Diário Insone

Sentenced to drift far away now,
Nothing is quite what it seems,
Sometimes entangled in your own dreams.
Entangled by Genesis, 1976

 

Eu acho que não vem ao caso falarmos aqui sobre a qual natureza dos problemas que me levaram a isso. Coisas que aconteceram nos dias e no dia anteriores. Isso seria só uma introdução chata e enfadonha que não nos levaria a nada além daquela chuva molhada da conversa de bêbado triste para o colega de copo que lhe calhou de dar plantão. Podem ser problemas de trabalho para quem não tem o problema de não ter trabalho. De amor para quem tem a sorte ou o azar de ter a quem querer. De família, que quase todos os têm porque quase todos têm uma. De consciência. E já esses suspeito que muitos não tenham por falta de uma que lhes doa.

Acho que posso começar a contar a partir de umas cinco da manhã, talvez um pouco antes. Foi mais ou menos a essa hora que começatam a bater o desespero e a revolta por não ter conseguido dormir quase nada. Aquela sensação horrível de impotência, de não conseguir fechar os olhos e se alienar do mundo todo, morrer por algumas horas. O virar de um lado para o outro da cama incomodado pela sensação gelada do próprio suor nos lençóis e no travesseiro.

Foi por esse incômodo que preferi me sentar no sofá e ligar a televisão num programa que me distraísse e cansasse. Um telejornal europeu. Previsão do tempo e condições de estradas e aeroportos para os portugueses que tomam café da manhã e partem para trabalho. Notícias dos pequenos incidentes da noite: dois carros que bateram numa cidade do interior, uma imagem sacra danificada pela água da chuva que escorreu do telhado estragado a igreja, a festa da padroeira de uma paróquia que parece ser famosa. A agenda dos governos para o dia.

Uma piscada de olho e fiz a besteira de olhar em direção à janela. A noite que vinha de fora não era mais a mesma. Diluia-se. Já dava para notar um pouco da cor vermelha da parede texturizada, o verde da samambaia do canto, o amarelo da lombada de um livro. Só o azul de minha mochila ainda era cinza bem escuro. São assim essas duas cores, as últimas a amanhecer.

Olho o relógio. O sol ainda não saiu porque não obedece o horário de verão. Os padeiros obedecem. Alguma padaria já está aberta. Se não consigo dormir, posso engordar ao sabor de pão fresco e manteiga. Manteiga de verdade. Não aquele óleo de fritura batido que se chama margarina, mas alguns teimam de chamar de manteiga. É tão bizarro que há até uma marca de “margarina sabor manteiga”.

Bermuda velha desbotada de surfista que comprei de improviso nas férias de julho e a tradicional camisa de meu time. Me troco e desço pra garagem com a costumeira roupa que uso na padaria. A bermuda tem dois bolsos grandes com velcro, o da direita uso para o telefone, um caderno pequeno (tenho mania de rabiscar) e um lápis, o da esquerda para a carteira. Negligencio o banho e escovar os dentes, provavelmente por falta de ter acordado. Descobrir-se, pisar no chão frio, ir ao banheiro mijar, tomar banho e escovar os dentes não são um ritual pensado, mas atos involuntários necessários à transição sono-sonambulismo-despertar.

Esperando abrir o portão da garagem, penso no gosto de trapo velho e terra do café da padaria. Cafés bons mesmo eu conheço três: o da Praça da República, o da Praça Carlos Gomes e, o melhor do mundo, o da Praça da Independência. A Praça da República não é lugar onde se vá de carro e a Carlos Gomes fica a mais de uma hora de casa. A esta hora da manhã, descer a serra até a Praça da Independência de frente para o sol que nasce, minha vida para a trás, as ilhas e o mar à frente, parece até romântico.

O problema do caminho para o litoral é que tenho de atravessar toda a cidade. Ônibus no caminho da garagem para os terminais, gente que acordou cedo (e ainda assim atrasada) dirigindo como desesperada, jovens com cara de adolescentes à procura da estação de metrô que vai abrir. A estrada em si, do outro lado, é uma paisagem desnaturada, mesmo assim bonita. Sobram laranja, dourado e beges sob o céu azul marinho, quase roxo. Jogo de cores resultado de algum reflexo que eu não sei explicar.

O nascer do sol romântico que imaginei me parece mesmo feio, no mínimo sem graça. Uma combinação de cores escolhidas aleatoriamente sem nexo, sem combinação. Moda de décadas trás que casais piegas teimam em nos dizer ser bonita. Estão com os olhos fechados, dormindo abraçados, esses casais. E não vêem o nascer do sol como ele realmente é. Por isso o dizem bonito e romântico. Mas eu vejo que não é mais que uma cortina azul desbotando, a deixar à vista o bege feio, carnação, do pano cru por baixo. À espera de que alguém a abra para deixar o sol entrar. A paixão correspondida nos torna tão superficiais! Não é possível ver a realidade como ela é sem ter a amargura bem fresca e desperta no coração. A frustração. É a frustração de não ter algo que nos faz procurar em cada canto e, ao procurar uma coisa, encontrar outra, outras, vários detalhes delas. Não haveria boa poesia sem os frustrados. Disso tenho absoluta certeza. Só teríamos aqueles versinhos bestas de crianças do primário, descrições dos pais, das férias, das festas de aniversário. Não saberia realmente dizer o que são o amor, a beleza, a vitória, quem os tiver a centímetros do nariz sem ter procurado com dificuldade, se enganado várias vezes e decepcionado quando não podia.

