Quando criança, sempre imaginei por onde andam os passarinhos à noite. Passarinhos, borboletas, joaninhas, esses bichinhos bonitos e frágeis. Será que a noite é feita só para os pernilongos nos atazanarem e serem comidos pelos morcegos?
Imaginava ninhos secretos escondidos. Inúmeros ninhos , já que eu também achava serem inúmeros os pássaros que existem. Ninhos engenhosamente camuflados, como em tática de guerrilha, à espera do sol.
Quando cresci, não pensei muito mais nisso, mas ainda acreditei nos ninhos escondidos que ninguém consegue encontrar.
Um dia, após o trabalho, no caminho do escritório para a cozinha, para pegar um café e me jogar na poltrona a assistir um filme, aqueles filmes de sempre: repetidos e mal-dublados, algo passou voando pela sala perto da janela.
Pensei que fosse um pardal. Esse passarinho que os portugueses trouxeram e ninguém respeita de tanto que se espalhou por aqui. Logo fiquei preocupado imaginando a dificuldade em tirá-lo dali. Tenho aflição, medo mesmo de pegar passarinho na mão e machucar-lhe as asas ou os pezinhos finos. Olhei na direção da janela, depois pela sala ao meu redor, nos corredores, na cozinha, do lado de fora da janela, e nada.
No dia seguinte, pela mesma hora, quando já voltava da cozinha com o café, entrou de novo, deu uma volta pela sala, voando devagar, e, também de novo, saiu pela janela. Me atrapalhei equilibrando a xícara, e de novo não o vi bem, mas notei que era grande e colorido. Tomei-o então pelos papagaios, que há alguns soltos aqui pelo bairro. Coisa de um padre doido que, uns cinquenta anos atrás, soltou um monte de passarinhos por aqui. Canários, sanhaços, papagaios, periquitos.
Embora, curioso, eu tentasse lhe faltar e prestar atenção, levou ainda alguns dias, algumas visitas suas, para eu realmente percebê-lo. E não tenho ainda certeza se foi por tanto tentar e nisso desenvolver alguma técnica especializada ou se foi só por ter ele se acostumado a mim ou criado tanta confiança em suas habilidades de fujão que um dia bobeou e se deixou flagrar.
Era uma borboleta, delicada, de colorido simples, bege, preto e laranja e amarelo, — talvez aparentada das onças e tigres, uma borboleta-leopardo! quem sabe?— arisca como costumam serem, mas mais rápida e orientada que qualquer outra que possa existir.
Até hoje, não sei o que queria, mas ela começou a aparecer com freqüência e a ser presença e companhia constantes.
Toda borboleta já foi lagarta, esse é um tema bem explorado nas escolas, nos livros infantis e nos de auto-ajuda. Ela sabem bem da importância de serem bonitas. Devem ter muito orgulho e vaidade por isso.
Talvez ela fosse curiosa pelo contraste de se comparar ao gordo narigudo que só faz a barba no fim de semana, quando ela já coça, que não tem preocupação em pentear o cabelo, passa o dia descalço, com a camiseta amarrotada, toda manchada, que serviu de pijama, só de cuecas. Que quando põe uma calça em casa, no frio, é algum moletom velho, alargado desbotado e já roto no cavalo.
Deve se sentir como a rosa do pequeno príncipe.
Acostumei-me a, mesmo no frio, deixar abertas a janela e as cortinas da sala. A manter uma rotina que lhe fosse previsível e a não tirar do lugar, ou pôr-lhe mais à vista, as coisas que pareciam lhe agradar ou chamar a atenção. Como chocolate e morangos, que eu nunca a vi comer, mas deixava onde ela costumava pousar, e a via olhando. Creio que não tivesse como cheirar.
Eu a aguardava e ficava preocupado quando demorava ou pulava o dia sem aparecer.
Passei a trabalhar até mais tarde. Aí com uma garrafa de vinho aberta na mesinha ao lado do notebook. Por esse tempo, ela já parava a ver-me trabalhar. Na maioria das vezes, chegava de mansinho, no seu passinho totalmente silencioso das patinhas finas, quase invisíveis, ou do bater de asas que só faz um ventinho suave. Pousava elegante em algum canto atrás de mim. Fuçava por cima de meus ombros o que eu escrevia, ou talvez pensasse noutras coisas, em sua própria vida. Se eu saía e deixava o escrito ali, calhava encontrá-la olhando-o.
Nunca bebeu vinho comigo, mas uma vez a pousou na borda da minha caneca de café. Bebeu um pouquinho. Ornou-a como uma flor sem perfume no vaso improvisado.
Acostumei-me a falar com ela das coisas que antes falava sozinho, o que foi muito bom para dissimular minhas loucuras excêntricas de misantropo.
Achava elegante sua sem cerimônia ao ir embora, sem alarde, apenas levantava voo, sem que eu, mesmo que a estivesse vigiando, a percebesse começar a bater as asas, e saia pela janela como quem acorda assustado do cochilo e sai correndo atrás de algo que deixou por fazer.
Por fim, depois de um ano ou dois, sumiu. Deve ter mudado de ares e janelas. Quando me lembro dela, tenho medo de que um sapo nojento a tenha pego ou que esteja na coleção de alguém.