Quarto Dela

In your eyes, the light the heat, I am complete.
I see the doorway to a thousand churches.
I want to touch the light, the heat, I see in your eyes
   — Peter Gabriel, In Your Eyes

Era diferente o quarto dela. Grande, uns cinquenta metros quadrados, até porque era o único cômodo da casa, um quarto e cozinha nos fundos do terreno, banheiro do lado de fora. Paredes azuis de um tom que a gente costuma encontrar em jeans antigos, não em paredes. O teto então, aquele azul marinho que se confunde com preto. Estrelinhas, dessas de adesivos de criança, formavam desenhos que lhe pareciam os das constelações que aparem nos livros de quinta ou sexta série. A porta e a grande janela, que ainda estavam abertas, pareciam grafite escuro de lápis de escola. Fora da janela, havia um roseiral bem fechado, rosas brancas e amarelas que, se você não prestasse atenção, não veria o muro onde acaba. O vento forte do anoitecer trazia um pouco de seu perfume. Móveis eram só o guarda-roupas embutido, quatro portas que se abrem duas a duas, a mesa com banqueta em frente à janela, com o notebook fechado em cima, e a cama muito baixa, quase encostada no chão. Tudo isso, mais o chão e os rodapés, em madeira lisa pintada de preto. Os lençóis e as fronhas eram comuns, brancos. Apareciam pelas beiradas do edredom que tinha estampa imitando colcha de retalhos, todos os quadradinhos com cores escuras também. Iluminação era só a de um abajur no canto. Também de madeira e copa pretas.

Ela fechou a porta (besteira, estavam sozinhos) colocou uma música no celular, parecia fusion ou funk, algo assim instrumental dos anos setenta, e o deixou na mesinha. Acendeu o abajur e fechou janela, só a veneziana. O vento forte e quase gelado continuou entrando, agora com barulho, ainda perfumado.

Ele se abaixou para pousar a mochila no canto, encostada na parede e, enquanto se levantava, percebeu a mistura do cheiro de suor das roupas dela com o do perfume do braço que ela esticou para lhe tocar os ombros e chegar-se mais perto. É um cheiro delicioso de proximidade que o excita como se fosse a própria sensação de lhe encostar o corpo, pele a pele. É engraçado como os poetas desprezam essas sensações íntimas e aparentemente inusitadas. Mas poetas entendem de palavras, não de ações, e suspeito não escreverem sobre isso porque nunca experimentaram. Igual aos moletons velhos que todo mundo usa de pijama no frio. O cinema e a literatura consagraram a sede e as rendas, mas é muito mais romântica a intimidade do abraço de pijama.

Esse cheiro de proximidade o obrigou a procurar tocá-la imediatamente. E foi com a parte do corpo que estava mais próxima. Encostou-lhe o rosto ao braço como se fosse um travesseiro para então abraçá-la pela cintura e apertar-lhe a barriga de encontro ao outro lado de seu rosto. O abraço foi um alívio da ansiedade que guardava de ficarem juntos. Quis ver seu rosto e, apoiando-se em sua cintura com as duas mãos, se levantou e então percebeu que era alguns centímetros mais alto que ela.

Só conseguiu ver o rosto diretamente por uns segundos. Ela, que pensava ser feia, muito envergonhada, abaixou um pouco a cabeça e o escondeu de encontro a seu peito, apertando um abraço. Ele, que sabia que o mais bonito naquele quarto, e noutros lugares onde estiveram antes noutras cerimônias que não esta do sexo, ficou incomodado e com medo de ficarem tristes, já estavam. Sem afrouxar o abraço, pôs-lhe a mão no ombro, por dentro do colarinho da camisa que estava torto já. Afagou-lhe com firmeza o pescoço, um afago quente que a excitou e fez suspirar, sentindo-se desejada e fantasiando sobre o que fariam já sem roupas daí a alguns minutos. No mesmo movimento do afago, que não aceitava ser contrariado, ele guiou seu rosto para cima, obrigando-a a olhá-lo diretamente. Ela tinha um receio que ele não conseguia admitir. Continuou com a mão até proteger-lhe todo um lado do rosto e, sem planejar, acariciou com a ponta de um dos dedos uma pequena marca que encontrou. Algo nela mudou, um alívio nos músculos do rosto, um brilho nos olhos, algo que ele entendeu como tê-la agradado e ela ficar à vontade. Também sem planejar, ele sorriu, sentindo-se aceito e retribuído e ela, em resposta, sorriu também, com a cara que os ditos bobos fazem ao chorar de alegria, sentindo a mesma coisa.