Alguma coisa na rodovia, talvez uma árvore envergada fazendo sombra, me lembra de um episódio de anos atrás. Descendo para a praia à noite, por essa rodovia, enchi-me de alegria e lhe disse algo como: “Estou tão feliz! Gosto tanto de você!”e em troca ouvi um sermão sobre “como não são de confiança, pessoas que demonstram felicidade por tão pouco”. Acostumado a me arrepender de esconder o que sinto, naquela noite, me arrependi de me expressar. Precisa passar por isso quem quer entender o valor de um “Eu também.” ou de um simples sorriso encabulado. A lembrança me distraiu um pouco da paisagem. Ensimesmou-me. Por um tempo não prestei mais atenção em nada que não estivesse dentro do carro. No banco de passageiro, no rock que tocava no rádio.

Quando acordo da distração, já estava na bifurcação (trifurcação) do final da serra. À minha frente, já com luz de dia cedo, três caminhos. O meu, era o mais óbvio, do meio, aquela ilha, toda urbanizada. Depois dela, o mar. Depois dele, algo a que chamamos horizonte, mas que nada mais é do que quaisquer coisas que fiquem longe demais para vermos.

Eu cheguei já com dia claro. Mas naquela hora gostosa quando o sol ilumina e longe, baixo, e os prédios todos fazem sombra. O ar ainda está fresco e úmido dos ventos da noite. Ainda assim, cheguei cedo o suficiente para estacionar em uma travessa perto do comércio sem precisar fazer baliza nem pagar zona azul.

Tiro os tênis dentro do carro. Não nasci para várias coisas, uma delas é usar sapatos. Em casa, mesmo no quintal, vivo descalço. É curioso meus pés não serem calejados. Suas solas, macias mesmo, parecem de quem passa o dia com meias grossas ou usa aqueles cremes hidratantes de cheiro enjoativo.

O café e a banca de jornal em frente estão abrindo, estrategicamente no mesmo horário. A padaria, cinqüenta ou cem metros mais à frente, que, acho isso curioso, tem o nome de uma flor obscura, o mesmo nome incomum do meu bairro, está aberta já. Da calçada sinto o cheiro azedo de bromato e fermento do pão mal feito me convidando a entrar. Pão fresco, mesmo ruim, é sempre uma maravilha. Sabe a satisfação.

Pão puro. Não peço manteiga porque já caí no golpe da margarina aqui. Como devagar, tentando prestar atenção nos quadrinhos, nas manchetes e nas colunas de opinião do jornal local. Segundo pãozinho. O balconista pergunta várias vezes se não quero mesmo manteiga ou algo para beber.

Largo o jornal no balcão. O café da praça cheira a ser um bom motivo para acordar. A xícara quante, a simpatia do balconista e o cheiro do café recém passado, que valeu oitenta quilometros de estrada, são a primeira boa coisa do dia e, por alguns segundos, me distraem de mim mesmo. A segunda xícara resulta do apego, de não querer ir embora, muito mais do que do ritual matinal de beber algo para acordar. Ela chega com mais um sorriso e duas palavras simpáticas do balconista.

Parece-me besta já voltar para casa. Tanta gente passando, indo ou vindo, nas suas caminhadas na praia, dos banhos gelados do mar. Eu gosto muito de andar. Vou para o calçadão da praia. O caminho de cimento cortado entre os canteiros é bem movimentado. Uns trinta minutos a pé e chego ao parque.

Esse parque é um grande jardim muito arborizado. Parece resto de mata. Árvores bem fechadas, samambaias e outras plantes cortadas pelos passeios. Há alguns brinquedos de crianças à direita da entrada, animais soltos, cotias, sagüis, um jabuti de mais de meio metro de altura, viveiros de plantas, especialmente o de orquídeas, e de pássaros. Falam de um bicho preguiça, mas nunca o encontrei. Andar devagar pelo passeio, uma parada a cada dois passos, para olhar, ao redor e acima, as sombras e movimentos dos bichos nas plantas e nos galhos das árvores é uma das poucas coisas que sempre conseguem me distrair. Posso ficar o dia todo aqui, sem perceber. A melhor parte é o viveiro grande perto da saída, com portas duplas acortinadas, e uma passarela para entrarmos e andarmos no meio dos pássaros. As plantas dele são mais galhadas. Você pode se debruçar na beira da passarela e procurar os pássaros entre os galhos, vê-los andar, voar, comer, te olhar com suspeita. Só falta. Uns dois ou três troncos caídos que sirvam de banco e café igual ao da praça. Todas as vezes que venho aqui são iguais, não há o que contar. Somando devagar pela passarela até a saída, a maior parte do tempo debruçado no beiral, procurando quantos pássaros diferentes encontro e se os consigo identificar pelas placas informativas espalhadas. De vez em quando, um pássaro voa atravessando o caminho de quem vai pela passarela. Isso me dá aflição. Imaginar que possa tocar, sem querer, um desses bichinhos, seus dedinhos, asinhas e ossinhos frágeis. Me encolho de medo de pensar que posso acabar machucando um. Essas coisinhas pequenas de que gosto, tenho sempre muito medo de machucá-las, por isso acabo me encolhendo distante sem coragem de tocar ou mesmo de que cheguem perto. Por isso mesmo, os bichinhos devem ter medo de que eu seja algum predador à espreita. Olhando atento, a distância estratégica, quase imóvel. Represento-lhes o gato, a cobra, o mal dissimulado prestes a dar bote. Quando saio do viveiro e procuro o portão para a rua, imagino o alívio que têm e a festa que fazem, como alunos quando o professor saí da classe.

