Sangue

À porta do quarto grande de cortinas brancas fechadas, o tom bege avermelhado da decoração, iluminada só pelos dois abajures da cabeceira da cama e pela televisão muda sintonizada na novela, lembra um quarto de hotel onde se teme flagrar um casal ao início de algum ritual romântico. Um passo para dentro e o cheiro de algodão, gaze, lençol lavado a quente e álcool em gel chamam à realidade antes mesmo de se ver a cama, para uma só pessoa, amparada por grades de dois palmos de altura.

Não há visitas, graças a Deus, que nestas horas só atrapalham. Mas no aparador próximo à janela, estão duas garrafas de vinho, fechadas, e uma cafeteria, cheia, que, se ele puder se levantar, talvez gostasse de experimentar.

Do senhor deitado nela, a careca e a testa são o que está mais pálido. As bochechas, mesmo tendo passado muito tempo protegidas do sol pela barba, que só foi tirada há cinco dias quando entrou nesta quarto, ainda têm alguma cor, até porque ele, enfastiado, de vez em quando mexe a cabeça de um lado para o outro, a olhar para a porta, para a cortina, para a televisão. As bochechas tinham alguma cor rosada mas era da fricção contra a fronha.

Uma enfermeira está com a agulha enfiada no acesso do interior de seu cotovelo direito. Ela tem os olhos bem próximos da seringa. Junta-os como vesga para prestar atenção ao sangue que vai extrair. Mas o líquido que vem parece um chá fraco só avermelhado.

Ela logo olha para o médico com cara de contrariada como a apontar-lhe alguém que lhe fazia um desaforo e dizer-lhe: “De novo. Desisto.” A seringa enche rápido daquela aguadilha. Ela tira a agulha brava, com pouco cuidado.

O sujeito deitado está, como esteve durante o procedimento todo, procurando pelas paredes coisa melhor para fazer, uma sombra que lhe distraia. Alguém que lhe disse “Acabou, pode ir embora.” Ao que ele responderia “Para onde?”

O médico sai enquanto a enfermeira joga fora o material descartável. Volta com uma maleta plástica verde. Coisa cafona que parece comprada na 25 de Março. Ele a põe sobre o criado-mudo e abre. Na verdade, é uma máquina de escrever portátil, verde mesmo, mas de metal. Só a tampa e o fundo são do plástico que parece de loja de traquitandas.

Na parte de cima deviam estar os martelos dos tipos. Para quem nunca viu uma máquina de escrever: quando se aperta uma tecla, ela faz funcionar um martelo que bate o tipo (o carimbo da letra) de encontro à fita de tinta e ao papel. Em vez dos martelos, há tubos, desses de sonda, de soro. No lugar do carro (carro é o rolo onde se prende o papel), há um cilindro de vidro com um líquido leitoso.

O médico, a enfermeira e mais dois ajudantes que vieram procurar serviço, colocam agulhas descartáveis nas pontas dos tubos e os espetam em sua testa. Firmam com esparadrapo.

A enfermeira puxa uma cadeira e tecla algumas letras. O líquido leitoso borbulha. Parece leite fervendo embora perceba-se que não, pois se fosse embaçaria o vidro. O médico se mete e, em pé a seu lado, bate umas dez vezes a mesma tecla. O sujeito se inquieta, mexe a cabeça, de saco cheio. A enfermeira começa a teclar no ritmo de quem pensa sem pressa para escrever uma carta.

Lá pela terceira ou quarta linha, o sujeito pára de vez de se mexer, o rosto deitado de lado, olhos em direção à cortina. Talvez esteja vendo as garrafas e a cafeteira. O olho percebe-se que não está morto porque ainda tem aquela cor, aquele preto lustroso que cismam chamar de castanho escuro. É pela cor que se percebe que faz foco, que olha distante, contemplativo, encantado por algo que não vê.

A enfermeira lembra que já viu esse olhar em pacientes em choque após acidente. O médico se lembra de casos dos quais apenas ouviu falar, e que sempre acreditou serem lendas, de gente enterrada viva em estado catatônico.

Os dois acham que estão perdendo tempo e falam em desistir. Mas continuam porque percebem que ele mexe os olhos incomodado, e que a primeira lágrima escorre deles.

Rua da Miséria

A casa está toda fechada, inclusive a cortina de pano grosso, quase cru, na janela da frente que, única sem veneziana, deixaria passar luz ou o olho do curioso. A cor bege pálida já muito gasta pela chuva que caiu desde a última pintura é muito diferente do verde e do rosa antigos. As roseiras amarelas não existem mais. Pensei que fosse crime derrubar. Só a porta da garagem ainda é igual, branca, também fechada.

Eu subo a avenida, o caminho de todos os dias para a escola. Ela agora parece mais plana. Até soa estranho falar em subir. A rua da escola sim, essa continua uma boa subida. Mais fácil que antes porque minhas pernas já são maiores. A escola também está toda fechada, trancada, mas na esquina ainda há o quadro dos telefones. O usávamos de escada para pular o muro ou de poleiro para olhar por cima. É isso que faço agora, de novo, depois de tantos anos. A quadra a escola, lá embaixo, depois do muro, parece bem menos do que antes. O cimento que me esfolava os joelhos e cotovelos quando caía deve ser o mesmo, mais gasto agora pelo uso e por, tenho certeza, nunca o terem remendado. Puseram uma grade dali para o pátio. Deve ter sido ideia de algum professor que teve seu carro acertado pela bola de handebol. A luz está apagada. Não dá para ver se ainda estacionam carros. Nem se ainda há alunos, serventes ou professores. Só os vejo na minha imaginação, que se diz memória, jogando, sentados aos degraus da arquibancada ou aquecendo os braços a tacar a bola contra o muro da subida. Não os ouço, que imaginação ou memória não falam tão alto, quiçá sejam mudas. Mesmo o barulho das bolas, dos passos, da saliva nos beiços dos casais. Nada tem som. Talvez essa imaginação memoriosa seja também fantasmagórica, tudo isso seja um mundo de fantasmas no palco já bem diferente que é o presente, seu futuro. Esses fantasmas, onde estarão seus corpos agora, seus ossos? Ainda têm carne, estão vivos? Serão então outra coisa, à parte dos fantasmas que vejo.

Não quero andar outra subida. Contorno a escola pela rua do posto de saúde. Passo em frente ao portão do campo dos padres, onde a criançada perdia o cabaço no meio do mato. A igreja antiga, que nem existe mais. A catedral tão grande e de um silêncio ressonante que não sei explicar.

A rua principal, cortada pelo jardim pouco antes da escadaria, parece aquelas alamedas clichés de filmes de terror. Os degraus largos, vinte ou trinta, nem são muitos. A sacada, antes da porta, de onde meu pai assiste à missa todo domingo à tarde, essa continua igual, exceto por não estar lotada. Na verdade, está vazia, assim como toda a igreja. Não é dia de missa, nem de catequese. Não se distribui pai. Nem sei que dia é. A estante das velas, não a reconheço. Queria acender uma. Mas, chegando perto não lhes sinto o calor, nem ouço o barulho do fogo queimando o plástico que as embala. Devem ser fantasmas também.

E, como fantasmas, não existem. Não existem no presente. Ficaram no passada que é a única coisa que conheceram. Cada um revive o seu, sem se trombar, solitários assim. Não chegam ao presente. Não têm futuro.

Corpo Tatuado

Outra coisa de que eu gosto muito é de passear por parques, jardins grandes, aquelas praças com muitas árvores e flores, arbustos bem podados. São Paulo tem muitas coisas chamadas de praças mas, cidade feia, imunda, a maioria não se pode considerar para passear nem de dia, abandonadas e tomadas pelo lixo e pelos bichos. Os poucos bem cuidados, ou ao menos transitáveis, o Villa Lobos, o Ibirapuera, o Buenos Aires, o Trianon, fecham ao final do dia. Não parecem feitos para o trabalhador que ganha a vida em horário comercial e, durante a semana, só pode passear à noite.

