Artur não tinha amigos nem irmãos.
Artur também não tinha aqueles primos chatos e tios interesseiros que só aparecem nos feriados para ver se a avó ainda dura e discutir sobre quanto tempo ela leva e que deviam vender isso e aquilo. Bom, tampouco tinha avó. Ou melhor, sabia ter, mas nunca a viu. Ficaram na Armênia, avó e tios. O avô morreu já havia morrido, na invasão turca, quando o pai, caçula de três, oito anos de idade na epoca, fugiu de casa de tanto a mãe brigar com os irmãos que diziam que ele era um peso morto. O pai passou pela Turquia, pela Ucrânia, pelo Líbano, ganhando a vida como podia (garçom, ajudante de loja, leiteiro). Até juntar dinheiro para embarcar para Salvador. Lá, fez amigos no comércio e pegou estrada para Aracaju, ser mascate. Tinha orgulho de seu sotaque e de como era respeitado na cidade que crescia. Tinha raiva de, ao preencher os documentos, lhe mandarem escrever Turquia em vez de Armênia, por causa do passaporte, e mais ainda de ser chamado de turco narigudo por quem lhe reparava o nariz, do qual também tinha muito orgulho.
Artur ouviu-lhe essa história quando já era ele grande o suficiente para passar o começo de noite no bar tomando cerveja com o pai, e também para trabalhar e o pai não ter de trabalhar até tão tarde, a lhe pagar sozinho todas as contas.
Artur da mãe não se lembrava. O pai só sabia dizer que não sabia dela. Os amigos dele não queriam saber do assunto. Um vizinho descarado por duas vezes, brigando com o pai, se referiu a ela como aquela que te… e não conseguiu terminar a frase pois a briga chegou às vias de fato.
Artur cedo aprendeu a se virar sozinho. O pai sempre na rua trabalhando, acordava cedo e pegava a carona que podia a seu destino do dia, fosse um dos bairros ou Estância, Itabaiana, Propriá, Lagarto… rodava o interior do jeito que podia. As amizades que tinha no Mercado lhe ajudavam a se organizar. O menino cozia o pão e o guisado diários. O café, o pai deixava pronto. A casa simples não precisava de muito esforço para a limpeza, que tocavam juntos depois da missa e o almoço do domingo. Missa perto de casa, na igreja da Santo Antônio mesmo pois, segundo o pai, Deus é o mesmo, fale o padre português ou armênio.
Artur, tirando os domingos, não era incomum ver o pai só tarde da noite, em tarde mesmo, quando chegava das andanças do trabalho. O velho, provavelmente sentindo-se culpado da ausência, sentava-se na cama do filho, entre ele e a parede, e dormia ali, encolhido, guardando o garoto que nunca o censurou nem agradeceu.
Artur hoje de manhã enterrou o pai. Já velho. Mas não o suficiente para te-se aposentado. Enterrou-o em cova simples no cemitério municipal. Cova que será reaproveitada daqui a alguns anos quando seus ossos forem exumados e levados para uma gaveta. Depois foi a missa e terminou o dia olhando o mar na areia da praia pensando em como é a vida, como é o mundo e como são as pessoas. Foi para a casa já na hora de tomar banho e se deitar.
Artur pegou seus documentos e leu seu próprio nome Aratum, não Artur, como ficou o conhecido no bairro, lembrou-se do pai e, de repente, sentiu uma tristeza que lhe pareceu ser todas as tristezas que o pai sentiu na vida juntas. Teve saudade dele e se encolheu com vontade de chorar.
Artur procurou na cômoda, e achou, uma caixa velha de giz de cera, já antigos, bem gastos. Desenhou, na parede, da melhor forma que pôde, a silhueta do pai, sentado a seu lado, como tantas vezes o percebera em seu sono. Ficou quieto sem entender. Dormiu.
Artur acordou no dia seguinte, de manhã cedo, hora do trabalho. Olhou o desenho na parede. Foi quando começou a entender o que é a vida. E resolveu que queria viver como seu pai.