Pêlo de Gato

“Pêlo de gato!”

Eu estava distraído com a cabeça deitada sobre meu braço, tentando fugir do tédio da aula repetida de química (o professor repetia as aulas até achar que os alunos haviam aprendido a lição). O professor disse disse alto a frase, passando a mão por boa parte do comprimento do cabelo da galega, para chamar a atenção geral da classe para ela que, provavelmente, estava de novo dormindo ou distraída desenhando. Filho da mãe!

Nessa época, eu costumava me sentar atrás dela e, embora passasse a aula inteira olhando a garota, sempre me contive de tocar-lá, fazer carinho ou coisa que pudesse ser tomada como ousadia ridícula. Parece estranho, mas ser um garoto feio era assim. A gente se acostumava a saber que não devia tomar liberdade com as garotas bonitas. E a galega era uma. Portuguesa, baixinha, loira (e ser loira na periferia chamava muito a atenção), branquela, quadril largo. Não se levava a sério mulher que não tivesse o quadril largo. Foi a primeira garota que eu conheci que malhava em academia. Não para ter o corpo bombado como é moda agora. O seu corpo era bonito mas normal. Sem secura, sem aqueles músculos artificialmente grandes e rígidos. Tinha suas poucas gordurinhas no lugar certo. Principalmente nas bochechas.

Sentava-se à minha frente e eu passava boa parte da aula tentando olhar-lhe o pescoço e os ombros por baixo de tanto cabelo. O cabelo grande e volumoso chegava ao meio da bunda. Nos dias mais ousados, quando ela se debruçava na mesa e a camiseta subia, espiava espiava sua cintura entre a barra da camiseta e o começo da saia. Mas para isso, eu tinha de esticar muito os olhos e me debruçar um pouco. Era arriscado, ficava numa posição meio ridícula que denunciava aos outros a minha curiosidade. Ela me flagrou umas duas vezes e reagiu rindo encabulada como se fosse ela a fazer alguma besteira.

A provocação dele tinha motivo (outro além de se engraçar com a aluna bonita). Elastava realmente dormindo, cabeça baixa, olhos nos rabiscos da mesa. Acordou quando percebeu que riam todos do inesperado do professor abusado. Encabulada, sentou-se de lado espalhando a cara de sono e virou-se para mim com o sorriso de quem sabe que está com a cara amassada e tenta ver graça em si mesma para dissimular a vergonha. Esse sorriso pareceu-me alegre. Normalmente seu sorriso parecia triste, melancólico, desanimado, eu nunca entendi porquê. Era como se, enquanto o abria, percebesse que os outros não entendiam seu motivo para sorrir e se envergonhasse dele. Era comum seus sorrisos durarem muito pouco e logo terminarem numa expressão vazia, lábios abertos, olhos enxergando bem longe, fora da sala. Então ela esquecia do assunto da conversa e, às vezes, parecia se esquecer até de onde estava, como sonâmbulo que acorda fora da cama.

“Preciso cortar meu cabelo. E muito comprido.” Enrolando-o e esticando como se fosse um rabo de cavalo. E depois, batendo as mãos nas pernas e bufando com expressão de saco cheio: “Chama a atenção.” Chamava mesmo, acho que não por ser comprido, mas pelo volume. Denso e muito cacheado. 

Eu não soube o que dizer. Nunca soube o que dizer. Até hoje nunca sei. Se digo que não precisa cortar, estou errado porque discordo dela. Se digo que precisa, estou errado porque ela vai assumir que não gosto de seu cabelo. Não falei nada e, depois, me pareceu ser o mais errado. Podia ter-lhe dito que se o cortasse, eu conseguiria ver seus ombros, talvez também visse melhor suas bochechas. Será que ela estava de brincos? Podia pedir para vê-los. Ela fez cara de brava por eu me abster de descobrir a resposta que ela queria. Aproveitou a caneta que tinha na mão e escreveu no canto de meu caderno, meio de lado, a primeira sílaba de seu nome. Enfeitou com um coração sobre a segunda letra, que ficou parecida com uma vela acessa.

Seu braço deitado na minha mesa para escrever. Se, ao invés do cabelo, ela tivesse falado do braço, eu talvez soubesse o que dizer. Que não mexesse nele, que parecia quente e macio, e que, quando ela se virava assim, me dava vontade de usá-lo de travesseiro para sentar a cabeça e pensar direito em algo para dizer sobre seus cabelos.

