Lago Congelado

Eu dormi e, logo que tive consciência, me vi na beirada de um lago congelado. Dia de frio, mas isso você já imaginava. Sem neve, sem vento, sem barulho. Dia claro debotado, como costumam ser os dias nublados. Em torno do lago, grama seca, bege avermelhada, e pinheiros, bem verdes a maioria, mas muitos também secos queimados entre marrom e vermelho. O lago fugia à frente numa curva à esquerda entre as duas primeiras das montanhas que serviam de fundo. Nenhum pássaro, nenhum inseto, nenhum dos animais grandes de clima frio que aparecem nos filmes.

O frio em si eu não sentia, nem o sufoco abafado do casacão grosso, parecido com os de filmes de esquimó, que eu usava. Pensando bem, talvez eu diga que não havia barulho, mas houvesse e eu igualmente não o percebesse.

Ao primeiro movimento que fiz com o corpo, devagar, de um lado para o outro, para observar toda a volta da paisagem, notei o peso da mochila em minhas costas e o incomodo da vara e de outras coisas de pescar presas a ela, atrás do meu ombro direito.

Desci da borda para o lago. É complicado o primeiro passo no gelo. Acho que eu parecia criança aprendendo a andar. A borracha das solas das botas escorrega tanto no gelo quanto na grama do lado de fora. Que haverá um acidente parece certo. Nos filmes, as pessoas se preocupam com o gelo estar fino e quebrar no meio do lago. Escorregar e e se arrebentar num tombo me parece perigo onipresente e desde o primeiro passo. Não que o segundo ou o terceiro tenham sido fáceis, mas, fora a insegurança de não ter mais terra firme, margem, onde me ancorar, foi menos inusitado.

Cauteloso, mais deslizando os pés, em passinhos de vinte ou trinta centímetros sem tirá-los do gelo, avancei não mais do que vinte metros até dar-me por vencido pelo estresse de, ainda não sei porquê (só por já ter-me achado pronto à beira do lado com ninguém por perto para eu perguntar se sabia o que estava acontecendo?)… o estresse de, ainda não sei porquê, fazer isso que nunca fiz antes, sem nem imaginar como se faz.

Abaixei-me de joelhos. Isso eu já tinha visto em filmes, o sujeito se abaixar antes de mexer no gelo. Acho que agora entendi o porquê. É porque deve ser muito difícil tentar tentar cavar sem escorregar e tomar um tombo. Mas ao pensar em me sentar, logo imaginei a bunda úmida e gelada. De joelhos, como nos filmes, pareço ficar estável e sem me molhar inteiro.

Tirei a mochila. Coisa feia! Grande e de lona amarela com as costuras, os fechos e os zíperes em vermelho. A vara de pescar, agora vi, era desmontável, dividida em quatro partes de se rosquear. Junto com a vara, também presas por fora da mochila, havia também uma rede para pegar peixe e uma pá pontuda dobrável.

Aquela cena de desenho animado, do esquimó sentado ao lado da fogueira, pescando pelo buraco no gelo, eu percebi como é rídicula e impossível. Gozado isso nunca tinha-me ocorrido isso antes, deve ter sido assim com todo mundo que assistiu essas coisas, só agora percebi que o fogo derreteria o gelo que é bem grosso e difícil de quebrar.

As lâminas da pá, em “V” para fazer ponta, entortam um pouco, talvez por não ser feita para isso é, muito provavelmente, por eu não saber usá-la. Suo muito, mas não sinto o frio falar meu suor. Também. Ao sinto o cansaço, embora perceba dificuldade para respirar. O ar úmido parece se solidificar como a água do lago e resistir descer para meus pulmões. Doem muito os ombros, os cotovelos e os pulsos pelo esforço para quebrar o gelo. Eu chamei isso de cavar, mas não é. É só quebrar e quebrar, ele sai em lascas e raspas. Os ombros e os cotovelos parecem estar em máquinas de moer carne de tanto que doem.

Gelo grosso difícil de quebrar. Como será que os esquimós conseguem? O tempo passa muito rápido. Já é noite e, quando me dou conta de que deveria estar mais frio, chagam o vento e o cansaço, o sono que ameaça me fechar os olhos. Não sei para onde ir, não seo de outro lugar além dali. Mesmo que soubesse, em nenhum momento me parece haver a opção de ir embora, para casa, para o hotel, ou para o acampamento. Não sei porque estou ali. Cavo como um bêbado sem consciência que segue a direção para onde lhe aponta o nariz, por preguiça ou falta de condição de julgar se isso é o certo ou o que quer.

