sonho

É tanta correria para por em dia as anotações. Tantos filmes que vi e ainda nem anotei aqui que os vi e se gostei ou não. Tanta lorota para contar.

Acabo esquecendo das coisas que o cinema me faz esquecer.

Aí preciso, de qualquer maneira, matar esta vontade de escrever que, esta noite, tentando dormir, sonhei.

Sonhei que meu travesseiro estava fresco e que eu o abracei como se fosse um grande ursinho de pelúcia. Que a noite estava muito quente, mas um vento gostoso entrava pelas frestas da veneziana, e eu joguei o cobertor para o lado para senti-lo refrescar-me.

Nesse sonho, o travesseiro ainda foi-se moldando a meu rosto de forma que logo senti sua curva tocando meu nariz e pressionando os pêlos de meu bigode. Era um toque macio que logo se tornou perfumado. Perfume daquela flor oriental e de um pó pesado. Perfume denso que poderia me sufocar se eu não o respirasse como se fosse o próprio oxigênio de que meu corpo tanto precisa.

E deliciado, cheio de vida pelo aspirar desse perfume, pela maciez de onde repousava minha cabeça, sonhei abrir os olhos. E sonhei com olhos.

Não tive tempo de me acanhar. Logo fechei os meus. Fucei um pouco. Fucei mesmo, essa é a palavra. Procurei o nariz e a boca correspondentes àqueles olhos e senti o canto dos lábios roçarem meu rosto ao lado dos meus. E também juro que senti alguma penugem de meu rosto tocar uma pele. Não posso jurar que alguma realmente estivesse ali, pois não sonhei com seu calor. Sonhei sim com frescor.

Um frescor de conforto que me embalou para o descanso até de manhã.

pensamentos ao léu #2537

Eu pego o caderno e o lápis correndo. Também correndo procuro, sem prestar muita atenção ao caminho, por um lugar para ficar sozinho. Não acho, nem tenho ideia. Dou umas duas voltas em torno de mim mesmo antes de paralisar pelo inútil do desespero.

Aqui não tem o parapeito da minha janela. Há janelas sim, mas com grades. Aquelas grades para evitar de criança cair, mas que também impedem o adulto de se debruçar para fora e respirar ar fresco. Parecem frágeis demais essas grades para o peso de uma criança. Mas, para o nariz e os olhos de um adulto, intransponíveis.

Tampouco minhas árvores para subir onde os outros tenham medo e ignorar-lhes os pitos e ameaças. Árvores fazem muita falta. Gosto das pitangueiras. Mas para fugir do mundo as mexeriqueiras são as melhores. Quando dá sede, pega uma fruta, chupa o caldo. Dá pra passar o dia todo escondido na copa de uma.

Penso em fugir para o terraço, mas também não tenho um. Como seria bom fugir para o terraço! Sentar-me escondido no canto, longe da vista da janela para pensarem que sumi. Como quando eu era menor e subia na laje da garagem, onde ninguém tinha desculpa de aparecer de repente para encher o saco fingindo que estava só de passagem. Laje não é passagem, quem aparece lá não dá para esconder que foi só para encher o saco.

Percebi que o lápis estava sem ponta. Peguei o canivete na mochila – que agora não era hora de por-me a descobrir onde havia um apontador, esses apontadores vagabundos de hoje – e cheguei à cozinha para fazer-lhe ponta. Lasquei-lhe com força, sem jeito nenhum, como se fosse psicopata de filme a cortar fora os membros de alguém. Dei de cara dois talhos fortes. O primeiro arrancou ao lápis uma lasca comprida, que, desajeitado, enfiei-lhe a lâmina mito longe da ponta e ainda tive de fazer força demais. Saiu aquela tripa que era quase uma lombriga, expondo parte da grafite que devia ter ficado escondida. O segundo, tentei não pegar tão longe da ponta, peguei também errado, de atravessado, como se fosse cortar uma tora do lápis a machado. A lâmina espirrou, quebrou a grafite exposta, lascou a madeira e quase me pegou o dedo. Tive nos talhos seguintes mais cuidado. Não de medo de machucar-me, mas de ver que errando assim, demoraria mais a acabar e fugir dali. Para consertar os erros, desperdicei uns cinco centímetros do lápis. Mas ao acabar, ele estava com a ponta comprida, igual quando minha mãe apontava seus lápis de escrever em pano antes de costurar, feito ponta de lança de portão.

Eu fechei o canivete e o de volta na mochila. Por falta de onde me meter, fui ao banheiro pensar. Sentado na privada, diz o folclore urbano, é o melhor lugar para pensar. Abri o caderno no colo e não tive ideia de por onde começar. Alguns rascunhos e notas eu já tinha mas nada que eu quisesse mexer agora. Impaciente, não quero desperdiçar as notas que tenho para terminar porque não quero demorar. Quero desembuchar logo algo. Considero escrever alguma coisa simples, as casas de sempre. Estou de saco cheio das coisas de sempre.

Encosto o lápis no papel para forçar-me a começar algo. A ponta do grafite estão tão afiada que eu acho que vai se esfarelar quando a apartar de encontro ao papel. Sempre apertei com força lápis e caneta de encontro ao papel. As professoras me chamavam a atenção para isso. Demorava a escrever e cansava muito o pulso na escola. Ficava muito tempo com ele dolorido depois. Minhas canetas, era comum quebrarem antes de acabar a tinta. Os lápis estavam sempre de ponta cega precisando apontar.