Para nós sobram as ruas arborizadas dos pouquíssimos bairros agradáveis da cidade e aqueles terreninhos de esquina com duas ou três de árvores protegidas por espinheiras que algumas pessoas teimam em chamar de pracinhas. Normalmente têm até um ou dois banquinhos de concreto em volta, onde a molecada fuma maconha para não deixar cheiro em casa.

Esse foi um dos motivos de eu encolher este bairro quando me mudei para cá. Pouco movimentado por causa das ruas tortas e estreitas por onde não dá para cortar caminho e também por tantas casas grandes e baixas que o tornaram que fazem com que a população não seja grande como em bairros mais afeitos à especulação das construtoras. O alto das ruas é todo fechado, como em alamedas, por árvores antigas dos dois lados, cujas copas se tocam formando túneis compridos. Alguns desses túneis ficam escuros, pois as árvores acabam cobrindo as lâmpadas dos postes. Mas não ligamos. A tranqüilidade que isso tudo traz ao bairro compensa. Hà muitos anos não se houve de violência por aqui. Muitos mesmo. Coisa de antes de eu me mudar para cá, e isso já tem quase vinte anos.

Dizem que foi um senhor já de alguma idade quem a encontrou. Chegou em casa, tomou banho, jantou, assistiu o jornal e, enquanto a mulher assistia a novela, saiu com o cigarro para se sentar naqueles banquinhos do jardim da esquina, na esperança de passar alguém para conversar. Era comum outros maridos aparecerem por ali. Alguns por não suportarem a novela, outros pelas esposas não suportarem seus cigarros, outros por não suportarem as esposas ou vice-e-versa. Alguns só por quererem um lugar sossegado para ouvir o futebol com o radinho de pilha colado à orelha, mas com esses não dava para conversar direito, entretidos que ficavam com a tagarelice ininteligível do narrador e nervosos que ficavam com o dois times mais populares do bairro em situação ruim no campeonato.

Logo que acendeu o cigarro, deu a primeira baforada, tirou-o da boca entre os dois dedos maiores da mão direita e já procurou pelas duas pontas da rua se aparecia alguém. Não encontrou ninguém mas estranhou o formato da moita mais próxima do banco. Sempre bem cuidada pelos moradores, ela estava deformada. Alguns galhos, envergados, se debruçavam sobre a calçada, outros de amontoavam feito uma vassoura ou escova de dentes velha. Logo imaginou um vizinho menos civilizado ou o pessoa das produtoras da vídeo que gostavam de gravar externas por ali. Pensou que tivessem jogado lixo de encontro ao canteiro.

Levantou-se pra olhar já preparando a indignação e viu que não era lixo, mas uma mulher. Enquanto pensava que fosse uma mendiga bêbada que se tivesse jogado ali de qualquer jeito para dormir, viu que não era. As roupas muito limpas e bem conservadas, a pele e os cabelos também muito bem conservados. Estava caída de costas, rolada, com o rosto de lado, o olho esquerdo entreaberto, braços encolhidos, cabelo espalhado, as costas nuas por causa do vestido bem aberto atrás, o ombro esquerdo e o braço também porque o ombro do vestido deslizou-lhe até o cotovelo. Tinha uma tatuagem muito bonita, preta e vermelha, uma mulher oriental, de quimono, em pé à beira de um penhasco que dava para o mar, tocando um instrumento de corda para a lua. A tatuagem lhe tomava as costas todas e era muito bonita. A mulher era muito bonita. Ambas eram.

Chamou a ela, que não respondeu, e tentou ajudar, mas pelo tão fria que sentiu quando lhe tocou as costas percebeu que estava morta. Gente jovem, bonita, ele pensou, assim tão bonita, não devia morrer. Nem assim, jogada de encontro a um arbusto na rua, nem de jeito nenhum. Pensou se tinha de lhe procurar a bolsa, o telefone ou a carteira com os documentos, mas só achou o quão mais bonita ela era e desistiu. Largou o cigarro e foi para casa, ligar para a polícia, imaginando o inconveniente que seria eles ali de noite e que iriam querer lhe tomar depoimento e que, para isso, o deixariam esperando por horas num banco da delegacia.

A mulher se assustou e não queria que ele ligasse. Mas ele o fez quando ela saiu para ver o corpo e coletar informações para a conversa na feira no dia seguinte. Quando voltou e viu que ele estava no telefone, ralhou pela imperdoável desobediência doméstica.

A polícia não demorou como quando reportamos um assalto ou como quando o assassino ainda está de arma na mão. Corpo morto frio, chegou em menos de dez minutos a primeira viatura, em dez, de uma vez, mais cinco. Duas estacionaram sobre a grama do jardim, outra sobre a calçada, e ainda outra atravessada, pior que fila dupla, atrapalhando a passagem. Só as duas primeira tiveram cuidado de encostar ao meio-fio, talvez pelo mesmo motivo de terem sido as duas primeiras a chegar.

A primeira viatura estacionada sobre a grama era do oficial. Ninguém encostou no corpo antes de sua chegada. Em pé, ele a olhou por todos os lados. Depois se ajoelhou ao lado e olhou de perto em mais detalhes. Pôs-lhe a mão na tatuagem e no pescoço, talvez para certificar-se da morte como reportada ao 190. O soldado que tentou puxar conversa fazendo-lhe algum comentário sobre a situação foi quem recebeu a ordem ríspida que serviu de repreensão: “Perícia!” Foi o homem para o rádio de sua viatura chamar os peritos.

Curiosos vieram a noite toda e as viaturas foram embora. Ficou só a do infeliz do rádio, a tomar conta do corpo e da cena. De manhã cedo, era sábado já, a esposa do senhor que chamou a polícia ofereceu-lhes pão com margarina e café com leite que eles acharam que deviam recusar, mas aceitaram, não tanto pela fome, mais pelo fastio de terem passado a madrugada em pé na calçada, dois passinhos pra frente, dois para trás, balança a cabeça, olha para os lados. Naquele tempo, ainda sem WhatsApp e YouTube, isso era infernal.

Pensaram que iriam embora quando chego o carro da perícia, mas não. Outro teve de ser chamado. A situação parece que não foi claramente reportada quando do acionamento. Não disseram que o corpo era de uma mulher e que estava em área pública. Para essas duas situações há pessoal específico, especializado. Afinal, são peritos.

Chegaram mais dois carros perto das onze, com dois peritos e quatro auxiliares. Chegou também outra viatura com dois novos policiais para render os que viraram a noite. Os peritos tiraram fotos e mexeram no corpo, e tiraram mais fotos.

O senhor que encontrou o corpo volta e meia saia de casa, curioso como todos, por saber notícias sobre a “Dália Negra de São Paulo” (foi como os jornais a noticiaram no dia seguinte). Num bairro tranqüilo onde fofocas de adultério e brigas de família eram babado badalado, imaginem o que era essa movimentação em torno de um crime. Ouviu quando o perito cantou ao oficial que preenchia o relatório: “blá-blá-blá morte blá-blá-blá provavelmente por causa do ferimento profundo a faca blá-blá-blá costas blá-blá-blá costela blá-blá-blá sobre a tatuagem de uma figura feminina.”

Ele não havia percebido nada de facada. Ficou curioso. Tentou puxar conversa com os policiais, com o perito, não lhe deram atenção. Entrou e saiu de casa, telefonou aos filhos, falou com a esposa e com os vizinhos, que se amontoaram de vez, por várias vezes desrespeitando a faixa plástica amarela e preta que isolava o espaço restrito à polícia.

“Falta de respeito aos moradores do bairro”, disseram sobre não receberem mais o que comentar entre si. Uma garota bonita, morta a faca na pracinha dos maconheiros e dos tiozinhos, era assunto de utilidade pública. Prostituta? Será que a prostituição chegou aqui como já chegou antes ao Jockey e a Indianópolis? E trouxe consigo a violência que associamos a ela? A falta de colaboração da autoridade com a fofoca gerou mais fofocas, cada uma para uma direção. Já diziam que era amante de político. Que era candidata a atriz, enganada no testa do sofá. Sobrinha abusada de algum antipático da rua de cima. Amiga da amiga da filha de alguém.