Na calçada, sem a sombra das árvores, o sol da manhã me lembra da preguiça típica dos fins-de-semana emendados. Aqueles em que o melhor que pode acontecer é acordar tarde num quarto de hotel na praia ou no interior e descer correndo para ainda conseguir tomar o café-da-manhã de chinelos, calção e a mesma camiseta usada pra dormir, depois voltar ao quarto e deitar preguiçoso na cama para namorar mais um pouco, tomar banho e pensar em como gastar o resto do dia. Essa preguiça me leva do parque dos viveiros só até o parque do início da praia.

Quadras vazias, um prédio administrativo completamente deserto. Adolescentes bestas desprezam as colegas que lhes dão bola para arriscar os ossos na pista de skate em manobras tão tímidas que parecem inventadas por yiddish mames de condomínio. Dos vinte ou trinta skatistas, só dois brincam sem medo. Tomam velocidade, caem, se levantam passando a mão no novo esfolado. Depois tentam de novo. São os únicos dois que brincam sem parar. Tem os equipamentos já bem gastos, roupas rotas e puídas. São também os únicos que não parecem fazer parte de nenhum grupo de amigos.

Casaizinhos que já chegara formados perdem também tempo sentados no bobodromo, uma espécie de arquibancada para as pessoas namorarem fingindo olhar a praia e as ondas que quebram na chegada a ela.

Eu gosto mais de olhar o mar a partir do mirante logo em seguida. Ele já fica virado para fora da praia. Para o que seria mar aberto se não houvesse uma ilha logo em frente.

Essa ilha, acho que é a dos urubus. Toda praia tem uma com esse nome. Ilha dos Urubus. São na verdade pedras altas que saem do mar cobertas de plantas. Talvez todos os alunos de uma pequena escola tivesse de dar as mãos para a conseguir abraçar. Está ilha dos urubus tem até muitas árvores. Urubus são poucos, dois ou três que vejo voando perto. A está hora, ou já saíram para trabalhar, caçando pequenos bichos moribundos ou circundando pobres almas no mínimo igualmente moribundas.

Certos indios do Norte do Brasil inventaram a expressão “comer” para se referir ao homem ter sexo com uma mulher. Para eles, os homens são bichos e as mulheres espíritos. Por isso proíbem as mulheres de beber qualquer coisa que lhes possa causar alucinações. Medo de que cheguem ao mundo dos espíritos e, percebendo-se em casa, não queiram mais voltar. Os homens, para manterem-se humanos, creem, tem de casar e regularmente se alimentar do espírito feminino. Na dificuldade de tradução da língua indígena, que, agrafa, tem vocabulário muito reduzido, para o português, “alimentar-se da mulher” virou “comê-la”.

Os urubus, ao contrário, caçam as poucas coisas que encontram mais débeis e miseráveis que eles. Comem a podridão e sobrevivem, alimentando apenas sua infâmia.

Há uma placa, um aviso de proibição do acesso à ilha. Também de proibição de descer do mirante para as pedra que cercam sua base. Essas pedra, de formas e cores muito variadas, obviamente não são naturais dali. Foram colocadas para proteger o mirante das ondas que quebram altas e fortes e que os surfistas adoram. Parecem valentonas a garantir que nem as pedra, nem o mirante, nem eu, covardes que somos, tentemos quebrar as regras. “Passe daí, te acerto e você se arrepende.” Não há de ser com o mar que eu brigaria. Acho-o bonito, mas respeito demais. Não me aventuro. Meu negócio é a terra, caminhar, pisar, sentar.

Caminhar pela areia, onde ela está molhada, descalço. Senti-la se deformando em pegadas ao peso dos pés número quarenta e cinco para os quais tenho dificuldade de encontrar sapatos que caiam bem. As ondas resistentes, que sobem até mais dentro da praia, cobrem meus pés e tornozelos. Ajudam a diluir a areia e afundar meus pés. Refrescam a palma cansada e quente de tanto andar.

Parece coisa de velho. Já que está na praia, molhar os pezinhos no mar. Deve ser, embora eu tenha feito assim desde garoto.

Sento-me na areia, já à altura da praça onde estacionei e tomei café da manhã e só então levanto a cabeça e olho diretamente para o mar aberto, para a boca da baía e os navios que somem no horizonte.

Pego do bolso o caderno e o lápis. Não gosto de caneta. Tem algo de legal no lápis que eu não sei explicar. Algo na aspereza do grafite, na sua aparente e engenhosa rusticidade. Tento rabiscar o que vejo.

Não desenho bem. Mesmo na escola, nas aulas mais chatas de Educação Artística quando demonstrava ser um dos poucos alunos a entender os conceitos de perspectiva, ótica e proporção, meus desenhos eram esdrúxulos e infantis. Eu invejava outros alunos que, sem técnica alguma, conseguiam criar belos desenhos enquanto eu tirava dez por fazer, com sombras perfeitas, casinhas iguais às das crianças do pré-primário.

O moço da barraca de bebidas me reconhece e pergunta se não vou-me sentar em uma de suas cadeiras hoje. Eu não estava pensando nisso mas o sol queima já. Sento-me embaixo de um guarda-sol, sem cadeira. Ele me oferece uma caipirinha (pouca pinga, muito gelo, limão expremido, sem açúcar) ou suco de maracujá (com receita parecida). É cedo ainda. Sei que ele não tem, mas não evito dizer que ia bem um café, um copo bem grande, sem açúcar, mesmo que estivesse gelado como fazem nas praias do Sul.

Ele brinca se estou curando a ressaca na areia. Demorou, mas quando voltou com o suco que pedi, trouxe também um copo grande de plástico e uma garrafa térmica de café. “O pai foi buscar pra mim, disse pra te trazer uma também. Está sem açúcar que ele sabe que você não gosta.” Agradeci surpreso. Acho que segurar um copo de café sentindo seu cheiro misturado à maresia foi a segunda coisa boa que me aconteceu. Uma sensação de liberdade e conforto que me lembrou de outros momentos de alívio.

