ser mulher de procurar uma bruxa, e mais o de guardar o segredo.

Na cidade tem zona, todos sabem onde. Até ele, embora nunca a tenha freqüentado. No dia seguinte, na volta do trabalho, arruma uma desculpa esfarrapada para demorar e vai lá. Realmente não é um lugar agradável a quem não está acostumado. A começar pela cara dos clientes, principalmente dos clientes que estão acostumados. O lugar todo parece um grande cortiço. Ele nunca entendeu como podem, homens que têm suas casas bem-cuidadas, mulheres arrumadas, virem ali procurar mulheres mal-ajambradas nessa bagunça de arrumação mal-feita e decoração velha e descuidada. Sempre achou que o que procurassem talvez fosse mesmo a esculhambação, o poderem se-ter onde possam bagunçar à vontade sem que lhes gritem uma bronca: “Eu tinha acabado de arrumar!”, “Eu passei a tarde toda limpando isso!” Passou por várias portas, vários cortiços e salões, antes de criar coragem de escolher uma. A que escolheu, não foi tanto pela aparência ou outro critério técnico. Não. Foi por ser a primeira em que, ao passar pela porta, achou que ninguém ao redor lhe olhava ou reparava. Entrou naquela por achar que finalmente passava despercebido. Tolo, não sabe que ali todos constantemente tanto chamam a atenção quanto passam despercebidos.

O lugar, por dentro, parecia a casa de uma senhora pobre. E devia ser mesmo. Pintura velha desbotada, móveis antigos, também velhos e de panos desbotados, fotos na parede, preto-e-brancas, desbotadas, cortinas rotas que, se não eram desbotadas, desbotavam a luz da lâmpada sem globo nem lustre pendurada no teto. Era uma sala, de estar, de receber visitas. Três mulheres novas estavam sentadas num sofá grande, de três lugares. Uma senhora num menor, de dois. Um homem, em pé ao lado da porta, de camisa branca, calças e sapatos pretos, roupa de missa, deu-lhe um benvindo e ficou calado olhando-o olhar a sala. A senhora foi quem lhe disse que ficasse à vontade e apontou com a mão toda, espalmada, o lugar entre as meninas. Uma delas estendeu-lhe a mão. Podia ser a mais feia ou a mais bonita, não faria diferença. Ele se sentiu exposto, em pé, à vista delas, e correu pegar-lhe a mão. Ela se levantou e tocou-lhe o ombro para que ele entendesse por onde ir. Ele foi por um corredor e, antes de sair da sala, foi que se lembrou de que talvez não trouxesse dinheiro suficiente para os honorários dos serviços habituais dela. Não perguntou quanto era devido. Se ela lhe cobrasse mais do que trazia, teria problemas com o homem de roupa de missa.

O quarto onde entraram cheirava a arroz frio e umidade. Teve nojo da combinação que achou inusitada. Teve nojo da mulher. Nem precisava, estava decidido desde o começo a não fazer nada com ela. Não podia, para ter razão ao brigar com a própria mulher. Mas teve nojo até de ficar a seu alcance. Imaginou as sujeiras que poderia haver na cama, nela e nas paredes, e parou em pé. Melhor aviar logo o negócio:

“A moça me desculpa mas o serviço que eu vim lhe contratar é outro.” A moça em questão não estranhou. Na verdade, era cheia de clientes que lhe contratavam para “outros serviços”. Crê que a maioria deles mesmo. Isso é coisa já bem comentada. Que homens que procuram mulher da vida, procuram coisas que não pediriam à própria mulher. Ou a um homem. Ela não estranha, mas sabe que deve ter precaução. Pergunta o que é, sorrindo maliciosa, e a malícia não é a da mulher sedutora, mas a de quem vai pegar o outro com a boca na botija.

