Está difícil de conseguir acabar os textos que tenho no forno. Quando tento, alguém abre a porta do forno e eles solam. Dá a maior preguiça depois, para consertar a porcaria. Porcaria mesmo, sem tamanho.
Agora, por exemplo, tenho de novo um café na mão (na mesa a meu lado, é verdade), o tablet, corpo dolorido de quem dirigiu e andou bastante no fim-de-semana (estou todo suado, os casais que namoram nas outras poltronas deve ter reparado), o tempinho do final de domingo, antes do jantar e ninguém conhecido por perto para me encher o saco. Ainda assim, abri a lista dos rascunhos, alguns precisando só serem (muito) corrigidos e pensei “ó pai, que trabalheira que qualquer um desses vai dar!”
Ontem à noite já tentei. Se bem que a oportunidade não era tão boa. No hotel, onze e tanto, quase meia-noite, dei uma escapulida, caixa de charutos num bolso, cantil com um resto de brandy noutro (precisa, para quando o charuto seca a boca), tablet na mão, ou mais provavelmente embaixo do sovaco, como costumo carregá-lo. Minha ideia primeira foi descer à praça e sentar-me num daqueles bancos de granito com propaganda de comércio. Aqueles bancos tradicionais de praça de cidadezinha e que existiam também na minha cidade quando ela era pouco mais do que uma cidadezinha.
A praça é grande bem arborizada. Do elevador panorâmico do hotel deu para ver uma espécie de praça de alimentação perto dos bancos onde pensei em me sentar, bem em frente à entrada do hotel. São umas barracas de lanche dispostas em círculo com mesas no centro. Muita batata frita, pães recheadíssimos com enlatados e hambúrguer industrializado, latinhas de cerveja dessas marcas adoçadas, jovens, pareceu-me que fossem todos homens, de agasalhos de moletom de marcas de surf e bonés de skatista (aqueles que chamávamos de bombeta, quando eu era adolescente) e música alta de festa na laje. Não me pareceu o lugar onde eu teria sossego.
Imediatamente, me lembrei da piscina do hotel, que eu só experimentei com a mão, já esperando a água gelada de inverno na serra, e onde, embora estivesse apenas fria, não entrei porque achei a superfície da água muito empoeirada. Coisa de piscina no inverno, que, mesmo quando não está gelada, ninguém pensa em usar. A piscina fica na cobertura, cercada por cadeiras de sol e um jardim que faz toda a volta do andar.
Dei meia-volta no elevador e subi para lá. Pousei o cantil na beirada do jardim e puxei uma das cadeiras para junto. Peguei um charuto e o acendi. Foi fácil, não havia vento, nem o frio da sexta-feira. Na sexta-feira, eu logo de cara abortei a missão descer para a praça, por causa do frio. Ontem não. Apesar do inverno, da serra, o frio era gostoso, não tinha vento e, logo que olhei para cima vi, não tinha nuvens também.
Na segunda vez que puxei do charuto, reparei que ele queimava rápido demais. Devia estar bem seco. Olhei para cima para baforar vendo a fumaça subir, se espalhar e desaparecer. Ainda acho graça nisso, quase como criança. Acho bonito a fumaça cobrir grossa o céu e desaparecer sem que se perceba como. Igual ao ponteiro dos minutos do relógio, que a gente olha andar sem ver andar. Depois da fumaça, continuei olhando para o céu. Muitas estrelas. Vê-se-as bem daqui. Inclusive, há um observatório grande não muito longe.
Quando se olha para o céu, a princípio, as estrelas não são muito nítidas. Têm-se de manter a vista por um tempo para se acostumar e focar direito. Aí elas vão aparecendo. O brilho ressalta, ganham nitidez, enquanto o céu ao fundo parece ficar cada vez mais escuro. No céu claro, as estrelas são como incrustações, como aquelas pedrinhas que, há algum tempo atrás, as mulheres usavam muito nas roupas. Strass. É strass o nome daquilo. Lembrei da primeira vez em que ouvi uma amiga usar essa palavra. E me lembrei que um dos textos quase acabados era sobre ele, ou tinha ela, ou era para ela. Ou provavelmente tudo isso. E era um dos que eu nunca terminava de escrever, já ia há uns dois anos eles. Terminei o charuto olhando para o céu, sem prestar mais muita atenção a ele nem às estrelas, pensado em como lhe enviaria o texto acabado. Esse tinha de ser enviado, não era coisa de se deixar perdido na internet esperando que a pessoa procure: “coisas escritas comigo ou para mim ou sobre mim”. E-mail, correio, visita. Todos os meios têm seus prós e contras. Não sei qual a praxe, não entendo disso… de praxe nenhuma.
O charuto acabou e eu desmanchei o toco de folhas queimadas para espalhar na terra do jardim como bom adubo que ele se tornou. Bochechei um gole pequeno de brandy para umedecer a boca e, por fim o engoli. Parece nojeira, mas maior seria se eu cuspisse numa planta ou na piscina. Engolir foi, então, um heroico sacrifício pelo qual meu fígado merece uma medalha.
Olhei por cima do jardim para a praça lá embaixo, do outro lado da rua. Uma borboleta grande pareceu passar voando junto à borda dos galhos. Ali é alto para borboletas, ainda mais àquela hora. Curioso, fiquei prestando atenção. A luz das barracas de comida não muito atrapalhava a vista. Ela passou de novo. Grande, bem grande. Rápida. Borboleta rápida é difícil. Marrom ou bege. Ou no máximo aquele burro-quando-foge que muitos chamam de pardo. Será que à noite todas as borboletas são pardas? Na quinta ou na sexta passagem, consegui segui-la com os olhos. Agarrou-se num galho que chacoalhou e logo foi embora zanzar de novo. Decepção. Acabou o mistério. Não era borboleta. Era um morcego.
Decepcionado por ter-me enganado. Não por não ser uma borboleta, eu gosto de morcegos, mas por ser um bicho que não causa estranheza estar ali àquela hora. Decepcionado também por, distraído pensando no que fazer com aquela história, não ter escrito nada. Resolvi acender mais um charuto. Coisas rara, fumar mais de um na mesma semana. Tentei algo que já vi fazerem, molhar a ponta no brandy. Uma besteira. Custou a acender. Ficou difícil de puxar o ar para que queimasse. Gastei bastante do gás do isqueiro até que o fogo ficou já fraco. Mas aí já tinha conseguido chegar à parte seca e o fogo pegou.
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