Logo corro a desenhar no canto do caderno algo de que tinha me esquecido ja na noite de ontem. Um rosto deitado de lado na mão, cotovelo sobre a mesa. Um sorriso encabulado, olhos procurando algo, eles sabem onde, e bochechas avermelhadas de quem de repente se sente vulnerável e infantil por esperar atenção no momento inusitado. Um brilho de olhos que os faz piscar involuntariamente e a mudança no ângulo do sorriso ao perceber que tinha a atenção e que ela vinha acompanhada de olhos que lhe procuraram e de sorriso diferente, mas igualmente encabulado e satisfeito pela reciprocidade. Satisfação de quem queria lhe dizer “Eu gosto muito de teu sorriso e o o seu olhar iluminou meu dia o suficiente por todos os outros em que não tive motivo para retribuir um sorriso.” De quem responderia a um amigo que, abelhudo e debochado, e, se amigos o podem ser, desrespeitoso, lhe perguntasse “E aí, vai comer?”… Lhe responderia apenas “Quero seguir encantado por esses olhos e por esse sorriso, hoje à noite, amanhã pela manhã e mergulhar neles para senti-los em meu rosto como se fossem meus.”

Sempre me senti mais confortável escrevendo. Talvez porque a escrita seja apenas a formalização de uma história contada, na qual não há nada físico para eu enfeiar. É por isso que, percebendo o disparate de meus garranchos, rabisco algumas frases. Frases bestas daquelas de figurinhas de drops de eucalipto e de revistinhas femininas como as que minha irmã colecionava na adolescência. Frases que eu ponho no papel sem pensar em valor ou qualidade. Só para tentar guardar o máximo do momento e o que sinto. Para depois, com calma, talvez escrever algo.

Rabisco as frases e finalmente estou leve, distraído. A ansiedade passa toda aos dedos que seguram e guiam o lápis. Ele, inquieto, aproveita minha sensação de leveza e cria asas. Sinto-o suspender-me. Tenho medo de soltá-lo e cair. Já olho para trás, está a praia. Para baixo, sinto o vento rápido e perco o medo, vejo o prateado da água do mar.

Mais de Duas da Manhã…

… e eu já não sei mais porque cismei de que tenho de postar algo hoje. Deve ter já uns dois anos que eu não termino algo de ponta a ponta para postar. Outros dois , dez, vinte anos, não farão diferença nenhuma.

Já mexi em quatro ou cinco coisas que estavam pela metade, já tentei começar algo do zero e já tenho ganas de processar a Apple pelo novo teclado do iPad, que engasga, bagunça tudo e apaga uma ou duas palavra de cada linha antes que eu perceba. Hora de comprar um notebook leve pra carregar por aí.

Cheguei em casa faz pouco mais de uma hora. Sem sono, são quase tres da manhã. Na televisão, já não há mais nada. Na mesinha de centro, que uso como pufe, há sim meu notebook, pesado demais para ser chamado de portátil, mas equipado com um teclado decente.

Na adega improvisada debaixo da pia, só tem pinga e licores. Falta vinho. Não posso me perdoar por deixar faltar vinho em casa. Se bem, que neste calor, vinho talvez não me caísse bem. A geladeira só tem água em garrafa de plástico. Eca! A água fica com aquele gosto horrível do plástico! No freezer, duas bandejas com bastante gelo. Na fruteira, laranjas que, de tão azedas, ninguém quis chupar. Deus é minha testemunha de que sou obrigado a fazer uma caipirinha.

Sentado na poltrona, copo ao lado do telefone, a televisão em algum filme ruim da madrugada a servir de abajur, o que me incomoda é o notebook quente no colo. Tenho preguiça de ligá-lo à tomada, mas parece ter uma hora e pouco de bateria ainda é isso tem de ser mais do que o suficiente para eu terminar algo antes de ter sono e cair.

O editor de textos do blog aberto. A luz da tela me incomoda um pouco. Olho o copo. Três cubos de gelo, uma rodela de laranja, bem pouca pinga. O gelo assim emerso vai demorar a derreter.  Ao tenho ideia do que escrever, a não ser aquelas usuais baboseiras da boca maldita que já me cansaram.

Fuço os rascunhos. Páginas e páginas de rascunhos que já deveriam estar viradas a muito tempo. Pouca coisa vale a pena de ser terminada. Mas essa pouca coisa também, não estou a fim de revirar.

Vêm-me à idéia sonhos e paisagens impossíveis. Borboletas que polinizam fadas. Peixes coloridos fazendo música de vanguarda no fundo de um vulcão submarino. Um casal feliz que não teme o futuro. Crianças dançam ao som de uivos de lobos. Uma mulher que morde os beiços até sangrarem e chora de emoção enquanto o namorado, que, durante o dia, trabalha como puma no zoológico, geme alto tomando-a de um jeito que nenhum dos dois ainda havia experimentado. Outro casal, nu, estreia sua nova cama de casal com um beijo demorado, rolando nela, mãos apertando as nádegas um do outro, na competição por quem será o primeiro. Um homem feio segura sozinho entre as duas mãos, para esquentá-lo, o copo de conhaque, pois o garçom não lhe trouxe uma vela, na primeira mesa ao canto da calçada, no primeiro bar da Avanhandava, rabisca desenhos e frases sem nexo no bonito caderno que tirou da mochila e, apesar dos olhos ligeiramente úmidos e de uma gota que lhes escorre pelo lado do rosto escondido pela parede, parece mais realizado e feliz que qualquer casal da rua.

Creio que todas serão boas histórias para quem souber vivê-las ao escrever. E péssimas para quem as escrever por exercício ou obrigação.