“Preciso saber como é o feitiço para pôr marido a dormir.” A moça se ofendeu, pensou que a tomasse por bruxa. Teve ele de lhe explicar que não era o caso, mas sim o que já sabemos. Que ele, por ser homem, não podia procurar pessoalmente a bruxa. Que ela, mulher, decerto saberia como encontrar uma e, fingindo interesse próprio, faria a consulta. E depois contaria a ele o segredo.

Ela logo percebeu o porquê de ele querer a informação. Não é boba. E é da vida. Assim como já ajudou muitos homens porem cornos às esposas, também já conheceu outros muitos que tinham eles mesmos os adornos. Mas o que ele pedia era algo muito delicado. Era como trair um código de ética feminino que, evidentemente, não existe mas, mesmo assim, pesa na consciência quebrá-lo. Além disso, convenhamos, ele não ia sair dali pedindo preço a todas as putas da zona. Se teve vergonha de procurar uma conhecida, alguma vergonha também teria de procurar uma segunda desconhecida. Pediu um preço que achou alto. Ele não achou, pensou que gastaria bem mais, estava disposto, mas, esperto, fingiu surpresa e prometeu pagar-lhe apenas daí uns dias, quando ela voltasse com a resposta. Ela pediu que voltasse daí a duas quintas-feiras, que trouxesse o dinheiro, e que pagasse agora o preço do programa pois a dona a cobraria.

Ele perguntou se não podia ser antes. Como não podia, e o preço que ela lhe cobrou pelo programa era bom, concordou e pagou. A moça ainda lhe recomendou que, se quisesse, se lavasse no banheiro do corredor. Caso quisesse dissimular não terem feito nada. Ela não quis. Ela também não estranhou, a maioria não se lava mesmo.

Em casa, ele ficou tenso essa noite. A mulher mesmo assim parece não ter desconfiado de onde ele foi. Esperou-o com um sorriso para o jantar. Jantaram juntos, depois de ele tomar banho, e deitaram-se juntos. E, antes de dormir, ela subiu nele e só rolou para o próprio travesseiro quando percebeu que ele, orgulho masculino vencido, deu-se por mais que exausto e não conseguia mais nenhum movimento ativo ou manifestação competente. Então beijou-lhe entre os olhos, como fazia sempre nesta hora, e imediatamente rolou para o próprio travesseiro e dormiu exausta, com a mão em seu peito, sorrindo, vaidosa por sua performance feminina. Ele, por outro lado, depois de ela desmontar, guardou o teto o resto na noite, acordado, espiando a culpa de ter ido a um lugar errado para fazer algo que não achava errado.

Os dias até daí duas quintas-feira seguiram como ele já estava acostumado. Algumas noites em claro ou quase, outras tantas mal-dormidas. A mulher deitada com ele, insuspeita, querendo-lhe o como como sempre, como se nada houvesse. Na noite em que dormiu muito bem, teve de novo certeza de que ela havia saído. Dessa vez, sem nenhum indício, sem pistas ou evidências, só a pulga atrás da orelha. E como lhe coçava essa pulga!

No dia combinado, a desculpa esfarrapada já estava na ponta da língua, voltou à casa daquela senhora na zona. Na sala, não encontrou a garota, estavam lá, além da senhora e do leão-de-chácara, duas outras. Perguntou por ela e a senhora lhe pediu que esperasse um pouco, estava com cliente, que se sentasse e ficasse à vontade. Ele se sentou, entre as duas garotas. Elas tentaram lhe abraçar, colocar a mão, mas perceberam não ser ele de dar asa fácil e respeitaram, para não criar problemas com a senhora e seu cliente. Tentaram puxar conversa, ele respondeu com frases curtas.

A casa ainda era a mesma e estava do mesmo jeito, mas ele já não tinha nojo, nem dela nem delas. O pensamento estava longe, ansioso, não tinha espaço para pensar em coisas assim de pouca importância. Talvez fosse a certeza se aproximando e acabando aos poucos com sua dignidade.

