Tomei banho. Escovei os dentes ainda pelado no box, chuveiro fechado. Quando terminei, procurei a toalha para me secar. Esqueci-me dela no aquaradouro. Está noite já, frio pra sair pelado buscar. Olho pelo vitrô do banheiro, a toalha lá, pendurada no varal sobre a grama, já seca, secando no vento frio da noite que acabou de fechar.
O banheiro fica no quintal, nos fundos. Coisa de casa antiga. Não adianta gritar para a mãe me buscar a toalha, ela está no quarto se trocando, não vai ouvir. Não tem ninguém olhando. Eu abro a porta, dou mais uma espiada. Nenhum vizinho olhando por cima do muro. Dou uma corrida até o aquaradouro, sujo o pé com terra na grama úmida, pego a toalha e corro de volta pro banheiro. Quase arrebento o fio do varal quando puxo a toalha. Corro de volta pro banheiro.
Olho de novo pelo vitrô, ninguém lá fora, ninguém nos muros. Acho que ninguém me viu. Que coisa ridícula, homem correndo pelado! As partes balançando! Só agora, dentro do banheiro, percebo o frio. Me enrolo na toalha. Preguiça de me enxugar, mas preciso. A cabeça deixo sempre um pouco molhada.
Visto o pijama. É um pijama antigo de flanela fina. Foi de meu avô. As calças parecem aquelas ceroulas que os homens usam nos filmes antigos, mas não têm aquela abertura na bunda. Graças a Deus.
A lâmpada pendurada no caibro, que atravessa o teto sem forro do banheiro, ilumina mal mas é impossível não perceber que molhei todo o chão quando saí para buscar a toalha. Pego o rodilho e puxo um pouco da água para o box, depois passo um pano de chão que sempre fica pendurado no canto. Se a mãe vier ao banheiro antes de sair, não quero que escorregue. Tombo no banheiro é coisa perigosa.
Quase me esqueci do desodorante, do frasco que esguicha. Desabotoo o pijama e tento só borrifar. Não consigo, ele esguicha e fica escorrendo do sovaco. Eu fecho de volta o pijama molhado, penduro minha toalha, fecho o vitrô, saio e fecho a porta do banheiro para não entrar bicho.
Olho a lua, gosto dela, mesmo nestas noites nubladas sem estrelas. O vento da noite não me incomoda, pelo contrário, me agrada quando bate em meu cabelo molhado. Lembro que já é de noite e nosso quintal, vazio, pode ser perigoso, histórias de assaltos. Paro de enrolar e entro pela cozinha. Fecho a porta atrás de mim com a chave e a cancela improvisada.
A mãe ainda não saiu do quarto. Está caprichando, ele merece se arrumar bem bonita para sair com as amigas e se divertir. Eu já sou grande, posso ficar sozinho. Preciso acordar cedo de manhã, pegar o trem para a escola, depois trabalhar.
Entro no quarto, me sento em minha cama. Pego um livro que deixei no criado mudo, já me esperando para a hora de dormir. Este peguei hoje na biblioteca, pego dois a cada dois ou três dias. Leio mais ou menos um por dia, na condução e no quarto. Com o travesseiro de encontro à cabeceira, servindo de encosto, cruzo as pernas, que servem de apoio ao livro, e leio.
A lâmpada é melhor que a do banheiro, mas também é fraca. São fracas, a lâmpada e a eletricidade. Coisa de gente que mora longe. Chega pouco energia. As casas daqui consomem mais do que chega, ficam disputando entre si. Ninguém consegue alimentar suas lâmpadas com toda a eletricidade necessária. Fica essa luz fraca, meio bege que deixa tudo com um fosco, pouco mais colorido que pardo.
A mãe finalmente vem do quarto dela. De vestido, cabelo penteado, maquiagem, cheirosa. Vai com as amigas numa festa, chá, coisa assim, coisa delas. Me recomenda a ladainha de sempre, que não largue porta aberta, que não a abra a ninguém, que não largue luz acesa, que não largue fogo aceso, que durma logo porque pego o primeiro trem da manhã… Sei de cœur, nem presto atenção, não compensa. Esse papo dela me enfada que vou acabar pegando no sono mais cedo.
Ela percebe e se despede pelas últimas duas vezes, mais outros beijos e vai embora. Sai pela porta da sala. Eu a acompanho para encostar a porta. Essa dá para a frente de casa, para a varanda, depois estão o jardim, o muro baixo com portão e a calçada. A porta da sala é de madeira pesada e tem fechadura boa. Ela a tranca por fora e vai embora. Vai se encontrar com as amigas na casa da vizinha da frente.
Faz tempo que não fico sozinho à noite. Tenho impressão de que deveria aproveitar para algo, mas nem sei o quê. A mãe decerto vai achar que tenho vontade de trazer uma mulher para cá e ter uma noitada, ou que chamei os amigos para beber, fumar e jogar. As mães sempre imaginam que planejamos o que elas não querem. Meu plano é terminar o livro.
Sento-me na cama. Agatha Christie. Os primeiros livros que eu li dela me agradaram muito. Agora já estão me aborrecendo. Têm algo de igual, repetitivo, nestas história. Talvez o bandido sempre ser pego no final. Poirot ainda vai demorar um pouco para pegar este, estou no décimo-segundo capítulo, são trinte e dois, mas vai acabar pegando.
Uma coisa que eu não gosto na noite é esse silêncio. Qualquer barulho acaba chamando a atenção. Um gato o chão perto da janela, uma pomba na calha, folhas voando. Às vezes tenho impressão de haver alguém no quintal espiando pela janela. Talvez seja um ladrão me esperando dormir para entrar ou voyeur xeretando o que eu faço.