Percebo que estou ansioso e olho de novo para o copo. O gelo começou a derreter. Pinga quente é ruim. Lembro da ansiedade e de como esse copo de pinga deixaria bravo o cardiologista que disse que sou ansioso e propenso a procrastinar por conta de ataques de pânico. Eu o convidaria a beber comigo e conversar agora. Amanhã é domingo e, menos que você tenha em casa um chato que lhe infernize para acordar cedo, aos domingos, a gente pode dormir e acordar quando conseguir. Esse pensamento, e saber que a noite que ficou trancada lá fora, escondida de mim pelo teto e pelas cortinas, me acalma.

Jogo a cabeça para trás, olhando uma lâmpada apagada no teto e conto a mim mesmo uma história que já me aconteceu. Paro a certo ponto a verdade. Instintivamente, dramatizo com a sombra da luz da televisão, com o encosto da poltrona e com o vento fresco que entra pela janela, longe, do outro lado da sala, a versão correta, a que realmente aconteceu em algum sonho perdido ou num momento de razão em que deixei de raciocinar e fiz o que quis, sem medo, como se estivesse de madrugada, sozinho, na poltrona da sala.

Essas, que vêm sem querer, nas distrações em que confundimos a lembrança e o desejo, talvez não sejam as melhores histórias a se contar, carecem de trama e profundidade psicológica provavelmente, mas são as melhores de se escrever. Mais profusas que frases motivacionais em revistas femininas e fluentes como só pesadelos e pensamentos ruins podem ser. Quando uma dessas acontece, é ela a história certa a escrever. Preciso agora ter calma suficiente para pô-la fora pelos dedos no teclado sem me atrapalhar. Tentar acompanhar com os dedos o ritmo em que ela jorra sem querer de minha cachola doentia.

O grande problema em escrever é mesmo esse. Ter idéia, tenho muitas. Anoto-as e até esqueço pois não dá tempo de escrever tudo. E sentado na poltrona, conforme a cabeça viaja na imaginação, coisas que eu sei que nunca vão acontecer tomam forma ao meu redor de mim em coisas que só podem ser alucinações. O hálito de alguem que conversa comigo de perto, trazido pela quentura que meu pescoço deixou na borda do estofado. Uma voz conhecida dizendo no tom perfeito as melhores respostas para as perguntas que faço apenas com o movimento da boca. Paisagens urbanas de uma cidade serrana coloridas no escuro da daquela parede onde a luz da televisão não chega.  Devaneios de perdição num calor que não sei de onde vem, mas que só pode ser o do corpo de alguém que ainda não conheço. Sei que quanto mais rápido imagino (e isso é inevitável quando gosto do que imagino), mais perco na limitada velocidade da escrita.

É um constante alternar da imaginação involuntária para a necessidade de descrevê-la e, vice-versa, da escrita para a fantasia. Os detalhes. Os detalhes. Quero anotar todos, todos, mas tanta água desce em enxurrada por essa ladeira que acabo consegu8ndo só os mais evidentes, que espero sejam também os mais importante.

Teclo, teclo. Choro. Passo raiva. Suo muito. Olho o copo onde, me lembro, uma pedra de gelo muito grande derretia. Ela já derreteu quase toda. A pinga amarelada agora parece pura água. Não bebi nada. Nem me da mais vontade. Teclo mais algumas frases, para depois buscar água na geladeira. Aquela água com gosto de plástico que eu não quis antes. Está muito quente aqui. Eu sou muito. Escorrem o sovaco, o pescoço, a nação, atrás dos joelhos, até as mãos.

Certas coisas são difíceis de se escrever. Tem de ir de uma vez sem parar para pensar no que vai dar. Cheiro ruim de ferro. O nariz seco incomoda. De tanto suar, a pressão me parece cair e os dedos já escorregam nas teclas. Curioso, olho para o teclado, coisa que digitador bem treinado não faz. Já não distinguo algumas letras das teclas, lambuzadas com um líquido gosmento e opaco. Não parece ser só suor. Os dedos, das duas mãos, sujos.

Pego o copo no qual ainda não pus a boca, o guardanapo que estava embaixo dele para limpar o teclado. O papelzinho absorvente rasga e quase se desmancha logo que o pego. O vermelho clássico só agora me fica evidente. Mergulho os dedos, quase todos, exceto os polegares, das duas mãos, no líquido ainda meio gelado do copo. O drink, antes cristalino e sem graça, fica imediatamente bonito, decorado pelo sangue que escorre das feridas abertas neles pela escrita.

Romeo y Julieta

Romeo y Julieta não estavam juntos, eram na verdade um só. Entremeados e enlaçados um no outro (como se poderia dizer que fazem as lombrigas, se fosse romântico falar em lombrigas), trocavam juras de eternos amor e fidelidade.

Os já mais experientes da vida podem jugar-lhes ingênuos e até deles rir. Afinal de contas, é a reação que todos temos frente às paixões dos jovens. E estes, em particular, são muito jovens.

Ainda assim, seria-nos de admirar, a nós e a ela, a dimensão que essa eternidade, esses “para sempre” e “até a morte”, toma no caso desses dois Julieta e Romeo. Nem Shakespeare, narrador de tragédias e comédias, lhes adivinharia ou fazia tal futuro.

Nem nós, que sabemos da fugacidade do amor e de suas juras, poderíamos conceber que o destino ironizasse essa promessa assim, sem pudor de demonstrar poder. Tampouco eles, apaixonados, envolvidos pelos encanto que os prazeres sempre hão-de ter aos jovens imaturos, e mesmo aos adultos, adivinhariam que um promessa se cumpriria tão fácil e quase involuntariamente.