A garota chegou. Veio do quarto direto à sala sem passar pelo banheiro, onde entrou o cliente que estava com ela. Ela o reconheceu, já o esperava mesmo, e chamou-o com um aceno de mão e um sorriso da tia que chama a criança para comer doces. Já tem de novo aquele mesmo sorriso malicioso no rosto.

Entram no quarto. Ela se joga na cama. O mesmo sorriso. Arruma os peitos no decote imaginando se ele não vai, desta vez, sentir-se tentado ou injuriado demais e resolver aproveitar o que vai gastar e completar o programa. Ele nunca faria isso. Não com uma mulher que vai de um homem para outro sem passar pelo banheiro no caminho. Tudo há-de ter limites. Ela desiste. Suspeita que por isso mesmo ele seja corno. Como pode ser tão lerdo quando há uma mulher à sua frente pronta para que ele a monte?

“Fui à bruxa. Você não foi muito esperto. Ela achou estranho uma mulher do meu tipo perguntar-lhe tal feitiço.” E estranho era mesmo, ele percebeu. Por que uma mulher sem marido iria querer um feitiço feito para maridos? A princípio, tomou-a por ladra. Inquisição vai, inquisição vem. Não se deve mentir a uma bruxa. A garota confessou que a informação era pra outra pessoa. E depois, que era pra um homem. A bruxa não gostou. Se os homens soubessem esses segredos, aprendessem a se proteger deles, as bruxas perderiam sua função social.

“Ela saiu da casa, me deixou sozinha, não sei onde foi. Quando voltou, disse-me que, se você quiser mesmo saber algo de uma bruxa, que terá de ir lá, como homem, e falar de frente com uma.” As condições da bruxa contrariavam tudo que sua mãe lhe ensinou. A curiosidade não satisfeita dói mais que a dor da descoberta. Mulher sabe bem isso. Ele queria concordar, mas tinha medo.

Antes de se decidir, ela se lembrou de lhe falar em condições: “O trato é o seguinte. Você pergunta pra ele o que quer saber. Se estiver certo, ela faz com você o que ela quiser. Se estiver errado, tua mulher vai saber e vai fazer contigo o que quiser.” Ele estaria perdido em qualquer das duas situações. Mas, pensando bem, era justo. Estava perdido já. Ou pela certeza, ou pela desconfiança injusta. Aceitou.

“Segunda -feira à noite.” Ele concordou. Precisaria de uma boa desculpa. Mas não precisaria mais de desculpas depois disso.

Já para essa noite, não foi difícil esperar. Pelo contrário, conforme se aproximava, mais queria evitá-la. Duvidava do amanhecer e da existência do mundo na terça-feira. No domingo, não comeu, não foi à missa. Aproveitou na cama, com a mulher, o domingo que provavelmente seria seu último junto.

Na segunda-feira, chegando do trabalho, como sempre, tomou banho, jantou com a mulher, tomou um copo de vinho na soleira da porta, ao lado dela, olhando as árvores no morro ao longe. Mas, ao acabar o vinho, beijou-a sem sentimento e saiu seco, sem dar satisfação.

Chegou à zona já tarde. Na segunda-feira, era um bairro normal. Pobre, um bairro pobre normal. Vizinhos conversando, mulheres à janela. A casa da senhora estava fechada, duas luzes acesas nos quartos. Bateu à porta. O homem da roupa de missa veio atendê-lo, com a camiseta da roupa de baixo e calças velhas, descalço. Cumprimentou-o e sorriu feliz: “Sente-se, fique à vontade. Vou chamá-la”

Ela veio. Queria estar bonita, mas era o mais bonita que conseguia. Roupa parda discreta. Xale para proteger do frio. Maquiagem pouca. A roupa cobria e não realçava seu corpo castigado das noitadas. Saíram juntos. “Dá-me o braço.” Ele não era homem de andar de braço dado com uma prostituta, nem com mulher que não fosse a sua. “Entretanto, passou o fim-de-semana todo na cama com uma mulher que julga não ser só sua.” Sentindo-se vigiado, ele se espantou. Como ela sabia? Ela riu de como os homens são tolos e previsíveis: “É o que qualquer homem orgulhoso e desesperado faria.”