Metade das fofocas que já estavam confirmadas foi jogada por água abaixo quando chegou o marido da vítima. Buscado em casa por uma viatura, aproximou-se devagar com medo do que já lhe haviam contado.

“É ela sim.” Ainda ninguém que estava perto sabe dizer se estava emocionado ou perplexo. Ou aquela outra coisa que são as duas ao memo tempo.

“É ela. Mas, é estranho. A tatuagem. A tatuagem dela não era assim. Era uma mulher jovem, em pé. Sorrindo confiante.”

O senhor que a encontrou olhava o marido, já de antemão sentindo-lhe pena. Pela estranheza dele, curioso, olhou-a de novo. A tatuagem não parecia já nem a de que se lembrava nem a que o suposto marido descrevia, parecidas que eram. A tatuagem às costas do corpo morto era de uma velha. Uma velha que se arrasta, quase morta (diria os jovens preconceituosos e impacientes que nada sabem sobre o tempo ou a velhice). Uma velha curvada, encolhida, como a garota morta, de cabelos brancos que tocam a grama do chão, apoiado seu peso sobre uma vara que já virou bengala e é a única coisa que a evita de se esparramar pelo chão. A tatuagem é desalentadora.

A garota. Sua tatuagem. A seu modo cada uma morreu.

Tumor

São dois cirurgiões na sala de operações. A cirurgiã principal vem acompanhando o paciente periodicamente em seu consultório foi quem indicou a necessidade da cirurgia. O residente, com quem conversa sobre o caso e a quem explica as complicações, implicações e indicações. Além deles, há anestesista, instrumentista, assistentes e paciente.

Pela conversa da cirurgiã com seu residente, a operação não parece complicada, ao menos para alguém que vive disso. Um cirurgião (cirurgiã) cardíaco. Quantos corações ele opera por ano? Quarenta? Cem? Duzentos? Não faço idéia. Mas que seja uma dúzia, ainda assim deve haver procedimentos que lhe sejam corriqueiros e outros que demandem mais cuidado e estudo por não serem tão familiares ou por serem difíceis mesmo.

Este parece ser um procedimento desses mais corriqueiros e que não demandam técnica rara. O paciente está na casa dos trinta, aparenta boa forma física, saúde, mas tem a condição é grave. Há algo no coração, um tumor ou coisa que o valha. Algo muito ruim que lhe compromete as funções com agressividade e que os médicos por experiência sabem não valer a pena tentar identificar antes de extirpar.

A medicina avançou a esse ponto em que sabe inúteis seus diagnósticos frente à urgência por ação e resultado. Não tanto quanto à correção de seus procedimentos, é certo. Ainda há muita discussão sobre qual o correto tratamento para cada caso e se tais e tais tratamentos mais ajudam ou mais atrapalham e sobre onde residem as verdadeiras causas de alguns males. Ao menos há estratégias, ainda que sejam orientadas por estatísticas. Hoje opera-se o coração a este tipo de paciente. Os antigos operariam-lhe o fígado. Talvez ajudasse também. Talvez os certos fossem eles. Talvez esses pacientes bebessem tanto para esquecer da doença que matassem o fígado, por isso os médicos achassem que lidavam com doença hepática. Talvez de tanto chorarem, no futuro, outra geração de médicos, creia ser doença oftalmológica. Riem os médicos. O paciente sedado, totalmente sedado graças a D”s, está aliviado de não ouvir-lhes as galhofas.

Quem nunca viu uma cirurgia destas, costuma imaginar os médicos como compenetrados relojoeiros, com lentes, pinças e outros equipamentos todos da mais alta precisão, trabalhando microscópicamente como quem escreve um nome num grão de arroz. Quem vê pela primeira vez, não consegue evitar de se impressionar com as serras de marcenaria, algo que parece morsa mas que força ao contrário, presilhas, o tamanho das lâminas, a força, o tranco, para se separar ossos e abrir o peito do paciente, o tamanho das toalhas que secam o suor que escorre da testa da cirurgiã, as piadas e esforço de oficina. Não é coisa para qualquer um, para qualquer médico. Não basta estudar e treinar. Precisa ter força. Força e estômago. Não é fácil abrir o peito de alguém. Quase tão difícil quanto — quem já tentou, imagine — abrir o próprio peito, o coração, a outra pessoal, nem digo “a si mesmo”, porque isso todos sabemos ser impossível.

As cicatrizes que ficam dessas cirurgias são sempre medonhas. Tortas, compridas, largas, manchadas. Impressionam. Quem as vê critica. Pensa serem resultado de relaxo. Não considera que o cru peito humano é mais forte e frágil que o de uma ave tenra a custo destrinchada e servida à família no almoço do feriado. A marca indisfarçável do peito violado oprime o amante mais do que, na literatura romântica, a virgindade perdida.

Conta a cirurgiã, como exemplo, de ter conhecido uma garota linda, corpo maravilhoso, perfeito sob o vestido de crochê canelado, sem decote, gola careca, muito justo. Percebia-se todo o desenho do seio, a marca do mamilo, o contorno e a textura da auréola. A calcinha sem costura que não marcava a pele firme do quadril e deixava perceber o formato do rego e o volume da virilha. Linda e com o corpo perfeito. Mas, após abrir-lhe o zíper das costas que lhe acompanhava toda a coluna cervical, o vestido desceu aos poucos como a cortina que se abre à frente do palco mostrando, entre os dois peitos que davam água na boca, a cicatriz. Pouco menos de dois palmos, de altura, quase um dedo de largura, pálida, mal desenhada. “É impressionante demais até para nós que estamos acostumados. Ainda bem que ela se ofendeu com minha cara, broxou e foi embora. Eu não teria presença de espírito para continuar. Imagina para quem nunca viu.”

Essa frase não saiu bem do jeito que ela pensava. Ela (pensando bem) se arrependeria depois. Falou correndo pensar. Ficou uma frase simplista assim mesmo, porque ela se afobou com o sangue que juntava no peito aberto. Um corte desses no peito verte bastante sangue. É muito esforço (e desespero) para manter limpo. Estancada a hemorragia, ou apenas sugado o sangue, mesmo os médicos nunca têm certeza, o coração está exposto.

A equipe toda olha. É uma reverência ritual que não conseguem evitar. Um órgão que trabalha tanto e representa tanto mais. “Está aqui, é bem grande mesmo.” A cirurgiã apresentou a doença que aparecia como um grande encrustado mais ou menos ao meio do órgão e que se espalhava em tentáculos que serviam de correntes ao seu redor. Além da ferida, por si só cruel e profunda, estranguláva-o.

O residente tem receio de ser chamado a intervir. “Você tira?”

A cirurgiã não pensava em deixar-lhe o crédito. Para a remoção, usou, um alicate, lâminas e um instrumento que, de tão grande, parecia uma ferramenta: um podão, a tesoura de podar roseiras, ou uma daquelas de destrinchar frango. Precisou de mais de uma hora e meia de muita força e esforço e de pouco cuidado para não machucar o paciente, foi violenta mesmo, bruta. Suava. Ainda mais quando, estressada, achou que ele merecia.

Quando tirou aquela massa estranha, de cor inorgânica mas humana, parecida com  uma pedra de onde saíam galhos retorcidos de roseira ou uma trepadeira trançada cheia de espinhos, olhou-a com respeito e bufou, livre enfim da trabalheira que teve por conta de um retardado que não se cuida.

Jogou a massa, com nojo, na bacia de metal que lhe ofereceram. Dá o diagnóstico: “Amor daninho. Era bem grande esse. Não sei como não o matou.”

O residente achou-se na obrigação de fazer algo: “Fecho?”

“Pode fechar”

“O rombo que ficou é grande. Colocamos algo nele?”

