Mais de Duas da Manhã…

… e eu já não sei mais porque cismei de que tenho de postar algo hoje. Deve ter já uns dois anos que eu não termino algo de ponta a ponta para postar. Outros dois , dez, vinte anos, não farão diferença nenhuma.

Já mexi em quatro ou cinco coisas que estavam pela metade, já tentei começar algo do zero e já tenho ganas de processar a Apple pelo novo teclado do iPad, que engasga, bagunça tudo e apaga uma ou duas palavra de cada linha antes que eu perceba. Hora de comprar um notebook leve pra carregar por aí.

Cheguei em casa faz pouco mais de uma hora. Sem sono, são quase tres da manhã. Na televisão, já não há mais nada. Na mesinha de centro, que uso como pufe, há sim meu notebook, pesado demais para ser chamado de portátil, mas equipado com um teclado decente.

Na adega improvisada debaixo da pia, só tem pinga e licores. Falta vinho. Não posso me perdoar por deixar faltar vinho em casa. Se bem, que neste calor, vinho talvez não me caísse bem. A geladeira só tem água em garrafa de plástico. Eca! A água fica com aquele gosto horrível do plástico! No freezer, duas bandejas com bastante gelo. Na fruteira, laranjas que, de tão azedas, ninguém quis chupar. Deus é minha testemunha de que sou obrigado a fazer uma caipirinha.

Sentado na poltrona, copo ao lado do telefone, a televisão em algum filme ruim da madrugada a servir de abajur, o que me incomoda é o notebook quente no colo. Tenho preguiça de ligá-lo à tomada, mas parece ter uma hora e pouco de bateria ainda é isso tem de ser mais do que o suficiente para eu terminar algo antes de ter sono e cair.

O editor de textos do blog aberto. A luz da tela me incomoda um pouco. Olho o copo. Três cubos de gelo, uma rodela de laranja, bem pouca pinga. O gelo assim emerso vai demorar a derreter.  Ao tenho ideia do que escrever, a não ser aquelas usuais baboseiras da boca maldita que já me cansaram.

Fuço os rascunhos. Páginas e páginas de rascunhos que já deveriam estar viradas a muito tempo. Pouca coisa vale a pena de ser terminada. Mas essa pouca coisa também, não estou a fim de revirar.

Vêm-me à idéia sonhos e paisagens impossíveis. Borboletas que polinizam fadas. Peixes coloridos fazendo música de vanguarda no fundo de um vulcão submarino. Um casal feliz que não teme o futuro. Crianças dançam ao som de uivos de lobos. Uma mulher que morde os beiços até sangrarem e chora de emoção enquanto o namorado, que, durante o dia, trabalha como puma no zoológico, geme alto tomando-a de um jeito que nenhum dos dois ainda havia experimentado. Outro casal, nu, estreia sua nova cama de casal com um beijo demorado, rolando nela, mãos apertando as nádegas um do outro, na competição por quem será o primeiro. Um homem feio segura sozinho entre as duas mãos, para esquentá-lo, o copo de conhaque, pois o garçom não lhe trouxe uma vela, na primeira mesa ao canto da calçada, no primeiro bar da Avanhandava, rabisca desenhos e frases sem nexo no bonito caderno que tirou da mochila e, apesar dos olhos ligeiramente úmidos e de uma gota que lhes escorre pelo lado do rosto escondido pela parede, parece mais realizado e feliz que qualquer casal da rua.

Creio que todas serão boas histórias para quem souber vivê-las ao escrever. E péssimas para quem as escrever por exercício ou obrigação.

Percebo que estou ansioso e olho de novo para o copo. O gelo começou a derreter. Pinga quente é ruim. Lembro da ansiedade e de como esse copo de pinga deixaria bravo o cardiologista que disse que sou ansioso e propenso a procrastinar por conta de ataques de pânico. Eu o convidaria a beber comigo e conversar agora. Amanhã é domingo e, menos que você tenha em casa um chato que lhe infernize para acordar cedo, aos domingos, a gente pode dormir e acordar quando conseguir. Esse pensamento, e saber que a noite que ficou trancada lá fora, escondida de mim pelo teto e pelas cortinas, me acalma.