Para evitar os curiosos que estranhavam o casal lado a lado separado, por fim, deu-lhe o braço. Andando rápido, logo chegaram a uma espécie de chácara urbana. Era uma casa antiga no meio de um quintal muito grande. Ao lado da casa, um galpão de madeira do tipo que se usava para cavalos e ferramentas. As primeiras coisas em que ele reparou foram a iluminação e os cravos plantados, uma combinação linda. A moça levou-lhe pelo braço para o galpão.

Encontraram outras mulheres lá, todas jovens, quarenta e poucos, se tanto, as mais velhas. Bonitas, bem feitas de corpo. Embora muitas tivessem a mesma expressão maltratada da garota que o acompanhava, contrastavam muito com a ideia que se faz da bruxa velha, feia e acabada. Olharam-no com indiferença. Ele esperava hostilidade. Indiferença foi o desprezo que encontrou.

A garota deu-lhe uma cadeira, bem no centro, de costas para a porta. As outras ficaram não ao redor, mas à volta, encostadas nas paredes, sentadas no chão. Não se falavam, não se olhavam, nem a ele. Ela também se sentou no chão, junto à uma parede. Demoraram assim. Ele obedeceu o ritual que não lhe ensinaram e esperou quieto igual.

Deve ter demorado quase duas horas, a mulher mais próxima à porta anunciou: “A Farruca chegou, já vem.” Ele não conseguiu evitar o pavor que lhe tomou ao ouvir o nome. Não imaginou que, de tantas bruxas que devem existir no mundo, viria parar na roda da famosa pior de todas. Orgulhoso, tentou-se manter firme, imóvel, na cadeira. Só o que conseguiu foi que o pavor que não lhe saía dos olhos como choro o fizesse tremer como vara ao vento. Temeu molhar-se, o que seria humilhação demais. E, desesperado, não conseguiu segurar.

Como se esperasse por isso, imediatamente uma voz entrou pela porta na boca de uma mulher: “Quando der boa noite a seu marido, faze-o com um beijo na testa, entre os olhos, e, nos dias em que quiser que ele durma pesado, ao afastar o rosto, sopra-lhe os olhos, bem de leve. Precisa de tempo e pratica para dominar a leveza correta do sopro mas, depois, o sono dele é garantido até o sol nascer.”

O reconhecimento imediato da voz de sua mulher fez o choro escorrer mudou de seus olhos e esvaziar-lhe o pulmão, deixando-o paralizado. Virou-se para vê-la. O movimento que fez para virar a cabeça para trás travou no meio do caminho, os olhos continuaram. Giraram para o mundo girar em torno dele e ele cair tonto, com a cadeira, para trás. Suas vistas continuaram girando como a água descendo o ralo, até as meninas-dos-olhos virarem para dentro das órbitas, para dentro da cabeça e ele, com os olhos brancos, passasse o resto da vida vagando enxergando nada mais que a escuridão dentro de si mesmo.

Ele não chegou a vê-la, a voz não ouviu mais. Mas teve certeza, era sua mulher. Hoje vaga por aí, para sempre, louco. E quando conta a história da farruca, da mulher bruxa, não acreditam ou tomam-na por loucura sua. Essa é sua maior maldição, ser tomado por louco ou mentiroso.

Histórias de Trás-os-Montes

Eu sempre me lembro com muito carinho das histórias que minha avó contava de sua terra, Trás-os-Montes, “as montanhas do fundo”, diriam os brasileiros. Histórias do folclore português e também do dia-a-dia. Com minha avó aprendi que esses são coisas que se misturam. Sempre fui curioso por como as pessoas, ao contarem as histórias que lhes aconteceram, adaptam-nas aos preconceitos e morais-da-história que aprenderam.