“Não faz caso. Só estanca e cauteriza. Esses tipo sempre reincidem. Antes de ficar bom, pega outro igual, talvez pior.”

 

Maze

“Sonhar acordado” é uma expressão curiosa, mas que parece mesmo se aplicar bem para aquelas situações em que estamos avoados (outra expressão curiosa) pensando na morte da bezerra (outra). Como quando dormimos, esses sonhos às vezes calham ser pesadelos, manifestações de preocupações, inquietações, lembranças mal enterradas de casos mal resolvidos (desculpe-me o pleonasmo).

Terreno fértil para sonhar acordado, voltava o sujeito para casa. Aquele caminho monótono de todo dia. O peso da nuvem de entulho sobre a cabeça escurece o céu e arca o pescoço, força a vista para baixo. Experimente qualquer dias destes e verá, perceberá, que dá para andar quilômetros assim, qualquer pessoa, quando automatiza os seus caminhos rotineiros, quando não presta mais atenção e põe o pé na rua já a pensar em uma maneira de variar, de mudar, de escapar para um mundo paralelo onde ficasse sentado no banco da praça e o mundo se metamorfoseasse a seu redor tornando-se a feição da vontade do momento. A pessoa anda, pensando, cabela baixa sem perceber as pedras chutadas, olhar ao longe sem atentar às ruas atravessadas, atenção perdida que não nota os encontrões evitados.

Foi voltando nessa perdição de nuvens de sonhos, conversas de louco consigo mesmo e rabiscos num quadro branco que ele nem percebe que pendurou à frente imaginária de suas vistas, que o sujeito, de repente, se viu num labirinto. Ele não consegue se lembrar de como chegou ali, mas de alguma forma sabe (afinal de contas, voltava pelo mesmo monótono caminho de todos os dias). Tanto sabe que, logo que levantou os olhos e viu algo diferente que não consegue descrever, percebeu que estava num labirinto, um maze, desses comuns de se ver em jardins de mansões e palácios em filmes, desenhos animados e games. Por menos de segundo, viu-se pelos olhos do iluminado, voltando ao hotel com o machado na mão. Depois pelos de um Pac Man sem bolinhas para recolher enquanto fugisse dos fantasmas.

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Olha para as paredes, iluminadas de bege pelo sol e pela lua do já finalzinho de tarde. Nem precisa prestar atenção à sua volta e já se desenharam em sua cabeça imagens e imagens de todos os labirintos de verdade e de ficção que já havia visto antes. Completou-as com os detalhes dos inexistente que achou que mereciam existir pelo requinte da elegância simplória que lhes reconhecia e também pelos que julgava serem impossíveis não existir, posto que de sua existência dependia toda a coerência do universo tal como conhecido.

As paredes são altas, uns bons metros de altura, exageradas para os labirintos de jardim de filmes, para alguns de verdade onde já esteve, onde já brincou. Logo se lembrou do de uma cidade que visitou no sul. Estreito e, ainda por cima, mal aparado. Não dava para andar sem esbarrar nas paredes dos dois lados com os ombros. A forma circular, o tinha feito compará-lo a um rocambole. Este não. Os corredores muito largos e as paredes altas, em vez de agigantarem o labirinto, apequenaram-lhe. A ele que, tivesse encontrado uma fresta, fugiria dali como rato ou barata. Mas não viu fresta, ao menos não suficiente para que passasse. Este labirinto devia ter sido construído para impedir a fuga de ratos de seu porte.

Procurou uma referência no alto. Foi então que as dimensões realmente o impressionaram. Do céu, só se via o azul pintado de poluição. Tanto o sol que se punha quanto a lua que o refletia, estavam tão baixos que não eram visíveis. As sombras eram tão longas que cobriam todo chão e também as partes mais baixas das paredes, que lhe estavam ao alcance. A luz, fraca e fria, parda, não era suficiente para que sua espinha não gelasse junto com a noite que ia chegando. Ainda assim, não havia no céu nenhuma estrela, nenhuma nuvem ou pássaro que pudesse usar como guia.

Lembrou-se do conselho de, para sair de um labirinto fechado, coberto, seguir sempre a mesma parede, dobrar as esquinas sempre na mesma direção, e só dar meia-volta se chegar num beco sem saída, ainda assim, seguindo a mesma parede.

Pôs a mão na parede à sua direita e a seguiu. Dobrou à direita na primeira esquina e em todas as outras em que pode escolher, não tirou a mão da parede, metódico como deve ser quem precisa acertar. No receio de se confundir e piorar a situação, andou de mãos dadas com a parede, com o próprio labirinto. Andou bastante, até as pernas se cansarem quase tanto quanto a cabeça, para se tocar de que essa parede não se conectava a nenhuma outra, como um biombo, que não levava à saída. Que ele andava em círculos e que já havia voltado umas quatro ou cinco vezes ao mesmo lugar.

À sua volta, as fachadas das paredes eram tão monotonamente parecidas que ele nem conseguiria dizer como percebeu que o lugar era o mesmo, que andava em círculos, mas percebeu ou, talvez por medo de assumir de vez que estava perdido, aceitou. Já havia voltado várias vezes àquela rua igual à outras, àquela parede como as outras, pelo mesmo caminho, pela mesma parede, pelas mesmas esquinas, sem saber como sabia isso. Como se reconhecesse o calor deixado por sua mão direita quando passou por ali antes. Como se desconfiasse de nunca ter saído do lugar.

Tentou a mesma estratégia com a mão esquerda na parede à sua esquerda, dobrando sempre à esquerda, com cuidado de não desgrudar dela, já estava um começou escuro de noite, pintado de azul petróleo como em desenho de criança. Novamente, mas agora já mais logo, percebeu que andava em círculos.
torchinamazePerplexo, é assim que se diz o confuso orgulhoso, parou olhando para o alto das paredes a admirar sua perdição. Nelas enfim reconheceu seu bairro, as fachadas dos prédios de seu quarteirão.

Deu a volta ao quarteirão procurando sua rua, seu prédio. Deu duas voltas. Em nenhuma encontrou sua rua, menos ainda seu prédio. Havia algo de deformado. Faltava, ou ele é quem não percebia, um dos lados do quarteirão. O seu lado.

Pensou em procurar por um vizinho, ela padaria, pela farmácia, alguém ou algum lugar onde pedir ajuda. À porta da farmácia, olha para dentro. Não havia. Não havia dentro, não havia como entrar. A frente era chapada, sem relevo, sem entrada. Não havia reentrâncias ou relevo nos muros, ou beiradas, para subir e pular para dentro de algum. Não havia quem chamar. As fachadas, os muros, as grades e portões, eram imagens chapadas, projetadas, como fotos, como slides. Pensou daqueles livros infantis em que você monta um pedaço de uma cidade recortando e dobrando, e colando, edifícios de papel, hospital, igreja, escola, inabitados,  com portas e campainhas chapados que não adiantam em nada. Lembrou-se de uma vez em que, criança, montou uma dessas sentado no coberto da área de serviço e viu uma formiga subir no mapa e caminhar pela rua, visitante, única alma viva em sua cidade-fantasma. Imaginou-se formiga desorientada numa maquete de bairro feita de papel e cartolina, decorada com recortes de revistas e canetinha hidrográfica. Bairro de predinhos baixos que sobem muito alto, grudados, como um muro de arranha-céus geminados.

Não sentia o frio da noite escura. Céu preto sem estrelas nem lua. Os prédios tinham a iluminação esperada dos postes a esta hora da noite, embora não houvesse postes. A luz não tinha de onde vir. O vento, o frio, tinham, mas não vinham. Formiga sente frio? Talvez fosse isso mesmo. E a iluminação viesse de fora dos limites do labirinto, de alguma lâmpada ou abajur da casa do menino que brincava.