Pega-lhes entre os dedos médio e indicador o Termo. O Termo, feio, velho (muito mais velho que eles), mal-humorado, barbudo e baforento, fedido a álcool que (não importa o preço ou a marca) é sempre álcool, é sempre barato.

Ele leva-os à boca e toca-lhes fogo. Aspira. Tenta tragar-lhes o que têm. Traga duas, três, quatro vezes e se admira (sem emoção) de ainda estarem unidos numa estátua que já é quase metade carvão.

Entre uma tragada e outra, tenta se distrair soprando no ar, como fuligem, a fumaça grossa que deles tira. Imagina o que seja. Imagina pelas formas que lhe percebe. Nuvem. Fantasma. Chifre. Carrossel. Loucura.

Mais duas tragadas, e a estátua se quebra. As cinzas caem na terra, na grama, e se esfarelam. Já eles não têm metade do peso original.

Duas ou três depois e o que deles resta lhe esquenta o dedo, ameaça queimar. Ele joga então esse toco, ainda queimando, no arbusto, ao pé de uma árvore. Nesse toco, estão enroscados, ainda firmes. Realmente até o fim.

 

Caixas de Papelão

Desculpa o choro. É difícil, sabe. Mas… então… eu estava mexendo no guarda-roupa, arrumando as caixas para a mudança. Nas minhas portas, tinha uma bagunça danada. As coisas que eu costumo usar, eu logo separei, empacotei. Coloquei em malas mesmo, como se fosse uma viagem, para ficar mais fácil de levar e encontrar depois. Eu tenho três malas grandes. Elas foram práticas para isso. Perfumes, documentos, joias, bijus, isso também foi fácil. Isso eu sempre tenho já arrumado em caixas de plástico para não ficarem misturadas.

Depois de separar essas coisas, foram sobrando aquelas tralhas que parecem um arquivo morto. Achei muita coisa que eu nem lembrava que já tive. Muita coisa ainda empacotada na embalagem original. Às vezes, sem nem tirar da sacola da loja. Uma poeirada que só… Isso já tem duas semanas, e até agora eu ainda estou com a rinite atacada. Nas minhas portas, o que ficou foram um monte de cabides socados todos para o mesmo canto, na esquina da parede, onde é difícil mexer, com uns vestidos e sobretudos, umas coisas cafonas que eu não sei como alguma vez fui imaginar de vestir, e, embaixo, uns montes de outras roupas socadas que pareciam terra-batida de tão socadas. Eu acabei, na semana passada, chamando um abrigo, pedi pra eles irem lá e pegarem tudo como doação. Foi o melhor que fiz. Aquelas coisas ocupando espaço lá, sem eu me lembrar delas por tanto tempo… foi melhor sumir com elas do que ficar olhando e procurando desculpa para levar comigo ocupar espaço no apartamento novo. Mas, naquele dia, eu ainda não havia tido essa luz e cheguei a encher umas quatro ou cinco caixas com elas.

O quarto era pequeno. As caixas desmontadas eu apoiei na parede da janela. As montadas, que eu ia enchendo, eu não tinha força para levantar, fui empurrando com dificuldade em direção à porta e aos pés da cama.

Eu nunca gostei de trabalho de casa, por isso tenho empregada. Ainda por cima, mexer em coisas empoeiradas, cheiro de armário, ficar me levantando e abaixando, empurrar caixas pesadas. Eu devia ter arrumado caixas menores. Perdi quase a tarde toda nisso. Me encheu o saco. Tinha fome, sede, o corpo doído, porque você sabe que machuca mais ficar em um lugar apertado do que carregar carga. Eu me sentei na cama e desisti. Inclusive, foi quando comecei a pensar em guardar só o que tenho em uso. Já ia doar mesmo o que não quisesse, melhor doar tudo o que estava parado e não me fez falta por tanto tempo do que arrumar, levar e não usar, deixar ocupando espaço de novo.

Mas têm umas coisas, coisas nossas mesmo, que eu queria guardar e, para pegar, eu tive de mexer nas portas dele do guarda-roupas. Foi difícil mexer ali. Eu encontrei muita coisa que não devia ter encontrado. O cheiro na roupa, frascos de perfume, roupas de festa, lembranças. Muitas coisas que eu devia esquecer, mas lembrei. Me deu desespero de sair dali. E eu quis sair. Mas, quando me levantei para ir para a porta, bati a perna na quina de uma caixa. As caixas estavam todas enfileiradas seguindo a parede e as últimas estavam na frente da porta. Bagunça que eu fiz. E eu estava tão nervosa que não consegui firmar as mãos para empurrar as caixas. E ainda tinha roupas e coisas espalhadas pelo chão e por cima delas, coisas que eu tirei do armário para olhar e fui empilhando. E eu fiquei mais desesperada, porque vi que, para conseguir sair dali, eu tinha de pôr tudo, ou um monte daquilo, para dentro do armário de volta. Não dava para fugir, eu tinha de terminar de arrumar as caixas e separar as coisas. E eu já não queria mais nada daquilo. Por mim, pegava já só as malas que tinha arrumado, largava o resto. e saia pra tomar ar e fazer alguma coisa na rua, longe de casa, longe do apartamento velho, longe do novo, pra esquecer aquilo. Mas tive de ficar ali. Eu sentei na cama, em cima da tralha, em cima de um vestido velho, que parecia cortina de renda, e aquela porcaria de vestido estava fedido, imundo, empoeirado, até grudento. Ficou pinicando. E eu chorei e fiquei chorando.