Gostava de me lembrar de todas as lendas que ela me contou. Aliás, lendas não, ela tinha certeza de todas terem acontecido de verdade, daquele jeito mesmo, embora cada um as conte de um jeito.

Estou tentando recordá-las, em sua versão, e escrevê-las na minha. Escrevi sobre uma, há uns dias atrás e, está semana toda, tenho trabalhado em outra que, tento caprichar, está me levando tempo a publicar.

Dessas, e das próximas, espero que vocês gostem.

Sozinho à Noite

Tomei banho. Escovei os dentes ainda pelado no box, chuveiro fechado. Quando terminei, procurei a toalha para me secar. Esqueci-me dela no aquaradouro. Está noite já, frio pra sair pelado buscar. Olho pelo vitrô do banheiro, a toalha lá, pendurada no varal sobre a grama, já seca, secando no vento frio da noite que acabou de fechar.

O banheiro fica no quintal, nos fundos. Coisa de casa antiga. Não adianta gritar para a mãe me buscar a toalha, ela está no quarto se trocando, não vai ouvir. Não tem ninguém olhando. Eu abro a porta, dou mais uma espiada. Nenhum vizinho olhando por cima do muro. Dou uma corrida até o aquaradouro, sujo o pé com terra na grama úmida, pego a toalha e corro de volta pro banheiro. Quase arrebento o fio do varal quando puxo a toalha. Corro de volta pro banheiro.

Olho de novo pelo vitrô, ninguém lá fora, ninguém nos muros. Acho que ninguém me viu. Que coisa ridícula, homem correndo pelado! As partes balançando! Só agora, dentro do banheiro, percebo o frio. Me enrolo na toalha. Preguiça de me enxugar, mas preciso. A cabeça deixo sempre um pouco molhada.

Visto o pijama. É um pijama antigo de flanela fina. Foi de meu avô. As calças parecem aquelas ceroulas que os homens usam nos filmes antigos, mas não têm aquela abertura na bunda. Graças a Deus.

A lâmpada pendurada no caibro, que atravessa o teto sem forro do banheiro, ilumina mal mas é impossível não perceber que molhei todo o chão quando saí para buscar a toalha. Pego o rodilho e puxo um pouco da água para o box, depois passo um pano de chão que sempre fica pendurado no canto. Se a mãe vier ao banheiro antes de sair, não quero que escorregue. Tombo no banheiro é coisa perigosa.

Quase me esqueci do desodorante, do frasco que esguicha. Desabotoo o pijama e tento só borrifar. Não consigo, ele esguicha e fica escorrendo do sovaco. Eu fecho de volta o pijama molhado, penduro minha toalha, fecho o vitrô, saio e fecho a porta do banheiro para não entrar bicho.

Olho a lua, gosto dela, mesmo nestas noites nubladas sem estrelas. O vento da noite não me incomoda, pelo contrário, me agrada quando bate em meu cabelo molhado. Lembro que já é de noite e nosso quintal, vazio, pode ser perigoso, histórias de assaltos. Paro de enrolar e entro pela cozinha. Fecho a porta atrás de mim com a chave e a cancela improvisada.

A mãe ainda não saiu do quarto. Está caprichando, ele merece se arrumar bem bonita para sair com as amigas e se divertir. Eu já sou grande, posso ficar sozinho. Preciso acordar cedo de manhã, pegar o trem para a escola, depois trabalhar.

Entro no quarto, me sento em minha cama. Pego um livro que deixei no criado mudo, já me esperando para a hora de dormir. Este peguei hoje na biblioteca, pego dois a cada dois ou três dias. Leio mais ou menos um por dia, na condução e no quarto. Com o travesseiro de encontro à cabeceira, servindo de encosto, cruzo as pernas, que servem de apoio ao livro, e leio.