Já estava cansado, cansaço de saco cheio que faz a cabeça doer.  Cansaço de não ver saída, de acreditar numa metáfora absurda, embora tenha certeza de que alguma saída existe, e de que é óbvia, e de que somente ele que está dentro não a encontra. Imagina a criança olhando de cima aquela maquete já enfastiada da brincadeira. Olhando o labirinto numa revista de atividades, dessas bem primárias que se compra em bancas de jornal. Olhando-o com um lápis colorido na mão e se achando o máximo por resolvê-lo tão facilmente. A criança marca o caminho com um risco todo torto e bem forte do lápis vermelho. Inconscientemente, ele procura o risco e não o encontra. Admira-se de ter perdido a noção e tentado salvar-se pelo que imaginou.

Imaginou mais. Os donos do castelo que tem o maze no jardim. Seus convidados em casais brincando de esconder para namorar escondido nos caminhos. O adolescente que se preocupa mais em fugir dos caçadores e sobreviver do que em passar de fase no videogame no fliperama da João Batista. Todos a olhar de cima, a verem ele e a saída que ele não via.

Mais cansado ainda por estar cansado, sabia que não ia conseguir. Olhou para os lados, para cima, procurando novidade. Uma informação nova que lhe ajudasse. Não achou, mas só se desesperou mesmo, e desatou a chorar, quando percebeu que não tinha mais nada que pudesse fazer além de se comportar como se ainda tivesse esperança.

Baile de Máscaras

Chegando ao baile, é hora de pôr a máscara. Coisa ridícula que eu vinha escondendo no bolso interno do paletó. Máscara de material sintético preto, macio, parecido com couro, cheia de filigranas feitas com strass, miçangas, paetês, lantejoulas, purpurina, essas coisas que as professoras do primário nos dizem para usar como enfeites em coisas que elas mesmas não teriam coragem de vestir. Eu rio, mal humor meu. Na verdade, apenas me sinto ridículo em entrar fantasiado numa festa. Espero que o taxista não me veja vestindo-a. Espero também que ninguém lá de dentro veja. Prefiro que não me reconheçam e não saibam que sou eu aqui pagando mico como todos os outros convidados.

Me parece tão antiquado isso. Cafona. Baile de máscaras. Todos máscarados como no cartaz daquele filme dos tons de cinzas, ou pior, como no do Kubrick. Implico com essa mania de quererem mandar nas roupas dos convidados. Todos os homens de camisas brancas e ternos pretos. Todas as mulheres de vestidos pretos. Idéia da aniversariante.

Devo ser o último a chegar. Fingi ter algo para fazer no trabalho e procurei chegar quando achei que a festa se encaminhava para o bolo e seus parabéns. Já não há mesmo mais nada salgado onde devia ser a mesa do buffet. Alguns garçons e garçonetes, também mascarados, mas de ternos e vestidos brancos, retiram bandejas vazias e limpam migalhas que me parecem ser de massa podre, de petit fours talvez.

Outra coisa que me incomoda nessas festas é não conseguir conversar. O ambiente está muito barulhento. Não dá para saber o que toca o conjunto no tablado do lado oposto ao da entrada. As pessoas falam muito, agitadas, sem que seja possível imaginar quem fala com quem. Parece não haver contato visual que dure mais do que um ou dois segundos. A atenção de quem fala, e todos falam, se volta de um lado para outro, em movimentos violentos de pescoço, que me lembram os de galinhas ciscando. Assim todos falam e não sei se tem alguém a ouvir.

De cada lado da entrada, há uma escada larga de pedra que parece mármore de pia de cozinha. Dão para o balcão alto que circunda o salão e que parece vazio. Eu subo a da esquerda, mais para fugir dos olhos que chacoalham de um lado para o outro como  se fossem chicotes, do que do barulho que, de tão alto, deixa tonto. Os olhares conseguem ser mais altos e mais estonteantes ainda.

O balcão não está realmente vazio. Ele tem vários frisos onde alguns casais e outras combinações com mais ou menos pessoas tentam focar a atenção numa conversa mas acabam todos mudos procurando atividade que os deixe menos encabulados.

Vou até o final do balcão, sobre a quina do tablado, sem encontrar um friso vazio ou um banco. Mas é um lugar onde fico razoavelmente escondido. Na beirada da mureta, se fôr preciso, com um passo e meio para trás, fujo do olhar de alguém que esteja no térreo. Uma coluna que vai do chão ao teto, enfeitada com uma cortina de camurça cor de vinho, impede que outras pessoas do balcão me vejam.

Toca um sino ou tambor várias vezes. O barulho me lembra um prato bem pesado de bateria. A aniversariante aparece no meio dos convidados e anuncia uma valsa e o brinde usando a mesma as mesmas palavras da última miss universo ao receber sua coroa.

Todos recebem taças de champanhe, mesmo eu. O garçom parece ter-me espreitado desde que cheguei para ter certeza de que eu não fugiria do ritual. Em parte fugi. Parece que somos em número ímpar e, escondido que estava fiquei sem par para a valsa.

Salvo, de minha posição de vigia, assisto os casais rodopiarem se trombando ao som de um clichê. Me parecem crianças brincando em gangorras ou balanços, exceto que crianças não seguem regras e ali todos acompanham estritamente o roteiro de seus papéis como se tivessem medo de serem repreendidos por quem os assistisse ou dirigisse. Assistindo, acho que sou só eu.

A música termina abrupta, sem aquele toque retumbante que costumam ter as valsas ao final. Me lembro de como a música terminava ao levantarmos a agulha da vitrola e é curioso que a banda tenha soado assim. Então, o brinde. A aniversariante diz que todos tirem suas máscaras. Demoro a tirar a minha, meio pela timidez de me revelar a quem talvez me observasse ali isolado, meio também por, desconectado do ritual, demorar a captar a ordem. Os outros tiram as suas num movimento extático que parece único, sincronizado, enquanto eu ainda fecho os dedos pegando a minha.

Máscaras fora, me assusto, o coração parece que engasga e sei que fico branco. Ninguém mais tem rosto. Nem olhos, nem boca ou narinas, como se eles houvessem saído com as máscaras. Ficam só a protuberância do nariz e as depressões fechadas onde me parece que deveriam estar os olhos. Seguram erguidas as taças esperando a ordem para gritar um viva ou coisa do tipo e beber a champanhe que já amornou, o que de fato não conseguirão.

Com a iniciativa já tomada antes do susto, nem imagino frear o movimento, tiro minha máscara também. Então não consigo ver mais nada ou mesmo tentar falar, o que já não me admira.

Aí sim, já consciente, coloco-a de volta e vejo todos parados nas mesmas posições. Parece um quadro surrealista ou foto de uma cena de balé moderno. Sorrio, último sorriso, arregalando os olhos para guardar bem nítida a imagem que deveria me parecer bizarra mas que, em vez disso, acho linda. Levantando a taça em brinde, como todos os outros, e tiro novamente a máscara.

Stop Whispering

Me lembro de muitos sonhos recorrentes que tenho desde criança.

Alguns são assustadores, mas a maioria é nonsense como o do deserto de areia alaranjada (que parece a Farinha Láctea da Nestlé que as mães usavam para fazer mingau). Eu ando quilômetros pelo deserto, beirando um despenhadeiro (um despenhadeiro na areia??!?!) até o supermercado para comprar papel higiênico. Chegando lá, as famosas pirâmides de Gizé são na verdade pilhas de papel higiênico, daquele vermelho grosso que as pessoas comparam a lixa, e a esfinge é um leão de chácara jogado preguiçoso a um canto, quase dormindo, tomando conta para que os fregueses não roubem nada. Para a pirâmide não desmoronar, eu tenho de escalá-la e pegar os rolos mais do alto. Na subida, alguns se soltam e rolam pirâmide abaixo. Me sinto um Indiana Jones. Chego ao topo, me sento, pego o primeiro rolo, o mais alto, levanto acima de minha cabeça para mostrar a todos que consegui e, invariavelmente, a montanha toda desmorona e me engole. Eu caio para dentro dela, por um buraco muito mais fundo do que ela, que parece um vulcão aberto entre os rolos de papel, e acordo no chão do quarto.

