À porta do quarto grande de cortinas brancas fechadas, o tom bege avermelhado da decoração, iluminada só pelos dois abajures da cabeceira da cama e pela televisão muda sintonizada na novela, lembra um quarto de hotel onde se teme flagrar um casal ao início de algum ritual romântico. Um passo para dentro e o cheiro de algodão, gaze, lençol lavado a quente e álcool em gel chamam à realidade antes mesmo de se ver a cama, para uma só pessoa, amparada por grades de dois palmos de altura.
Não há visitas, graças a Deus, que nestas horas só atrapalham. Mas no aparador próximo à janela, estão duas garrafas de vinho, fechadas, e uma cafeteria, cheia, que, se ele puder se levantar, talvez gostasse de experimentar.
Do senhor deitado nela, a careca e a testa são o que está mais pálido. As bochechas, mesmo tendo passado muito tempo protegidas do sol pela barba, que só foi tirada há cinco dias quando entrou nesta quarto, ainda têm alguma cor, até porque ele, enfastiado, de vez em quando mexe a cabeça de um lado para o outro, a olhar para a porta, para a cortina, para a televisão. As bochechas tinham alguma cor rosada mas era da fricção contra a fronha.
Uma enfermeira está com a agulha enfiada no acesso do interior de seu cotovelo direito. Ela tem os olhos bem próximos da seringa. Junta-os como vesga para prestar atenção ao sangue que vai extrair. Mas o líquido que vem parece um chá fraco só avermelhado.
Ela logo olha para o médico com cara de contrariada como a apontar-lhe alguém que lhe fazia um desaforo e dizer-lhe: “De novo. Desisto.” A seringa enche rápido daquela aguadilha. Ela tira a agulha brava, com pouco cuidado.
O sujeito deitado está, como esteve durante o procedimento todo, procurando pelas paredes coisa melhor para fazer, uma sombra que lhe distraia. Alguém que lhe disse “Acabou, pode ir embora.” Ao que ele responderia “Para onde?”
O médico sai enquanto a enfermeira joga fora o material descartável. Volta com uma maleta plástica verde. Coisa cafona que parece comprada na 25 de Março. Ele a põe sobre o criado-mudo e abre. Na verdade, é uma máquina de escrever portátil, verde mesmo, mas de metal. Só a tampa e o fundo são do plástico que parece de loja de traquitandas.
Na parte de cima deviam estar os martelos dos tipos. Para quem nunca viu uma máquina de escrever: quando se aperta uma tecla, ela faz funcionar um martelo que bate o tipo (o carimbo da letra) de encontro à fita de tinta e ao papel. Em vez dos martelos, há tubos, desses de sonda, de soro. No lugar do carro (carro é o rolo onde se prende o papel), há um cilindro de vidro com um líquido leitoso.
O médico, a enfermeira e mais dois ajudantes que vieram procurar serviço, colocam agulhas descartáveis nas pontas dos tubos e os espetam em sua testa. Firmam com esparadrapo.
A enfermeira puxa uma cadeira e tecla algumas letras. O líquido leitoso borbulha. Parece leite fervendo embora perceba-se que não, pois se fosse embaçaria o vidro. O médico se mete e, em pé a seu lado, bate umas dez vezes a mesma tecla. O sujeito se inquieta, mexe a cabeça, de saco cheio. A enfermeira começa a teclar no ritmo de quem pensa sem pressa para escrever uma carta.
Lá pela terceira ou quarta linha, o sujeito pára de vez de se mexer, o rosto deitado de lado, olhos em direção à cortina. Talvez esteja vendo as garrafas e a cafeteira. O olho percebe-se que não está morto porque ainda tem aquela cor, aquele preto lustroso que cismam chamar de castanho escuro. É pela cor que se percebe que faz foco, que olha distante, contemplativo, encantado por algo que não vê.
A enfermeira lembra que já viu esse olhar em pacientes em choque após acidente. O médico se lembra de casos dos quais apenas ouviu falar, e que sempre acreditou serem lendas, de gente enterrada viva em estado catatônico.
Os dois acham que estão perdendo tempo e falam em desistir. Mas continuam porque percebem que ele mexe os olhos incomodado, e que a primeira lágrima escorre deles.