XXX

A professora de redação pediu-nos uma descrição. Eu não entendo o sentido de se redigir uma descrição. Ela ensinou já, e ensinar é muita pretenção, pois qualquer um que para para pensar nisso logo percebe e, se não percebesse, também não lhe faz falta não saber, que há três tipos de redação: a narração, a dissertação e a descrição. A coisa é muito simples de se explicar. Narração é a redação de verdade, você conta uma história. Dissertação é aquela chatice de quando você tem de explicar algo. É chato, mas eu entendo, a gente sempre tem de fazer. Então precisa praticar. É para isso que o cursinho tem aula de redação. Dissertação são quarenta ou cinquenta linhas enrolando sobre uma coisa. Ficar procurando o que falar sobre ela para os outros saberem como é.

Descrever o que é descrição, dá para fazer em uma única linha: “é chato é inútil”. Ninguém gosta de ler, não cai no vestibular, dá trabalho para fazer e… Meu Deus! Por que ela inventou isso? Não podia pedir outra coisa? Não fosse lá tão bonita, eu já teria saído da sala, procurar o que fazer no jardim, trocar ideia com alguém eu estivesse fumando ou agitando rolê na portaria. Como é, não posso decepcionar, estou condenado a perder tempo com isso nas duas horas semanais que tenho para vê-la. Não posso decepcionar.

Ela sempre elogia minhas redações, acho que mesmo quando são um lixo. Quantas eu já fiz este ano? Duas por semana. Isso deve dar quase vinte. Acho que só duas me devolveu sem algum recado à margem. Logo na segunda aula já foi assim. Entreguei duas redações. A da primeira aula, que ela mandou fazer em casa porque demorou muito se apresentando e explicando as noções preliminares, e a da segunda que fizemos na classe depois de falar sobe vícios de linguagem e enquanto ela lia um livro pequeno de capa dura marrom encardida, desses que avó tem na estante. Que avós tinham na estante porque, hoje em dia, nem as avós tem estante. Coisa de sebo. Era um desses livros de capa-dura marrom que encalham, a coleção inteira, se empoeirando e encardindo na estante do sebo.

A primeira, que fiz em casa, sobre como odeio redações de início de curso, as famosas “Minhas Férias”, voltou só com as usuais anotações de copydesk: evite isso, pontue equi, não ali. A segunda, sobre eu só usar roupa cinza, tinha uma recado em caneta verde  ocupava toda a metade direita da margem superior: “Adorei. Espero ler mais assim ao longo do ano e, principalmente, que a do vestibular seja tão boa. XXX.” No XXX, não havia de verdade XXX, mas o seu nome. Tudo em caligrafia de professora primária. Na semana seguinte, a coisa se repetiu e eu me entusiasmei a ponto de ter medo de decepcioná-la.

Descrição. Agora ela me põe à prova. É um desafio. Pede-me algo inusitado para ver se desta vez eu perco o rebolado. Estava a pouco de desistir, mas vou tentar. Nem que seja para ela escrever que não foi bem isso que esperava.

Está lá na porta agora, enquanto eu olho o papel branco, começando a me desesperar, sem ideia do que escrever. Passa a mão pelos bolsos, pelo lado de fora deles, só apalpa. Eu sei o que é. Demorou para ela resolver fumar. Normalmente chega à porta já com o isqueiro e o maço à mão e acende o fogo enquanto ainda procura o cigarro. Pressa de viciada que, parece, se fosse possível, acenderia o maço ainda fechado e já o poria na boca.

Ela corre na mesa, enfia a mão na bolsa e já volta para a porta com o isqueiro e o maço. É tão rápida que, contrariando todas as teorias sobre bolsas de mulher (de terem tudo e nunca as donas acharem nada nelas), pode-se apostar que a bolsa está cheia só de maços de cigarros e isqueiros já arrumados para essas emergências.