Outro nonsense é aquele em que minha namorada me diz que é homem. Eu fico chocado com a revelação, mas então Caio na real e lhe digo para olhar dentro da calcinha e ver que é mulher. Ela ri de minha ingenuidade e me responde que eu é que vejo o mundo ao contrário.

Muita gente se benze quando eu conto do sonho em que vou visitar o túmulo de minha tia Isolina, no cemitério em frente de casa, atravessando a rua. O cemitério está em expansão e, ao fundo, há uma fileira de escavadeiras, que começa na ribanceira da baixada da favela e se perde no horizonte depois de Carapicuíba. Elas abrem covas atrás de covas. Parecia uma bandeja de ovos meio torta. O cemitério não tem mais muros, é um terreno baldio gigante, já limpo de mato e da favela que deveria estar na base da ribanceira. As escavadeiras têm espaço para cavar até a serra. O sol é forte e as covas grandes e fundas o bastante para nelas enterrar um sobrado. Eu olho, curioso, para dentro de uma, a ver se é verdade que a altura deixa dá vertigem e caio depois de me irmão me dizer para ter cuidado e antes da mãe gritar “Eu te avisei!” e “Olha o trabalho que você vai dar agora!”. Então percebo que as paredes são altas, íngremes e planas demais para eu subir e, em vez de me desesperar, acordo.

Tem um outro que eu não entendo direito, com todo mundo de quem me lembro (todo mundo de quem vou me lembrando durante o sonho) sentado em poltronas de cinema (de algum cinema curiosamente confortável). Aquela iluminação fraca de antes do filme começar. Eu correndo, igual Pac Man, entre as poltronas, pelos corredores e fileiras, não sei de quem, não sei porquê, não sei se atrás de algo que nunca sei o que é.

Já os sonhos mais perturbadores de todos começam variados, cuidando da criação no quintal, comprando laranjas na feira, consertando a dobradiça do guarda-roupas, mas eventualmente chegam a uma situação que, ela sim, é recorrente. É quando tento falar algo e não tenho voz. Não percebo nada diferente em mim, tirando a voz que não sai ou não soa. Tento mais uma ou duas vezes até que, frustrado, tento gritar e nada. Então fico nervoso e grito, feito criança birrenta, até não agüentar de tanto meus pulmões e garganta doerem. O silêncio continua até eu acordar.

And the wise man said I don’t want to hear your voice
And the thin man said I don’t want to hear your voice
And they’re cursing me and they won’t let me be
There’s nothing to say and there’s nothing to do

Stop whispering, start shouting

And my mother say we don’t love you son some more
And the buildings say let me spit on your face some more
And the feeling is that there’s something wrong ‘cause I can’t find the words and I can’t find the song

Stop whispering, start shouting

Dear sir, I have a complaint
Can’t remember what it is
Doesn’t matter anyway
Stop whispering, stop whispering

Radiohead

Deserto

O sujeito que vive num deserto desses bem extensos, o Saara, a Arábia, o Outback, por exemplos. Embaixo só areia. Em cima só sol. Ao redor um mormaço infernal. Ele precisa passar o dia todo enrolado num cobertor grosso para não queimar a pele toda e nem assas com o calor. De tão quente, o cobertor que usamos para não deixar o corpo perder calor, eles usam para não deixar ganhar. Sua vida é viajar parando de poço a poço, e são dias de um poço a outro, à procura de água.

Ele fica feliz de lhe acompanharem sua família, seus amigos, sua tribo (se é assim que chamam). Faz fogueira à noite para cozinhar e se aquecer. E o pior do deserto dizem que é isso, ele é muito quente de dia, mas muito frio à noite, de congelar o sangue nas veias. Em volta do fogo, come, canta, conversa, deve alguém tocar alguma coisa, olha para o céu mais perto que existe sobre a terra e se diz abençoado. Imagina a inveja que temos das estrelas que ele consegue ver tão nitidamente. Deve ser por isso que tantos desses países têm estrelas e luas em suas bandeiras.

Nós aqui, nossa imaginação, as notícias e algum preconceito nos levam a crer que esse deserto seja cercado de cidades miseráveis e em pé de guerra, isso quando não em guerra constante. Também o achamos privilegiado, abençoado mesmo, por estar no deserto e não nas cidades que o cercam.

Mas, e isso pode ser por limitação de meus conceitos ou pura arrogância minha, quando encontro uma flor bonita… Quando encontro uma rosa delicada e fresca, alegre, alheia ao que há de ruim no mundo… O que imagino é se ele, encontrando-a também, enxergaria a beleza que vejo nela e se consideraria, se seria tentado a isso, abandonar o deserto para descobrir como é, de perto, um jardim.

Jigsaw

We are jigsaw pieces aligned on the perimeter edge, interlocked through a missing piece

Os quebra-cabeças acho que são os melhores brinquedos.

Me lembro de alguns dos meus primeiros. De quando era criança, é claro. Na verdade, a maioria deles era de meus irmãos mais velhos, que os guardavam no armário em que a máquina de costura aposentada da mãe havia se tornado.

E, por falar na mãe, me lembro também do costume irritante dela quando via montado um quebra-cabeça novo. Ela o virava com o fundo para cima e numerava as peças na ordem, de cima para baixo, da direita para a esquerda. Dizia que era para que nós o conseguíssemos montar de novo e ficava muito brava quando dizíamos que não precisava. Tanto não que já o havíamos acabado de montar. Logo em seguida ouvíamos o discurso sobre arrogância e humildade sustentado por exemplos, alguns bíblicos, outros de coisas que aconteceram a parentes e vizinhos seus de infância. Exemplos que eu nunca consegui relacionar com montar um quebra-cabeça.

Várias vezes também nos rezou a ladaínha de que falávamos como se fôssemos o próprio Fernando Luiz, o primo seis ou sete anos mais velho que eu. Ele montava sozinho (e ela enfatizava o “sozinho”) quebra-cabeças de mil peças, aqueles que, de tão difíceis, ela não sabia porquê serem fabricados. “Ele montou até um de foto do Papa!” O primo os emoldurava e vendia para pessoas que os penduravam na sala para contar vantagem como se tivessem montado.

Minha madrinha gostava muito também. Quando morava com ela e a avó, tínhamos o costume de, terminado o jantar delas (que na verdade era só pão e chá), às seis, até o meu jantar (sempre uma sopa), às nove, montarmos um quebra-cabeça, desses de criança, no máximo cinqüenta peças, e fazermos palavras-cruzadas. A avó só olhava, declarando o orgulho da filha e do neto serem tão inteligentes. A avó não sabia ler e dizia que na sua idade era mais importante saber rezar o terço.

Hoje eu tenho muito gosto, talvez mesmo fascínio, por quebra-cabeças. Uma das primeiras coisas que fiz no meu primeiro apartamento, depois de namorar no colchão que ainda não tinha cama e de receber os amigos para brindar com iogurte de maracujá batizado com vinho da Madeira, foi estrear a mesa de vidro da sala, que ocupei assim por duas ou três semanas, com um daqueles quebra-cabeças de mil peças. Os montadores de móveis, os entregadores, todos pararam um pouco para olhar. O moço da TV a cabo me pediu licença para montar umas duas peças enquanto eu testava o serviço que ele havia terminado.

Hoje, ainda gosto dos pequenos, mas não muito pequenos, de trezentas ou quinhentas peças, mas os melhores são os grandes, de uma, duas, três mil peças. Tenho em casa um de cinco mil que comprei nas férias e ainda nem abri porque é grande demais para a mesa da sala. Preciso de uma mesa maior, e talvez de outra sala.

Eu gostaria muito de ter uma mesa bem grande para montar quebra-cabeças. Com nichos para guardar as peças separadas por cor, formato ou detalhes e um tampo de vidro para cobri-lo enquanto ainda não terminei de montar, ou mesmo depois, para deixá-lo exposto até me aventurar noutro.