A lâmpada é melhor que a do banheiro, mas também é fraca. São fracas, a lâmpada e a eletricidade. Coisa de gente que mora longe. Chega pouco energia. As casas daqui consomem mais do que chega, ficam disputando entre si. Ninguém consegue alimentar suas lâmpadas com toda a eletricidade necessária. Fica essa luz fraca, meio bege que deixa tudo com um fosco, pouco mais colorido que pardo.

A mãe finalmente vem do quarto dela. De vestido, cabelo penteado, maquiagem, cheirosa. Vai com as amigas numa festa, chá, coisa assim, coisa delas. Me recomenda a ladainha de sempre, que não largue porta aberta, que não a abra a ninguém, que não largue luz acesa, que não largue fogo aceso, que durma logo porque pego o primeiro trem da manhã… Sei de cœur, nem presto atenção, não compensa. Esse papo dela me enfada que vou acabar pegando no sono mais cedo.

Ela percebe e se despede pelas últimas duas vezes, mais outros beijos e vai embora. Sai pela porta da sala. Eu a acompanho para encostar a porta. Essa dá para a frente de casa, para a varanda, depois estão o jardim, o muro baixo com portão e a calçada. A porta da sala é de madeira pesada e tem fechadura boa. Ela a tranca por fora e vai embora. Vai se encontrar com as amigas na casa da vizinha da frente.

Faz tempo que não fico sozinho à noite. Tenho impressão de que deveria aproveitar para algo, mas nem sei o quê. A mãe decerto vai achar que tenho vontade de trazer uma mulher para cá e ter uma noitada, ou que chamei os amigos para beber, fumar e jogar. As mães sempre imaginam que planejamos o que elas não querem. Meu plano é terminar o livro.

Sento-me na cama. Agatha Christie. Os primeiros livros que eu li dela me agradaram muito. Agora já estão me aborrecendo. Têm algo de igual, repetitivo, nestas história. Talvez o bandido sempre ser pego no final. Poirot ainda vai demorar um pouco para pegar este, estou no décimo-segundo capítulo, são trinte e dois, mas vai acabar pegando.

Uma coisa que eu não gosto na noite é esse silêncio. Qualquer barulho acaba chamando a atenção. Um gato o chão perto da janela, uma pomba na calha, folhas voando. Às vezes tenho impressão de haver alguém no quintal espiando pela janela. Talvez seja um ladrão me esperando dormir para entrar ou voyeur xeretando o que eu faço.

Eu me ajoelho na cama e olho pelas fendas da veneziana, com medo de encontrar outros olhos me olhando também. Não encontro, nem encontro nada. Está escuro. Não sei se não vejo nada porque realmente não há nada, – cadê o quintal? – porque está escuro ou porque tem alguém na frente da janela tapando à vista. Não distinguo nem sombras, parece haver diferenças de escuro. Pode ser profundidade, contorno, relevo, qualquer coisa.

Medo de escuro é coisa de criança, escuro não faz nada. Se eu tinha ali o medo que realmente tinha, era de outra coisa. Não é vergonha ter medo quando se está sozinho e não há para quem se envergonhar. E esse meu medo era uma sensação estranha na barriga. Não o frio da barriga que se costuma falar, era alguma coisa se mexendo lá dentro. Uma massa pesando, se mexendo devagar, me dizendo para ficar preocupado.

Eu enfrento o escuro, olhando pela veneziana. Ele me intimida como se fosse mesmo alguém me olhando. Convenço-me, muito mais oportunamente do que convictamente, de que não há ninguém lá mas, com a pulga atrás da orelha, olho o quintal também pelo vitrô do corredor. O que eu faria se tivesse alguém lá fora? O pedaço que vejo do vitrô é iluminado pela lua. Não tem ninguém, ninguém onde enxergo. Fecho o vitrô todo pra não ver mais, e nem me verem.