De volta à porta, seus movimentos de repente ficaram lentos. Cruzou os braços quase virada para fora, fazia frio mas não era essa a cruzada de braços do frio. Era aquela da criança contrariada quando prepara a birra. Nessa cruzada, os braços apoiaram por baixo e apertaram dos lados, juntando, os peitos não muito grandes, guardados sob a camiseta branca e aquecidos pelo casaco fino de lã bege, desabotoado. A camiseta branca básica foi uma das maiores invenções da moda. Mulher com camiseta branca só não fica mais bonita do que com roupa de frio. Dá para imaginar então como ela estava bonita com a camiseta branca aparecendo pela abertura do casaco de lã que chegava aos joelhos. Jeans, todo mundo usava os mesmos jeans. De uma marca que hoje é cara, importada, mas que antes era fabricada em Osasco e podia ser comprada barata em qualquer loja do calçadão ou mesmo na feira. E botas de um couro caramelo escuro que chegavam à metade da perna. Botas não eram coisa comum. Só eram usadas, e por pouquíssimas mulheres, no frio. Causavam estranheza. “Coisa de caipira e de quartel”, diziam as despeitadas. Cabelos loiros, bem claros, quase brancos, lisos, compridos, corte clássico. Tinham aquele jeito de bagunça do fim do dia. Bagunça pouca, alguns fios por cima dos outros, uma mecha de atravessado, cruzando o cucoruto. Não suporto as garotas que passam o dia todo com a escova na mão a pentear. Maquiagem pouca, acho que só batom e esmalte, vermelho – escuros ambos, talvez cor-de-vinho. Homem não entende direito dessas coisas de cor. Dizem que sonhamos, nós homens, em preto-e-branco e elas em cores. Imagino que não faça diferença então qual o nome desse vermelho. No meu sonho ele é só um cinza escuro. No dela sim, se é que professoras sonham com seus alunos, a classe é um mar de camisetas e agasalhos coloridos de alunos, feito um punhado de balas sortidas derramadas à mesa.

Por um tempo chegou a quase fazer pose à porta. A mão esquerda sob o sovaco contrário, corpo reto voltado diretamente para fora, de costas para mim, olhou para a direita e para a esquerda, parecia procurar já correndo longe uma criança lhe lhe tivesse tocado a campainha por zoeira. Olhou então para a frente, como se percebesse que uma criança que toca campainha e foge também pode fugir para a frente, para o outro lado da rua, embora o outro lado da rua fosse, na verdade, a classe do outro lado do andar e entre as duas classes houvesse o vão livre sob o jardim do térreo. É claro que uma criança não fugiria levitando pelo vão. Mas também é lógico que crianças tocam campainhas de casas de vizinhos chatos e não de salas de aula.

Logo deve ter percebido que não havia criança nenhuma, ou que a posição ali não era tão confortável. Escorou-se no batente. A mão esquerda ainda sob o sovaco do bravo que segurava o cigarro. Olhava novamente longe. Ou talvez nem olhasse. Apenas teria os olhos virados para longe. Para depois da parede, da esquina do andar, da serra, quilômetros longe.

Lembrou-se do cigarro, de levá-lo à boca. Levou-o rápido, mas sem tropeço. Ainda assim, por pressa, esticou os lábios para alcançá-lo mais rápido. Não fez força para puxar o ar. Talvez nem tenha puxado mesmo. Acho que é esse o vício do fumante, não importa tragar ou não, a fumaça, nem o cheiro. O que ela queria, ao lembrar-se dele, era senti-lo tocar seus lábios, pousar ali e ficar.

O olhar aos poucos foi perdendo a firmeza com que se dirigia ao longe. As idéias deviam pesar e cansar o pescoço. Ele foi relaxando e já  a cabeça desceu alguns graus. O bastante para, em vez do horizonte, ela agora olhar em direção a um chão distante. E pouco depois a outro chão já não tão distante.

O cigarro ia e vinha. Dá altura da coxa para a boca. La embaixo, ficava quieto, a um palmo do corpo, para não lhe queimar. Em cima, era cada vez mais lento e cuidadoso o carinho dos labios dela com ele. Não tragava fundo. Pegava-o com a ponta dos labios, cada vez mais devagar, e deixava que a mão o levasse embora de novo.