Inventaram uma coisa incrível há alguns anos atrás. Dá para comprar em lojas de brinquedos. Não sei como chamá-la, parece um grampeador ou carimbo, e serve para fazer quebra-cabeças a partir de fotos. Na verdade, não precisa ser com fotos. Dá para fazer com qualquer papel, mas quanto mais grossos e rijos melhores. Então os bons mesmo são os papéis fotográficos. Muitas pessoas usam para fazer brindes de festas infantis. Fazem quebra-cabeças a partir de uma foto do aniversariante, da família, de seus personagens preferidos ou dos colegas que comemoram.

Eu aproveitei algumas folhas que tinha sobrando, do tempo em que ainda se imprimiam fotos, o cartucho de tinta colorida, que ainda estava fechado de tanto que o economizo, imprimi uma foto que achei em meu HD. Uma das raras com foco e boa resolução. Deu para imprimi-la bem grande. Ocupou praticamente toda a folha A4 do papel fotográfico. A tinta não era a ideal, mas a impressão ficou muito boa. Não chegou a ser perfeita, mas ficou até melhor que as de revistas.

Foto de festa. Família, vizinhos, amigos de parentes, colegas do trabalho, clientes, algumas pessoas, talvez penetras, que nem tenho ideia de quem fossem. Aqueles retratos com todo mundo amontoado em frente a uma parede, forçando o sorriso e tentando manter o equilíbrio enquanto se amontoa para aparecer. Lá estava eu, em pé, de camiseta vermelha, sorriso amarelo, abraçado à namorada da época, escondendo o outro braço atrás do corpo (provavelmente segurava algo), enquanto uma chata saía de trás do sujeito que estava a meu lado e tentava, com a cabeça apertando minha barriga, ganhar um espaço. Foto de festa.

Colei papel cartão atrás e recortei as peças, deu umas duzentas e poucas, talvez trezentas e coloquei numa caixa grande de papelão para chacoalhar embaralhando, dar mais graça, antes de montar. Por um momento, a brincadeira parece besta: bagunçar as peças para ficar mais difícil de montar o que eu acabei de, deliberadamente, estragar. Depois parece mesmo ridícula: montar logo após desmontar.

Pode ter sido por isso que eu primeiro fiz uma pausa para tomar um longo banho. Quase uma hora deitado na banheira ouvindo música com os olhos fechados. Não fiquei mais tempo porque tive medo de pegar no sono e passar a noite ali. Saí do banho de regata e cuecas, abri um vinho branco que levei para a mesa da sala dentro de um balde com gelo, e coloquei mais música. Duzentas e poucas peças não são demoradas de montar, ainda dava tempo de terminar e assistir um filme antes de dormir.

Apago a luz por causa do calor. Acendo só os dois abajures dos cantos. A primeira coisa é separar as peças dos cantos e de cada borda e tentar ordená-las. Na hora de encaixar, me decepcionei um pouco. Mesmo com o papel cartão grosso colado atrás, a espessura das não era muita. O encaixe não ficava firme. Eu devia ter colado mais uma ou duas camadas de cartão e esperado mais para secar. Acho que, enquanto cortava as peças, a foto deslizou um pouco do cartão e o encaixe ficou mais esquisito.

Depois de algum tempo, comecei a me irritar. O encaixe mal feito. Conforme colocava uma peça numa ponta da borda, a outra começava a se soltar. Arrumava essa ponta e a borda oposta se soltava. A brincadeira começou a saber a trabalho de relojoeiro.

Montada a borda, separei as outras peças pelas imagens: as pessoas, o chão, a parede, o vaso branco do canto, a planta do vaso. O vaso e a planta foram fáceis de montar. Fáceis relativamente porque eram pequenos e eu comecei a me acostumar a segurar as peças com uma leve pressão dos dedos para elas não dançarem todas sobre a mesa. O chão e a parede foram mais demorados. As peças eram todas muito parecidas e, para complicar, o calor já me fazia transpirar bastante pela testa e pelo pescoço.

Quando comecei a montar as pessoas, já suava algumas gotas. Percebi quando uma escorreu para o olho, que ardeu, e duas pingaram. Uma coisa ruim do vinho branco é que, sem a cica que dá sabor forte ao tinto e seca a boca, a gente acaba bebendo mais rápido, principalmente geladinho no calor. Eu já tinha bebido mais da metade da garrafa e estava ansioso para me refrescar com o resto. Enchi o copo e dei um tempo na janela.

Tirei a regata preta para secar o suor nela e aproveitei para deixar o vento que vinha da cidade me abanar. As janelas dos outros prédios, viradas para mim sempre me lembra do filme do Hitchcock. Imagino testemunhar um assassinato ou coisa do tipo. Embora gostasse de morar num andar mais baixo, o meu é o penúltimo, para olhar os adolescentes namorando no páteo, os gatos e os pássaros nas árvores.

Quando precisei encher o copo de novo, com o final da garrafa, voltei para o quebra-cabeça. Surpreendeu-me o quanto ele já estava montado. Surpreendeu-me como criança crescendo na frente do pai que só nota ao encontrar fotos e roupas antigas dela.

As peças seguintes foram rápidas de montar. Eu já tinha alguma prática com a mania irritante das peças se soltarem por qualquer coisa. Também já havia largado mão de deixar o encaixe perfeito. A esta altura, não ligava se ia terminar bonito ou não.

A última peça, era bem central, pegava pedaço do meu peito, minha boca, a barba preta com o tufo feio branco, um pedaço do ombro da namorada. Ao menos era isso que deveria ter.

Olhei o copo achando que tinha exagerado no vinho. Mas não fazia sentido, o formato da peça não tinha nada a ver com o espaço que sobrava. A imagem nela também não. Girei-a de todas as formas tentando encontrar ou entender. Não faziam sentido nem o formato nem a imagem. Parecia que alguém a havia trocado. Mas fui eu mesmo quem recortou.

Corri os olhos pelo quebra-cabeça todo. Depois devagar, com os olhos e um pouco com as mãos, procurei devagar cada corte, cada encaixe. Pareciam corretos. A imagem, olhei bastante. Nada indicava que eu tivesse montado outra peça no lugar errado. Sentei-me sobre a mesa, de costas para a janela, terminei o vinho olhando o quebra-cabeça, a peça que sobrou e o buraco da que faltou.

Com um bom jogo de luzes, claro-escuro, azulado, um modelo profissional no meu lugar, um bom fotográfo talvez conseguisse ali uma boa foto para ilustrar um quebra-cabeça.

Stand straight, look me in the eye and say goodbye. Stand straight, we’ve drifted past the point of reasons why. Yesterday starts tomorrow, tomorrow starts today. And the problem always seems to be we’re picking up the pieces on the ricochet.

Lago Congelado

Eu dormi e, logo que tive consciência, me vi na beirada de um lago congelado. Dia de frio, mas isso você já imaginava. Sem neve, sem vento, sem barulho. Dia claro debotado, como costumam ser os dias nublados. Em torno do lago, grama seca, bege avermelhada, e pinheiros, bem verdes a maioria, mas muitos também secos queimados entre marrom e vermelho. O lago fugia à frente numa curva à esquerda entre as duas primeiras das montanhas que serviam de fundo. Nenhum pássaro, nenhum inseto, nenhum dos animais grandes de clima frio que aparecem nos filmes.

O frio em si eu não sentia, nem o sufoco abafado do casacão grosso, parecido com os de filmes de esquimó, que eu usava. Pensando bem, talvez eu diga que não havia barulho, mas houvesse e eu igualmente não o percebesse.

Ao primeiro movimento que fiz com o corpo, devagar, de um lado para o outro, para observar toda a volta da paisagem, notei o peso da mochila em minhas costas e o incomodo da vara e de outras coisas de pescar presas a ela, atrás do meu ombro direito.