Tenho um calombo no pulso, por sobe ele passa aquela veia onde procuramos a pulsação. Esse calombo é o que mais me doía na escola depois de escrever muito. Segurando o caderno com a esquerda e o lápis com a direita. Foi o calombo da esquerda que eu vi. Não era esse o que doía, eu escrevo com a outra mão. Olhei o da direita e depois voltei ao da esquerda. Pareciam iguais. Passei um dedo sobre ele, para sentir se parecia inchado, inflamado ou coisa assim. Burro eu, se escrevia com a outra mão, este também não podia ter tal problema. Senti-o macio, como pelica, frágil.

Lembrei-me da ponta do lápis, bem afiada encostada de novo no caderno e de tantas vezes que tentei sentir-me o pulso. E das poucas em que consegui. E foi quando encontrei algo para pôr no papel. Levantei o lápis, segurei-o como pincel. Com o polegar ao seu largo fazendo força, nem precisei de muita, enfiei-lhe a ponta na veia do pulso.

Sentindo a pressão cair, a cabeça leve, tonteei, acho que para desmaiar, enquanto algumas gotas de sangue pingavam no papel.

uma pausa para um pensamento meloso

Se houver um espacinho em seu coração… ou mesmo que não haja, mas você queira-me fazer este favor… leva para si este carinho que tenho comigo… … … porque, no meu coração, ele, de tão grande, não cabe mais.

Eu não queria ficar trancado no hotel. Não tirei férias para sair de casa e me trancar noutro quarto. Puxei a poltrona para o terraço do quarto, peguei um copo de vinho e me sentei lá. Não vou dizer que estava ao relento porque uma beirada do telhado cobre o terraço por inteiro. Coloquei os fones de ouvido e fiquei escutando radio tentando enxergar algo. Não dava para ver nada porque a última madeira horizontal do parapeito do terraço ficava bem à altura de meus olhos. Afundei-em um pouco na poltrona e consegui ver por baixo dessa madeira. Via só o estacionamento lá embaixo e um pedaço das árvores dele. Por cima, pelo vão entre o parapeito e o telhado, só dava para ver que o céu estava nublado, nenhuma estrela, nenhuma lua. Já sabia que a noite estava muito fria, mas levou uns dez minutos para me incomodar. Consegui um cobertor bem grosso. Enrolei-me nele como se fosse uma pala, voltei a sentar-me e a afundar-me na poltrona e, entre bebericos do copo que deixava pousado no parapeito, tentei prestar atenção ao rádio. Passou um carro ao lado do estacionamento. Parou logo em seguida, na ladeira que serve de mirante aos namorados. A cidade não tem motel, mas tem essa ladeira. Vi os faróis se apagarem por trás de uma copa de árvore e deitei a cabeça de lado. Esqueci, por uns vinte minutos, do vinho que estava sobre o parapeito. Procurei de novo por estrelas. Só vi dois raios estourarem no horizonte, além da serra, sobre os morros. Eles me eram suficientes. Estava cansado.

Eu não tenho medo pois a luz de teus olhos adormecidos ilumina a noite que, lá fora, gela o corpo de quem não pode agora te abraçar para te aquecer. Estou cansado, mas sei que, mesmo quando dormir, teu perfume vai-me acampanhar como se segurasse minha mão… não importa para onde os sonhos me levem.

versinho tosco nº357

Eu quero rimar, sem saber porquê
A rima ou sua falta não mudam o que quero dizer
Gostava de ao menos conseguir acertar o mínimo de técnica
A tônica, o ritmo, a métrica
Contanto que isso não contaminasse o conteúdo
Nem desse ares de filustria a algo que creio tão comum
Queria conseguir dizer algo bom também
Mas sobretudo
Contar todos os segundos que penso a cada segundo
Um por um

cansada

Estava muito cansada quando chegou em casa.

Tão cansada que nem tomar banho queria. Mas teve nojo quando imaginou ao sentar-se no sofá a sensação da roupa encharcada de suor na sua bunda contrastando com o sofá fresco.

Só entrou no banheiro, jogou a roupa no chão e sentou-se no box, encostada à parede contrária ao chuveiro, com a água fria lhe molhando. Banho de porca preguiçosa.

Lavou-se sentada no chão, sem sabonete nem xampu, para não ter de se enxaguar, já imaginando o estado do cabelo ensebado no dia seguinte.

Saiu do banho molhada. Sem secar-se. Ia pingando, escorrendo, pelo piso frio.

Na sala, sentou-se no chão da sala, emcostada à parede, para não enxarcar o sofá.

Podia dormir ali mesmo, cansada estava. Mas era caso seu escrever no diário antes de dormir. Todo dia lhe escrevia. Era religiosa nisso. Escrever nele o que lhe havia cansado no dia, era o único motivo de folga que tinha.

Alcançou com a mão a gaveta da mesa do telefone, mas parou ao sentir a mão úmida tocando o puxador e o braço escorrer gelado para o sovaco. Secou a mão e o colo numa almofada que estava próxima antes de abrir a gaveta e pegar o livro e o lápis. Gostava de lápis. Não é definitivo. Pode-se refazer o erro.

Pousou o caderno no colo e o lápis na primeira página em branco. Mas logo desanimou. Tinha de escrever o que lhe aconteceu hoje. Não lhe aconteceu nada. Isso era triste! Só estava cansada!

Crescer é assistir morrerem seus heróis.  😥

http://www.museuclubedaesquina.org.br/fernando-brant/

13 de maio

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A Maior Flor do Mundo