Aí, me lembrei do banheiro, o que é conjugado com o quarto. Me levantei da cama. A merda do vestido até estava grudada na minha perna, não sei se da sujeira toda dele, se da minha, do suor, ou se foi só de eu ficar tanto tempo em cima dele. Ardeu quando o desgrudei. Eu entrei no banheiro e sentei na privada chorando mais. Ao menos ali tem piso frio, azulejos. Fica fresco. Dá impressão de refrescar.

Eu acho que ate ia parar de chorar, mas passei a mão nos olhos. Elas estavam sujas. Os olhos já estavam irritados, o nariz também. Foi aí que eu tive até de fechar os olhos de tanto que ardiam. Começaram a escorrer feito torneira. Quando eu consegui ver minhas mãos, as palmas estavam pretas. Pareciam de borracheiro. E eu ainda senti coceira pelos braços e pelas pernas. Devia ter ácaro e sabe lá que tipo mais de bicho por todo lado naquele armário.

Quando eu percebi que estavam muito sujas e que eu precisava lavá-las, isso me acalmou. Nem precisei engolir o choro, ele diminuiu. Por sorte, eu estava no banheiro, senão ficaria ainda mais nervosa se não achasse onde me lavar.

Eu tirei a roupa e entrei no banho. Deixei escorrer bastante água fria. Eu nunca gostei de água fria, acho que nenhuma mulher gosta. Os homens entram no banho de água fria e falam que é morna, que eu gosto de água fervendo. Eu não gosto de água fria, gosto de banho quente. Mas aquele banho, quando eu abri a água, ela estava fria e eu fiquei tão aliviada com o molhado que não me lembrei de esquentá-la.

Eu esfreguei o corpo sem sabonete, para tirar a poeira. Por sorte, ainda tinha xampu no box. Esfreguei só com as mãos. Foi muito bom, refrescou, me acalmou. Até aliviou a irritação e a coceira.

O problema é que, quando eu sai do banho, não tinha toalhas. A gente, digo, eu. Eu as guardava no outro quarto, o que servia de escritório. Sai do box pingando, ou melhor, escorrendo, emporcalhando todo o banheiro. Dane-se, ele não ia ser mais meu mesmo. Ficasse o banheiro emporcalhado.

Me desanimei de novo pensando que ia ter de mexer naquela bagunça para conseguir abrir a porta do quarto para o corredor para sair. Pensei também no vento gelado que já devia estar entrando pela janela e acabei ficando no banheiro, enrolando para voltar ao quarto.

Foi quando eu ouvi um barulho. Aquele barulho de quando você mexer em um monte de coisas amontoadas, tira uma do lugar e as outras escorregam um pouco e batem umas nas outras. Barulho de metal, ou de concreto, alguma coisa de metal batendo na parede. Pensei que viesse da parede do banheiro, do chuveiro. Mas, quando ouvi de novo, percebi que vinha da parede do guarda-roupa. Na verdade, a parede é a mesma, mas o barulho veio do outro lado, o lado do quarto, onde fica o guarda-roupa embutido.

Eu me assustei, devia estar sozinha. Perguntei se havia alguém, mas não atendeu ninguém.eu prestei atenção e achei, deve ter ouvido mesmo, mas, na hora, só achei, que ouvi algo de novo. Dessa vez, um movimento de algo macio, mas pesado, se arrastando de encontro à parede. As roupas? Não sou supersticiosa, não era. Minha mãe é. Ela já pensaria em fantasma. No lençol do fantasma atravessando a parede. Mas eu chamei. Chamei até por quem eu sabia que não ia responder. E ninguém respondeu mesmo.

Eu tinha medo. Esperei. Esperei. Não ouvi mais nada. Eu não sabia o que era, o que tinha sido. Eu tinha medo. Não sei quanto tempo esperei. Mas o quê que eu podia fazer? Ia ficar ali parada esperando até quem vir me procurar? Até quem me encontrar? Se me encontrassem ia ser só um velho esqueleto esquecido, de alguém que morreu escondida no banheiro da suíte?

Eu saí do banheiro devagar, com cuidado, espreitando pela fresta da porta enquanto a abria, com medo de encontrar alguém. Com medo de matar algum conhecido, me lembrei da arma no criado-mudo dele. Mas não peguei, porque não encontrei nada. As caixas da frente da porta e a bagunça que fiz das coisas amontoadas continuavam iguais.

Eu fui procurar então dentro do guarda-roupa, se algo tinha caído. Talvez, ao desfazer a bagunça, eu tivesse tirado o apoio de um cabideiro. À primeira vista, não achei nada. Mas olhei para cima e vi uma coisa muito esquisita. Algo no alto do armário. O forro do teto do guarda-roupa não estava lá. Estava aberto. Uma abertura que, eu não via isso pois não havia luz lá em cima, podia muito bem, talvez, dar no guarda-roupa do vizinho de cima. Eu olhei, procurei. Me senti indiscreta, mas olhei bem pra lá. Escuro. Não vi nada.

A sensação se ser indiscreta passou quando me lembrei que aquele é o último andar. Não há apartamento mais alto, só a casa do zelador, mas ela fica na outra face do prédio. Ali em cima, só podia haver caixa d’água, antenas ou coisa do tipo. Aí fiquei curiosa de vez. Mas para ver, eu precisava de uma lanterna ou, ao menos, de uma escada. E eu não ia primeiro arrumar a bagunça para conseguir sair procurando isso.

O que eu tinha eram as caixas, as cheias, pesadas, e mais algumas desmontadas. A gente desmerece papelão, mas é algo muito resistente. Experimente fazer um prisma grande de papelão dobrado. Depois ponha um tampo de papelão por cima. Pise para amassar e você vai ver que não é fácil. Se dobrar direito as caixas, tomar cuidado com as proporções, dá pra montar uma base suficientemente forte para sustentar uma pessoa por alguns minutos.