Quando percebeu que os olhos não viam mais o longe, nem o chão, nem nada, tomou ar bem fundo. Fez com os olhos foco em algo do jardim, depois nos pés, cabeça baixa. Jogou a bituca no cinzeiro ao lado da porta e se apressou para a mesa, para pegar o relógio na bolsa e anunciar que a aula estava para acabar.

Corri escrever umas linhas a mais. Não deu tempo de passá-la para frente de mão em mão como acontecia no final da aula sempre. Tive de levar até sua mesa, à pilha que esperava pelos atrasados. Tive o cuidado de sincronizar o movimento de colocá-la com o de outro aluno para que a dele cobrisse a minha e professora não visse meu nome nela. Aquela sala grande, mais de duzentos alunos, era meu anonimato.

Essa redação, ela me devolveu sem correções, com o desenho de uma bonequinha que sorria, de sua boca um balão, desses de história em quadrinhos: “Posso ficar com esta?”. Devolvi-lhe ao fim da aula, com outro recado curto: “Claro, fiz pra ti.”

Ela não me viu pegá-la nem devolvê-la. Eram muitos alunos para ela fazer isso pessoalmente. Passávamos tudo de aluno para aluno, para retirar, e púnhamos sobre sua mesa para entregar. Nunca tive curiosidade de ver o que ela escrevia nas redações dos outros. Quebrar o encanto de saber se ela deixava recados amais alguém. Achava fascinante ela não saber qual de nós, éramos muitos para ela conhecer pelo nome, era, de certa forma, seu correspondente.

Logo após as férias, fiquei muito doente. Culpa da correria irresponsável de quem tenta abraçar o mundo sem tempo a perder, do inverno mais rigoroso que já peguei nesta cidade e de alguém que me passou uma pneumonia. Afastei-me do cursinho por mais de um mês, voltei num sábado, para uma aula de redação de despedida. Essa aula não valeu, foi com a professora da outra classe, elas revezavam os sábados. Não escrevi nada e acabei deixando o curso de uma forma que, se me pareceu mau educada na época, covarde parece-me hoje.

Tive uma pneumonia, resultado da correria e de tanto tomar chuva no inverno de 93. Assustado com o diagnóstico, e também acomodado, hoje confesso, pensei em largar a faculdade em que tinha entrado havia poucas semanas, no vestibular de julho. À época, cursava ao mesmo tempo, a faculdade pela manhã, o quarto ano do colégio à tarde e o cursinho à noite. Dormia menos de quatro horas por dia, durante a semana. Desempregado, por conta do alistamento militar iminente, achava que tomar todo o meu tempo estudando não fosse mais que obrigação. Aquele inverno, o mais gelado apesar de um dos últimos chuvosos de que me lembro em São Paulo,  ao colaborou. O médico me assustou e o cansaço venceu. Mas não tive coragem de me despedir dos amigos que fiz naqueles primeiros dias de faculdade e mudei de ideia. Foi o cursinho que deixei. Dei dois ou três abraços e sumi.

As outras redações, quando mudei-me para São Paulo, fechei-as em um desses envelopes grandes de papel pardo, bem colado para que ninguém as lesse por curiosidade. Deixei-o numa das duas caixas de papelão com outras coisas que disse para a mãe guardar até que eu me mudasse para um apartamento maior. Quando procurei-as, dois ou três anos depois, já tinham sido jogadas no lixo: “Só tinha papel, caderno, livro…”, disse a mãe. Dizem que não se pode ter raiva de mãe.

Da professora de redação, que fumava na porta da sala com os olhos perdidos na mesmice do teto e para quem eu escrevia duas vezes por semana, não sei mais o nome. Só me lembro de que era algo que não combinava com ela. Na memória, guardei-a por como a vi e pelo qu fazia. Como nome, deixei um XXX, parece carta anônima. Fica bem assim. Combina com um film noir, em preto e branco, com a protagonista fumando, pensativa, a olhar o céu.

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