A porta do quarto deixo aberta. Volto para a cama, apago a lâmpada do teto e ligo o abajur em seu lugar. A lâmpada do abajur é mais fraca, mas pouso o livro no travesseiro, junto ao criado-mudo, de forma que, agora, suas páginas estão muito mais claras. O livro e o teto iluminado pela luz que sai por cima do abajur. O resto do quarto está escondido no escuro.

Fico deitado de lado, apoiado com um cotovelo no travesseiro. É uma posição mais cômoda para ler. Demoro chegar ao último capítulo. Paro de ler antes dele para pensar, tentar chegar a uma conclusão de quem é o assassino. É besteira tentar ser mais inteligente que Poirot. Ele não é inteligente, Deus Ex-Machina sabe de tudo e, com sua máquina de escrever, lhe faz pensar na solução.

Viro-me e os olhos, saindo do branco iluminado do livro para o verde lavado sem luz da parede do outro lado, servem pouco mais do que se estivessem cegos. De início, as pupilas retraídas não vêem nada. Conforme se dilatam, parecem encontrar algo, formas, movimento, na parede que parece preta. Erra quem pensa que preto é preto, que não tem tons. Um estalo me assusta. Não vou olhar. Casas antigas estalam à noite. É o frio em suas estruturas doentes de reumatismo dos tijolos e cimento velhos. Vou fingir que tenho certeza de que foi um estalo normal. Um frio bate nos meus pés, descobertos. Incomoda. Puxo as cobertas e me deito de bruços para terminar o livro, com os pés embaixo do cobertor dobrado.

Não descubro quem era, Poirot sim. E o livro acaba.

Com preguiça de me cobrir, rolo de barriga para cima, pensando em algo para enrolar antes de dormir. Acho que não vou me lembrar de nada e que é besteira tentar enrolar assim, mas me lembro das folhas que tenho no meio do livro da escola.

São folhas de árvore, eu coleciono. Tenho duas novas, da mesma árvore, que peguei perto do trabalho. Não sei que tipo de árvore é aquela. Vou voltar lá e tentar descobrir.

Me levanto da cama. É estranho me levantar e ouvir o ranger do soalho contrastando com o silêncio total. Minha sombra na parede, projetada pelo abajur atrás de mim, é estranha também, não me reconheço nela. Busco a mochila sobre a cadeira do canto onde também está o uniforme. Do livro de dentro dela, pego as duas folhas.

No criado mundo, na porta de baixo, guardo o fichário com minha coleção. Cola, tesoura, estojo, guardo lá. Pego também, sento na cama, de costas pra janela. Pasta no colo, cola, folhas, caneta. Uso uma página nova.

De costas assim para a janela, sinto de novo como se estivesse sendo observado. Olho para a janela, por cima do ombro, mas me acho ridículo. Só vejo a janela e sombra, minha sombra, toda esticada por conta da luz do abajur bater na diagonal.

Colo as folhas. Deixo espaço, para escrever o nome e anotar quando souber de quê são. Me abaixo para guardar o fichário de volta na porta do criado mudo. Ele já está bem carregado. Para guardar em pé já fica complicado. Deixo deitado com o estojo em cima.

Quando levanto a cabeça, o sono já se nota. O silêncio é maior, com seus barulhos no fundo, vento, o ruído branco do escuro, da noite. O silêncio é tanto que o barulho do vento fraco parece um redemoinho de almas cercando a casa. E, dentro, parece um fantasma entre as sombras na parede e eu. Esse silêncio surdo que faz sombra.

Deito e me cubro. De costas para a janela, não quero vê-la. Nem vou. Ajeito a cabeça no travesseiro e desligo o abajur. A luz se apaga junto com a lâmpada do abajur. O escuro, ele não perde tempo, pouco depois cobre-me o rosto, os olhos, como um lençol ou capuz preto. Ainda estou acordado, mas não tenho como reagir. Minha cabeça fica leve como se não estivesse mais ali, sobre os ombros, sobre o travesseiro. Meu corpo, se desmancha também… em sombra.