Eu montei duas, uma pirâmide de dois andares, da altura de duas caixas. Foram dois degraus grandes. O suficiente para, com cuidado, eu conseguir me debruçar no alto do armário e subir e fuçar o que havia em cima.

Era escuro, era alto. Não havia o que esperar encontrar lá. Mas, por ali, eu sairia logo daquele quarto maldito.

20-9-’14

Is this the way out from this endless scene?
Or just an entrance to another dream?
— Genesis – The Light Dies Down On Broadway

Eu só me lembro a partir de quando me levantei para ir embora. A maior parte do sonho foi anterior a isso. Não me lembro, mas sei que tomávamos café em um grupo de entre meia dúzia e uma dúzia de pessoas, numa mesa redonda de tampo verde, igual camurça de mesa de sinuca, mas não era camurça, era fórmica. A mesa era de madeira escura, envernizada, só o tampo feito de fórmica verde. Ainda assim, em torno dessa fórmica, havia uma beirada, ainda de madeira, de uns quinze centímetros de largura. Eu tinha bebido chá gelado, provavelmente preto. Me lembro do copo de plástico transparente com canudo verde que deixei sobre a mesa quando saí, ainda com muitas pedras de gelo, um resto de bebida castanha e, grudada no gelo, umas coisinhas pretas que me pareceram pedaços de folhas de chá preto.

Aproveitaram para sair comigo uma mulher e uma menina, os outros ficaram. Não me lembro se me despedi deles, mas acho que não. A sala do café, fresca de ar-condicionado, estava iluminada mas parecia escura porque tinha a decoração toda em madeira escura e alvenaria pintada de bege e as lâmpadas eram colocadas de forma a não iluminarem diretamente as paredes.

Na saída, a porta nos levou para uma sala vazia, parecia em reforma ou ainda em construção. Tinha teto, mas não lampadas, e a luz, que a iluminava muito bem, era a do dia, como se o calor do sol ficasse para fora e sua luz entrasse pelas telhas Eternit. Paredes sem acabamento, encanamentos coloridos de metal cinza expostos pendurados no teto sem forro, sprinklers também pendurados nas pontas de longos canos pretos.

A mulher me disse que precisava de água. Eu acho que sabia que era para a menina tomar um remédio. Aquela sala não me era de todo estranha, eu sabia onde estavam as torneiras. Havia uma porta, sem a folha. Um pouco antes dela, uma torneira, na altura do meu joelho. Mas não usei-a. Passei pela porta, era outra sala, um pouco menor, escura, também vazia. Paredes verdes, mal iluminadas, muito mal iluminadas. A pouca luz era quase o escuro.

Eu tinha na mão um copinho de plástico, pequeno, daqueles de café, cinqüenta mL’s, eu acho. Não sei como foi parar na minha mão. Lembrei-me que usávmos esses copinhos na escola para o flúor do bochecho obrigatória da quarta-feira – ou da quin-feira, não me lembro o dia certo. Abri a torneira. Girei, girei. Demorou para sair água e, quando saiu, foi só um filete. Continuei girando muito e ele não engrossou.

Mal iluminado ali, não dava para ver se a água estava limpa, nem a torneira. Tomei consciência de estar num banheiro. Pensei no chão, que eu não via mas já sabia estar imundo, molhado, mijado, cheio de barro e porcarias pisados. Foi quando me toquei do cheiro muito fraco de banheiro sujo. Fraco, mas que foi o suficiente para me enjoar. Tive nojo de pegar água ali, de levá-la para a menina. Não quis nem voltar com aquela água no copo. Derramei-a no chão e saí para jogar no lixo o copo sujo de água.

Não haveria lata de lixo, eu sabia, mas voltei para a sala anterior, passei pela mulher com a menina, e fui andando, reto, para a parede que separava a sala em reforma do café, não para a porta. Como se eu fosse um fantasma que a atravessaria. A mulher riu. Virei-me. A risada não era da topada que eu daria. A menina correu para fora, por uma parede que desapareceu. A mulher ria da torneira que eu não quis usar e que jorrava água. Fui fechá-la, mas ela não tinha a manopla. Parece que a torneira de dentro, por onde só havia saído um fio, quando aberta, fez sair água pela de fora.

Logo que percebi isso, os sprinklers se abriram. Achei engraçada a cena de pastelão. Mas logo perdeu a graça quando, do de cima de mim, começou a escorrer, como de um cano aberto, água gelada nas minhas costas. Fechei os olhos e tentei me esquivar, sem tirar os pés do chão porque foi também quando percebi que o chão se alagava e a água já quase os cobria.

A mulher tentou sair pelo mesmo caminho da menina, mas a parede havia aparecido de novo. Entrei de volta no banheiro, com nojo da sujeira que devia estar boiando na água que entrava pela porta. Quis fechar a torneira que eu achei ter largado ainda aberta. Não pude porque ela também estava sem a manopla.

Foi quando acordei, sem o despertador tocar e sem saber a hora. Já podia ser de manhã, tive preguiça de procurar o relógio ou mexer na janela. Passava desenho animado na televisão. Dormi de novo. Depois vi que ainda era de madrugada, quando acordei de novo, estava começando a missa na televisão.

Enquanto me lembrava e escrevia, percebi que o café era de alguma livraria, que eu freqüento só pelo café, já há alguns meses parei de comprar livros impressos. Mas a sala onde ele funcionava no sonho, não era a dele, nem era da livraria. Era do bar de uma lanchonete que já fechou. A sala em construção era a ante-sala do vestiário do clube, entre o campo antigo, as quadras e as churrasqueiras. O banheiro, era o da minha escola de infância, devia estar imundo como sempre.