O vento frio e a noite se confundem com o sono, a dificuldade em focar as imagens e a preguiça de pensar. Duram uma eternidade, talvez cinco minutos que são são uma noite inteira, e logo me dou conta da luz do sol que nasce, do céu clareando, levemente amarelado, ao fundo, entre as montanhas. O mesmo sol que, refletido na geada que cobre os pinheiros e a mim mesmo, cansa minhas vistas com aquele toque de melancolia e passividade a que chamamos de manhã. Será que é assim que o povo daqui vive? Que passam por isso sempre que querem pescar? O cansaço da monotonia me enche de perguntas ansiosas de respostas que me justifiquem desistir. Só não sei como.

E já quase desisto quando percebo água aparecer no buraco mal-feito que tenho por então. Já devia ser hora de tomar o café da manhã, o desjejum. Sol baixo, olhos pesados de noite mal-dormida. Luz ainda pouca de melancolia. Aquela pouca água me refrescou a vontade de terminar de cavar, embora eu ainda não me lembrasse que, depois de cavar, ainda haveria de pescar, o que já era outra história inteira ainda por começar, de algo que eu igualmente não sabia como fazer.

Sei lá quanto mais demorou, entretido que estava na tarefa tediosa, mas ainda devia ser manhã cedo, umas oito ou nove, quando consegui quebrar as bordas do buraco para deixá-lo grande o suficiente, do tamanho de um prato bem grande, para achar que podia descer linha e anzol por ali. Buraco mal feito, mal recortado, cheio de rebarbas pontudas. Pedaços de gelo quebrados boiam no meio, fazem-me pensar em icebergs. Com a pá como colher, pego os maiores e os jogo para fora, para não atrapalharem.

A água azulada que aparece pelo buraco me lembra o cloro que bochechávamos na escola às quartas-feiras depois do lanche. Água muito limpa. Fico curioso da profundidade, da dificuldade da luz em descer por ela. De joelhos ainda, me abaixo e tento, com os olhos mais juntos à água, enxergar mais fundo. Gostaria de ver algo como naqueles documentários do Jacques Cousteau, como no Aquário de Lisboa ou como na loja de peixes do Seu Douglas na Rua Salem Bechara. O escuro da água, ao menos desta, não é como o da noite, aquele escuro da luz apagada, das janelas e portas fechadas, ao qual os olhos se acostumam, as pupilas se dilatam e logo você encontra o outro par de olhos os dentes do sorriso. O escuro da água é denso e distante, quanto mais longe se foca, menos se vê.

Algo que s parece com um peixe aparece de repente, difícil de distingüir o tipo, pelo turvo que a água faz. Ele passa rápido, pálido, uma vez, depois outra, ida e volta, a talvez dois palmos de profundidade. Numa terceira vez, ameaça saltar para fora e bate na borda. Vejo três ou quatro dedos, pálidos, acinzentados, esfolados, unhas quebradas mal pintadas de vermelho. O peixe é alguém. Os dedos escapam da beirada antes que eu tenha essa consciência.

Enfio minha mão esquerda, um braço todo na água do buraco que, gelada demais, parece cortá-lo de dentro para fora como um feixe de navalhas que se abrissem igual às varetas de um guarda-chuva. Mexo os dedos sem dificuldade, mas os braços, ao tentar procurar, parecem amarrados a pesos imensos. Tiro o braço da água. Não vejo nada mais pelo buraco. A água está escura.

Não sei o que fazer. Imagino o desespero de uma pessoa presa debaixo do gelo, a dor por todo corpo como doeu meu braço pouco atrás, a água entupindo a boca e a garganta impede a respiração, o escuro da água, não ver saída a menos que um doido apareça do nada e teime em abrir um buraco para pescar logo onde você está.

Eu procuro mais com os olhos e com o braço que logo pesa e, por mais que eu me ache no dever de insistir, sofre até que fico com medo de que morra ou seja arrancado pelo peso da água. Me senti abraçando-o para agüentar a dor que fica.

Não sei o que fazer. O braço que perecia peixe e os dedos de unhas vermelhas estragadas, não aparecem de novo. Já morreram? Afundaram? Ou são dali mesmo? De alguém acostumado a nadar sob o gelo, de um cadáver há muito jogado no lago, de uma divindade aquática, de um suicida consciente…

O dia já está adotante claro, claridade de dia nublado. O vento no faz barulho, não há pássaros para fazer barulho também. As árvores igualmente não chacoalham. Nem a água do lado, congelada, pode fazer barulho algum. O silêncio é total como se eu, que não sei nadar, estivesse mergulhado em água também, com os ouvidos entupidos por ela. Olho para a água, já há uma pele fina de gelo. Ninguém sobrevive a isso. Quero ajudar e não sei como. Grito e não ouço. Me desespero. Quero acordar.

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