Jogo a cabeça para trás, olhando uma lâmpada apagada no teto e conto a mim mesmo uma história que já me aconteceu. Paro a certo ponto a verdade. Instintivamente, dramatizo com a sombra da luz da televisão, com o encosto da poltrona e com o vento fresco que entra pela janela, longe, do outro lado da sala, a versão correta, a que realmente aconteceu em algum sonho perdido ou num momento de razão em que deixei de raciocinar e fiz o que quis, sem medo, como se estivesse de madrugada, sozinho, na poltrona da sala.

Essas, que vêm sem querer, nas distrações em que confundimos a lembrança e o desejo, talvez não sejam as melhores histórias a se contar, carecem de trama e profundidade psicológica provavelmente, mas são as melhores de se escrever. Mais profusas que frases motivacionais em revistas femininas e fluentes como só pesadelos e pensamentos ruins podem ser. Quando uma dessas acontece, é ela a história certa a escrever. Preciso agora ter calma suficiente para pô-la fora pelos dedos no teclado sem me atrapalhar. Tentar acompanhar com os dedos o ritmo em que ela jorra sem querer de minha cachola doentia.

O grande problema em escrever é mesmo esse. Ter idéia, tenho muitas. Anoto-as e até esqueço pois não dá tempo de escrever tudo. E sentado na poltrona, conforme a cabeça viaja na imaginação, coisas que eu sei que nunca vão acontecer tomam forma ao meu redor de mim em coisas que só podem ser alucinações. O hálito de alguem que conversa comigo de perto, trazido pela quentura que meu pescoço deixou na borda do estofado. Uma voz conhecida dizendo no tom perfeito as melhores respostas para as perguntas que faço apenas com o movimento da boca. Paisagens urbanas de uma cidade serrana coloridas no escuro da daquela parede onde a luz da televisão não chega.  Devaneios de perdição num calor que não sei de onde vem, mas que só pode ser o do corpo de alguém que ainda não conheço. Sei que quanto mais rápido imagino (e isso é inevitável quando gosto do que imagino), mais perco na limitada velocidade da escrita.

É um constante alternar da imaginação involuntária para a necessidade de descrevê-la e, vice-versa, da escrita para a fantasia. Os detalhes. Os detalhes. Quero anotar todos, todos, mas tanta água desce em enxurrada por essa ladeira que acabo consegu8ndo só os mais evidentes, que espero sejam também os mais importante.

Teclo, teclo. Choro. Passo raiva. Suo muito. Olho o copo onde, me lembro, uma pedra de gelo muito grande derretia. Ela já derreteu quase toda. A pinga amarelada agora parece pura água. Não bebi nada. Nem me da mais vontade. Teclo mais algumas frases, para depois buscar água na geladeira. Aquela água com gosto de plástico que eu não quis antes. Está muito quente aqui. Eu sou muito. Escorrem o sovaco, o pescoço, a nação, atrás dos joelhos, até as mãos.

Certas coisas são difíceis de se escrever. Tem de ir de uma vez sem parar para pensar no que vai dar. Cheiro ruim de ferro. O nariz seco incomoda. De tanto suar, a pressão me parece cair e os dedos já escorregam nas teclas. Curioso, olho para o teclado, coisa que digitador bem treinado não faz. Já não distinguo algumas letras das teclas, lambuzadas com um líquido gosmento e opaco. Não parece ser só suor. Os dedos, das duas mãos, sujos.

Pego o copo no qual ainda não pus a boca, o guardanapo que estava embaixo dele para limpar o teclado. O papelzinho absorvente rasga e quase se desmancha logo que o pego. O vermelho clássico só agora me fica evidente. Mergulho os dedos, quase todos, exceto os polegares, das duas mãos, no líquido ainda meio gelado do copo. O drink, antes cristalino e sem graça, fica imediatamente bonito, decorado pelo sangue que escorre das feridas abertas neles pela escrita.

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