Rua da Miséria

A casa está toda fechada, inclusive a cortina de pano grosso, quase cru, na janela da frente que, única sem veneziana, deixaria passar luz ou o olho do curioso. A cor bege pálida já muito gasta pela chuva que caiu desde a última pintura é muito diferente do verde e do rosa antigos. As roseiras amarelas não existem mais. Pensei que fosse crime derrubar. Só a porta da garagem ainda é igual, branca, também fechada.

Eu subo a avenida, o caminho de todos os dias para a escola. Ela agora parece mais plana. Até soa estranho falar em subir. A rua da escola sim, essa continua uma boa subida. Mais fácil que antes porque minhas pernas já são maiores. A escola também está toda fechada, trancada, mas na esquina ainda há o quadro dos telefones. O usávamos de escada para pular o muro ou de poleiro para olhar por cima. É isso que faço agora, de novo, depois de tantos anos. A quadra a escola, lá embaixo, depois do muro, parece bem menos do que antes. O cimento que me esfolava os joelhos e cotovelos quando caía deve ser o mesmo, mais gasto agora pelo uso e por, tenho certeza, nunca o terem remendado. Puseram uma grade dali para o pátio. Deve ter sido ideia de algum professor que teve seu carro acertado pela bola de handebol. A luz está apagada. Não dá para ver se ainda estacionam carros. Nem se ainda há alunos, serventes ou professores. Só os vejo na minha imaginação, que se diz memória, jogando, sentados aos degraus da arquibancada ou aquecendo os braços a tacar a bola contra o muro da subida. Não os ouço, que imaginação ou memória não falam tão alto, quiçá sejam mudas. Mesmo o barulho das bolas, dos passos, da saliva nos beiços dos casais. Nada tem som. Talvez essa imaginação memoriosa seja também fantasmagórica, tudo isso seja um mundo de fantasmas no palco já bem diferente que é o presente, seu futuro. Esses fantasmas, onde estarão seus corpos agora, seus ossos? Ainda têm carne, estão vivos? Serão então outra coisa, à parte dos fantasmas que vejo.

Não quero andar outra subida. Contorno a escola pela rua do posto de saúde. Passo em frente ao portão do campo dos padres, onde a criançada perdia o cabaço no meio do mato. A igreja antiga, que nem existe mais. A catedral tão grande e de um silêncio ressonante que não sei explicar.

A rua principal, cortada pelo jardim pouco antes da escadaria, parece aquelas alamedas clichés de filmes de terror. Os degraus largos, vinte ou trinta, nem são muitos. A sacada, antes da porta, de onde meu pai assiste à missa todo domingo à tarde, essa continua igual, exceto por não estar lotada. Na verdade, está vazia, assim como toda a igreja. Não é dia de missa, nem de catequese. Não se distribui pai. Nem sei que dia é. A estante das velas, não a reconheço. Queria acender uma. Mas, chegando perto não lhes sinto o calor, nem ouço o barulho do fogo queimando o plástico que as embala. Devem ser fantasmas também.

E, como fantasmas, não existem. Não existem no presente. Ficaram no passada que é a única coisa que conheceram. Cada um revive o seu, sem se trombar, solitários assim. Não chegam ao presente. Não têm futuro.

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