Levaram mais de uma hora entre beijos. Ele a beijou com vontade como há muito não beijava alguém. Ela o beijou sem pressa de acabar, como há muito também. Essa uma hora de beijos foi também o tempo que levaram para tirar a camisa um ao outro. E as tiraram quase sem querer, pois o plano das mãos não era despir, mas sim tocar e, a cada beijo, elas entravam mais por dentro das camisas, procurando ombros, braços, costas, o veio entre os peitos, a barriga. Nos acostumamos a pensar, preconceituoso que somos, que esse passar mãos cada vez mais atrevido seja o ritual da busca lasciva das zonas erógenas. No entanto, é só a gostosa perda da timidez e do receio bobo de infringirem os limites do abraço. A cada pequeno movimento das mãos, desabotoar um botão ou soltar o pano um pouco mais para o lado era conseqüência e não parte do plano para os finalmentes.

Quando as camisas caíram na cama, onde já haviam se sentado e estavam já debruçados, lado a lado, grudados, cada um com o corpo apoiado num cotovelo que lhe sustentava para não dizerem que estavam deitados, acharam por bem cada um tirar os próprios sapatos, meias e calças. Fizeram isso rápido e meio sem jeito, mas ela, que acabou primeiro, deu um sorriso sapeca, girou rápido para ficar de bruços e conseguir alcançar o interruptor do abajur para apagá-lo.

Ele teve medo de se atrapalhar no escuro. Não enxergava nada. Não enxergava onde jogar as calças, mas, sentindo suas mãos em seus ombros, sua cabeça seu rosto em seu pescoço e seus peitos, ainda com o sutiã branco de algodão sem renda, em suas costas, apenas largou-as e virou-se para se orientar tateando no corpo dela. Foi surpreendentemente fácil achar-lhe a cintura, com uma mão de cada lado e o rosto, com a boca, guiado por seu calor.

Beijou-lhe toda a frente e os lados do corpo devagar, como se lhe beijasse a boca, tirando do caminho a roupa de baixo, conforme a boca a encontrava. Quando se viu com a calcinha dela amassada na mão, feito uma bolinha de papel, deitou-se de bruços com a cabeça entre suas pernas abraçando-a. Ela, num primeiro momento, sentiu-se nervosa, constrangida até, mas logo, os beijos sinceros dele, escondidos entre suas pernas, a relaxaram. Apertou os olhos fechados, mordeu o lábio e, com uma mão, segurou-o de encontro a si para que soubesse que podia continuar o quanto quisesse. Com a outra, sem perceber, fazia cafuné. Ele não queria parar.

Uns vinte minutos passaram até lhe cansarem as pálpebras que forçava bem fechadas. Sentia-se toda babada dele que lhe apertava mais forte o quadril e chafurdava com gosto a cada vez que a percebia contrair com força um músculo diferente.

Ela então parou o cafuné para segurar-lhe a cabeça com as duas mão sobrepostas na sua nuca e jogou-se para trás usando o peso do corpo bonito para puxá-lo mais para si. Só aí abriu um pouco os olhos, tinha o rosto voltado para cima, para o teto e o escuro do próprio quarto a surpreendeu. A príncipio não viu nada. Conforme se acostumou, conseguiu focalizar algumas estrelinhas fluorescentes do teto e foi como se elas fossem de verdade e estivessem sozinhos ao relento sob elas. Até sentiu diferente o ar gelado que entrou pelas frestas da janela. Não quis mais olhar para baixo com medo da realidade do mundo, mas voltou a fazer cafuné, agora com as duas mãos, e abriu um sorriso feliz, de lábio mordido, porque daí a pouco gostará de deitarem-se a descansar olhando juntos as estrelas.