Eu pego o caderno e o lápis correndo. Também correndo procuro, sem prestar muita atenção ao caminho, por um lugar para ficar sozinho. Não acho, nem tenho ideia. Dou umas duas voltas em torno de mim mesmo antes de paralisar pelo inútil do desespero.
Aqui não tem o parapeito da minha janela. Há janelas sim, mas com grades. Aquelas grades para evitar de criança cair, mas que também impedem o adulto de se debruçar para fora e respirar ar fresco. Parecem frágeis demais essas grades para o peso de uma criança. Mas, para o nariz e os olhos de um adulto, intransponíveis.
Tampouco minhas árvores para subir onde os outros tenham medo e ignorar-lhes os pitos e ameaças. Árvores fazem muita falta. Gosto das pitangueiras. Mas para fugir do mundo as mexeriqueiras são as melhores. Quando dá sede, pega uma fruta, chupa o caldo. Dá pra passar o dia todo escondido na copa de uma.
Penso em fugir para o terraço, mas também não tenho um. Como seria bom fugir para o terraço! Sentar-me escondido no canto, longe da vista da janela para pensarem que sumi. Como quando eu era menor e subia na laje da garagem, onde ninguém tinha desculpa de aparecer de repente para encher o saco fingindo que estava só de passagem. Laje não é passagem, quem aparece lá não dá para esconder que foi só para encher o saco.
Percebi que o lápis estava sem ponta. Peguei o canivete na mochila – que agora não era hora de por-me a descobrir onde havia um apontador, esses apontadores vagabundos de hoje – e cheguei à cozinha para fazer-lhe ponta. Lasquei-lhe com força, sem jeito nenhum, como se fosse psicopata de filme a cortar fora os membros de alguém. Dei de cara dois talhos fortes. O primeiro arrancou ao lápis uma lasca comprida, que, desajeitado, enfiei-lhe a lâmina mito longe da ponta e ainda tive de fazer força demais. Saiu aquela tripa que era quase uma lombriga, expondo parte da grafite que devia ter ficado escondida. O segundo, tentei não pegar tão longe da ponta, peguei também errado, de atravessado, como se fosse cortar uma tora do lápis a machado. A lâmina espirrou, quebrou a grafite exposta, lascou a madeira e quase me pegou o dedo. Tive nos talhos seguintes mais cuidado. Não de medo de machucar-me, mas de ver que errando assim, demoraria mais a acabar e fugir dali. Para consertar os erros, desperdicei uns cinco centímetros do lápis. Mas ao acabar, ele estava com a ponta comprida, igual quando minha mãe apontava seus lápis de escrever em pano antes de costurar, feito ponta de lança de portão.
Eu fechei o canivete e o de volta na mochila. Por falta de onde me meter, fui ao banheiro pensar. Sentado na privada, diz o folclore urbano, é o melhor lugar para pensar. Abri o caderno no colo e não tive ideia de por onde começar. Alguns rascunhos e notas eu já tinha mas nada que eu quisesse mexer agora. Impaciente, não quero desperdiçar as notas que tenho para terminar porque não quero demorar. Quero desembuchar logo algo. Considero escrever alguma coisa simples, as casas de sempre. Estou de saco cheio das coisas de sempre.
Encosto o lápis no papel para forçar-me a começar algo. A ponta do grafite estão tão afiada que eu acho que vai se esfarelar quando a apartar de encontro ao papel. Sempre apertei com força lápis e caneta de encontro ao papel. As professoras me chamavam a atenção para isso. Demorava a escrever e cansava muito o pulso na escola. Ficava muito tempo com ele dolorido depois. Minhas canetas, era comum quebrarem antes de acabar a tinta. Os lápis estavam sempre de ponta cega precisando apontar.
Tenho um calombo no pulso, por sobe ele passa aquela veia onde procuramos a pulsação. Esse calombo é o que mais me doía na escola depois de escrever muito. Segurando o caderno com a esquerda e o lápis com a direita. Foi o calombo da esquerda que eu vi. Não era esse o que doía, eu escrevo com a outra mão. Olhei o da direita e depois voltei ao da esquerda. Pareciam iguais. Passei um dedo sobre ele, para sentir se parecia inchado, inflamado ou coisa assim. Burro eu, se escrevia com a outra mão, este também não podia ter tal problema. Senti-o macio, como pelica, frágil.
Lembrei-me da ponta do lápis, bem afiada encostada de novo no caderno e de tantas vezes que tentei sentir-me o pulso. E das poucas em que consegui. E foi quando encontrei algo para pôr no papel. Levantei o lápis, segurei-o como pincel. Com o polegar ao seu largo fazendo força, nem precisei de muita, enfiei-lhe a ponta na veia do pulso.
Sentindo a pressão cair, a cabeça leve, tonteei, acho que para desmaiar, enquanto algumas gotas de sangue pingavam no papel.
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