Desci da borda para o lago. É complicado o primeiro passo no gelo. Acho que eu parecia criança aprendendo a andar. A borracha das solas das botas escorrega tanto no gelo quanto na grama do lado de fora. Que haverá um acidente parece certo. Nos filmes, as pessoas se preocupam com o gelo estar fino e quebrar no meio do lago. Escorregar e e se arrebentar num tombo me parece perigo onipresente e desde o primeiro passo. Não que o segundo ou o terceiro tenham sido fáceis, mas, fora a insegurança de não ter mais terra firme, margem, onde me ancorar, foi menos inusitado.

Cauteloso, mais deslizando os pés, em passinhos de vinte ou trinta centímetros sem tirá-los do gelo, avancei não mais do que vinte metros até dar-me por vencido pelo estresse de, ainda não sei porquê (só por já ter-me achado pronto à beira do lado com ninguém por perto para eu perguntar se sabia o que estava acontecendo?)… o estresse de, ainda não sei porquê, fazer isso que nunca fiz antes, sem nem imaginar como se faz.

Abaixei-me de joelhos. Isso eu já tinha visto em filmes, o sujeito se abaixar antes de mexer no gelo. Acho que agora entendi o porquê. É porque deve ser muito difícil tentar tentar cavar sem escorregar e tomar um tombo. Mas ao pensar em me sentar, logo imaginei a bunda úmida e gelada. De joelhos, como nos filmes, pareço ficar estável e sem me molhar inteiro.

Tirei a mochila. Coisa feia! Grande e de lona amarela com as costuras, os fechos e os zíperes em vermelho. A vara de pescar, agora vi, era desmontável, dividida em quatro partes de se rosquear. Junto com a vara, também presas por fora da mochila, havia também uma rede para pegar peixe e uma pá pontuda dobrável.

Aquela cena de desenho animado, do esquimó sentado ao lado da fogueira, pescando pelo buraco no gelo, eu percebi como é rídicula e impossível. Gozado isso nunca tinha-me ocorrido isso antes, deve ter sido assim com todo mundo que assistiu essas coisas, só agora percebi que o fogo derreteria o gelo que é bem grosso e difícil de quebrar.

As lâminas da pá, em “V” para fazer ponta, entortam um pouco, talvez por não ser feita para isso é, muito provavelmente, por eu não saber usá-la. Suo muito, mas não sinto o frio falar meu suor. Também. Ao sinto o cansaço, embora perceba dificuldade para respirar. O ar úmido parece se solidificar como a água do lago e resistir descer para meus pulmões. Doem muito os ombros, os cotovelos e os pulsos pelo esforço para quebrar o gelo. Eu chamei isso de cavar, mas não é. É só quebrar e quebrar, ele sai em lascas e raspas. Os ombros e os cotovelos parecem estar em máquinas de moer carne de tanto que doem.

Gelo grosso difícil de quebrar. Como será que os esquimós conseguem? O tempo passa muito rápido. Já é noite e, quando me dou conta de que deveria estar mais frio, chagam o vento e o cansaço, o sono que ameaça me fechar os olhos. Não sei para onde ir, não seo de outro lugar além dali. Mesmo que soubesse, em nenhum momento me parece haver a opção de ir embora, para casa, para o hotel, ou para o acampamento. Não sei porque estou ali. Cavo como um bêbado sem consciência que segue a direção para onde lhe aponta o nariz, por preguiça ou falta de condição de julgar se isso é o certo ou o que quer.

O vento frio e a noite se confundem com o sono, a dificuldade em focar as imagens e a preguiça de pensar. Duram uma eternidade, talvez cinco minutos que são são uma noite inteira, e logo me dou conta da luz do sol que nasce, do céu clareando, levemente amarelado, ao fundo, entre as montanhas. O mesmo sol que, refletido na geada que cobre os pinheiros e a mim mesmo, cansa minhas vistas com aquele toque de melancolia e passividade a que chamamos de manhã. Será que é assim que o povo daqui vive? Que passam por isso sempre que querem pescar? O cansaço da monotonia me enche de perguntas ansiosas de respostas que me justifiquem desistir. Só não sei como.

E já quase desisto quando percebo água aparecer no buraco mal-feito que tenho por então. Já devia ser hora de tomar o café da manhã, o desjejum. Sol baixo, olhos pesados de noite mal-dormida. Luz ainda pouca de melancolia. Aquela pouca água me refrescou a vontade de terminar de cavar, embora eu ainda não me lembrasse que, depois de cavar, ainda haveria de pescar, o que já era outra história inteira ainda por começar, de algo que eu igualmente não sabia como fazer.

Sei lá quanto mais demorou, entretido que estava na tarefa tediosa, mas ainda devia ser manhã cedo, umas oito ou nove, quando consegui quebrar as bordas do buraco para deixá-lo grande o suficiente, do tamanho de um prato bem grande, para achar que podia descer linha e anzol por ali. Buraco mal feito, mal recortado, cheio de rebarbas pontudas. Pedaços de gelo quebrados boiam no meio, fazem-me pensar em icebergs. Com a pá como colher, pego os maiores e os jogo para fora, para não atrapalharem.

A água azulada que aparece pelo buraco me lembra o cloro que bochechávamos na escola às quartas-feiras depois do lanche. Água muito limpa. Fico curioso da profundidade, da dificuldade da luz em descer por ela. De joelhos ainda, me abaixo e tento, com os olhos mais juntos à água, enxergar mais fundo. Gostaria de ver algo como naqueles documentários do Jacques Cousteau, como no Aquário de Lisboa ou como na loja de peixes do Seu Douglas na Rua Salem Bechara. O escuro da água, ao menos desta, não é como o da noite, aquele escuro da luz apagada, das janelas e portas fechadas, ao qual os olhos se acostumam, as pupilas se dilatam e logo você encontra o outro par de olhos os dentes do sorriso. O escuro da água é denso e distante, quanto mais longe se foca, menos se vê.

Algo que s parece com um peixe aparece de repente, difícil de distingüir o tipo, pelo turvo que a água faz. Ele passa rápido, pálido, uma vez, depois outra, ida e volta, a talvez dois palmos de profundidade. Numa terceira vez, ameaça saltar para fora e bate na borda. Vejo três ou quatro dedos, pálidos, acinzentados, esfolados, unhas quebradas mal pintadas de vermelho. O peixe é alguém. Os dedos escapam da beirada antes que eu tenha essa consciência.

Enfio minha mão esquerda, um braço todo na água do buraco que, gelada demais, parece cortá-lo de dentro para fora como um feixe de navalhas que se abrissem igual às varetas de um guarda-chuva. Mexo os dedos sem dificuldade, mas os braços, ao tentar procurar, parecem amarrados a pesos imensos. Tiro o braço da água. Não vejo nada mais pelo buraco. A água está escura.

Não sei o que fazer. Imagino o desespero de uma pessoa presa debaixo do gelo, a dor por todo corpo como doeu meu braço pouco atrás, a água entupindo a boca e a garganta impede a respiração, o escuro da água, não ver saída a menos que um doido apareça do nada e teime em abrir um buraco para pescar logo onde você está.

Eu procuro mais com os olhos e com o braço que logo pesa e, por mais que eu me ache no dever de insistir, sofre até que fico com medo de que morra ou seja arrancado pelo peso da água. Me senti abraçando-o para agüentar a dor que fica.

Não sei o que fazer. O braço que perecia peixe e os dedos de unhas vermelhas estragadas, não aparecem de novo. Já morreram? Afundaram? Ou são dali mesmo? De alguém acostumado a nadar sob o gelo, de um cadáver há muito jogado no lago, de uma divindade aquática, de um suicida consciente…

O dia já está adotante claro, claridade de dia nublado. O vento no faz barulho, não há pássaros para fazer barulho também. As árvores igualmente não chacoalham. Nem a água do lado, congelada, pode fazer barulho algum. O silêncio é total como se eu, que não sei nadar, estivesse mergulhado em água também, com os ouvidos entupidos por ela. Olho para a água, já há uma pele fina de gelo. Ninguém sobrevive a isso. Quero ajudar e não sei como. Grito e não ouço. Me desespero. Quero acordar.