Eu me ajoelho na cama e olho pelas fendas da veneziana, com medo de encontrar outros olhos me olhando também. Não encontro, nem encontro nada. Está escuro. Não sei se não vejo nada porque realmente não há nada, – cadê o quintal? – porque está escuro ou porque tem alguém na frente da janela tapando à vista. Não distinguo nem sombras, parece haver diferenças de escuro. Pode ser profundidade, contorno, relevo, qualquer coisa.
Medo de escuro é coisa de criança, escuro não faz nada. Se eu tinha ali o medo que realmente tinha, era de outra coisa. Não é vergonha ter medo quando se está sozinho e não há para quem se envergonhar. E esse meu medo era uma sensação estranha na barriga. Não o frio da barriga que se costuma falar, era alguma coisa se mexendo lá dentro. Uma massa pesando, se mexendo devagar, me dizendo para ficar preocupado.
Eu enfrento o escuro, olhando pela veneziana. Ele me intimida como se fosse mesmo alguém me olhando. Convenço-me, muito mais oportunamente do que convictamente, de que não há ninguém lá mas, com a pulga atrás da orelha, olho o quintal também pelo vitrô do corredor. O que eu faria se tivesse alguém lá fora? O pedaço que vejo do vitrô é iluminado pela lua. Não tem ninguém, ninguém onde enxergo. Fecho o vitrô todo pra não ver mais, e nem me verem.
A porta do quarto deixo aberta. Volto para a cama, apago a lâmpada do teto e ligo o abajur em seu lugar. A lâmpada do abajur é mais fraca, mas pouso o livro no travesseiro, junto ao criado-mudo, de forma que, agora, suas páginas estão muito mais claras. O livro e o teto iluminado pela luz que sai por cima do abajur. O resto do quarto está escondido no escuro.
Fico deitado de lado, apoiado com um cotovelo no travesseiro. É uma posição mais cômoda para ler. Demoro chegar ao último capítulo. Paro de ler antes dele para pensar, tentar chegar a uma conclusão de quem é o assassino. É besteira tentar ser mais inteligente que Poirot. Ele não é inteligente, Deus Ex-Machina sabe de tudo e, com sua máquina de escrever, lhe faz pensar na solução.
Viro-me e os olhos, saindo do branco iluminado do livro para o verde lavado sem luz da parede do outro lado, servem pouco mais do que se estivessem cegos. De início, as pupilas retraídas não vêem nada. Conforme se dilatam, parecem encontrar algo, formas, movimento, na parede que parece preta. Erra quem pensa que preto é preto, que não tem tons. Um estalo me assusta. Não vou olhar. Casas antigas estalam à noite. É o frio em suas estruturas doentes de reumatismo dos tijolos e cimento velhos. Vou fingir que tenho certeza de que foi um estalo normal. Um frio bate nos meus pés, descobertos. Incomoda. Puxo as cobertas e me deito de bruços para terminar o livro, com os pés embaixo do cobertor dobrado.
Não descubro quem era, Poirot sim. E o livro acaba.
Com preguiça de me cobrir, rolo de barriga para cima, pensando em algo para enrolar antes de dormir. Acho que não vou me lembrar de nada e que é besteira tentar enrolar assim, mas me lembro das folhas que tenho no meio do livro da escola.
São folhas de árvore, eu coleciono. Tenho duas novas, da mesma árvore, que peguei perto do trabalho. Não sei que tipo de árvore é aquela. Vou voltar lá e tentar descobrir.
Me levanto da cama. É estranho me levantar e ouvir o ranger do soalho contrastando com o silêncio total. Minha sombra na parede, projetada pelo abajur atrás de mim, é estranha também, não me reconheço nela. Busco a mochila sobre a cadeira do canto onde também está o uniforme. Do livro de dentro dela, pego as duas folhas.
No criado mundo, na porta de baixo, guardo o fichário com minha coleção. Cola, tesoura, estojo, guardo lá. Pego também, sento na cama, de costas pra janela. Pasta no colo, cola, folhas, caneta. Uso uma página nova.
De costas assim para a janela, sinto de novo como se estivesse sendo observado. Olho para a janela, por cima do ombro, mas me acho ridículo. Só vejo a janela e sombra, minha sombra, toda esticada por conta da luz do abajur bater na diagonal.
Colo as folhas. Deixo espaço, para escrever o nome e anotar quando souber de quê são. Me abaixo para guardar o fichário de volta na porta do criado mudo. Ele já está bem carregado. Para guardar em pé já fica complicado. Deixo deitado com o estojo em cima.
Quando levanto a cabeça, o sono já se nota. O silêncio é maior, com seus barulhos no fundo, vento, o ruído branco do escuro, da noite. O silêncio é tanto que o barulho do vento fraco parece um redemoinho de almas cercando a casa. E, dentro, parece um fantasma entre as sombras na parede e eu. Esse silêncio surdo que faz sombra.
Deito e me cubro. De costas para a janela, não quero vê-la. Nem vou. Ajeito a cabeça no travesseiro e desligo o abajur. A luz se apaga junto com a lâmpada do abajur. O escuro, ele não perde tempo, pouco depois cobre-me o rosto, os olhos, como um lençol ou capuz preto. Ainda estou acordado, mas não tenho como reagir. Minha cabeça fica leve como se não estivesse mais ali, sobre os ombros, sobre o travesseiro. Meu corpo, se desmancha também… em sombra.