Sorriu de novo, feliz por eu não brigar por sua arte. Minha reação foi só olhá-la e ela escondeu, de novo, o sorriso. Percebeu que eu estava triste por algo que me disse antes da aula e ficou também.

“Se você quer cortar o cabelo, corta.” Isso foi o máximo de interação verbal que eu consegui. Podia ter elogiado, mas não, só concordei com que mexesse no que lhe incomodava, como se me incomodasse também.

“Meu pai não deixa. Na minha igreja, mulher não pode cortar o cabelo.” Ela tinha se convertido pouco antes de trocar de escola e nos conhecermos. Imposição da pai que achou conveniente culpar sua antiga religião por seus próprios defeitos. A irmã pouco mais velha que ela não se converteu e o pai a convidou a se casar logo para não morar mais com eles. A galega criou medo de contrariá-lo também.

Além do cabelão que nunca cortava, usava sempre a mesma saia (ou será que tinha varias iguais?) de jeans azul, igual às outras garotas de sua igreja. Nós as dintingüiamos assim. Mas diferente das outras, que ficaram bravas, quando a escola adotou calças (do mesmo jeans) no uniforme obrigatório de todos os alunos, meninas ou meninas, ela ficou feliz como criança que ganha brinquedo.

“Você gosta desse…?” Fingi não me lembrar do nome. Ela completou a frase, talvez para me lembrar, talvez para me mostrar que era infantil fingir. “Meu pai disse que não posso namorar ninguém de fora da igreja. Ela é pequena, não dá pra escolher muito. Melhor ficar logo mesmo com ele que ao menos ele é bonito.”

Quarto Dela

In your eyes, the light the heat, I am complete.
I see the doorway to a thousand churches.
I want to touch the light, the heat, I see in your eyes
   — Peter Gabriel, In Your Eyes

Era diferente o quarto dela. Grande, uns cinquenta metros quadrados, até porque era o único cômodo da casa, um quarto e cozinha nos fundos do terreno, banheiro do lado de fora. Paredes azuis de um tom que a gente costuma encontrar em jeans antigos, não em paredes. O teto então, aquele azul marinho que se confunde com preto. Estrelinhas, dessas de adesivos de criança, formavam desenhos que lhe pareciam os das constelações que aparem nos livros de quinta ou sexta série. A porta e a grande janela, que ainda estavam abertas, pareciam grafite escuro de lápis de escola. Fora da janela, havia um roseiral bem fechado, rosas brancas e amarelas que, se você não prestasse atenção, não veria o muro onde acaba. O vento forte do anoitecer trazia um pouco de seu perfume. Móveis eram só o guarda-roupas embutido, quatro portas que se abrem duas a duas, a mesa com banqueta em frente à janela, com o notebook fechado em cima, e a cama muito baixa, quase encostada no chão. Tudo isso, mais o chão e os rodapés, em madeira lisa pintada de preto. Os lençóis e as fronhas eram comuns, brancos. Apareciam pelas beiradas do edredom que tinha estampa imitando colcha de retalhos, todos os quadradinhos com cores escuras também. Iluminação era só a de um abajur no canto. Também de madeira e copa pretas.

Ela fechou a porta (besteira, estavam sozinhos) colocou uma música no celular, parecia fusion ou funk, algo assim instrumental dos anos setenta, e o deixou na mesinha. Acendeu o abajur e fechou janela, só a veneziana. O vento forte e quase gelado continuou entrando, agora com barulho, ainda perfumado.

Ele se abaixou para pousar a mochila no canto, encostada na parede e, enquanto se levantava, percebeu a mistura do cheiro de suor das roupas dela com o do perfume do braço que ela esticou para lhe tocar os ombros e chegar-se mais perto. É um cheiro delicioso de proximidade que o excita como se fosse a própria sensação de lhe encostar o corpo, pele a pele. É engraçado como os poetas desprezam essas sensações íntimas e aparentemente inusitadas. Mas poetas entendem de palavras, não de ações, e suspeito não escreverem sobre isso porque nunca experimentaram. Igual aos moletons velhos que todo mundo usa de pijama no frio. O cinema e a literatura consagraram a sede e as rendas, mas é muito mais romântica a intimidade do abraço de pijama.

Esse cheiro de proximidade o obrigou a procurar tocá-la imediatamente. E foi com a parte do corpo que estava mais próxima. Encostou-lhe o rosto ao braço como se fosse um travesseiro para então abraçá-la pela cintura e apertar-lhe a barriga de encontro ao outro lado de seu rosto. O abraço foi um alívio da ansiedade que guardava de ficarem juntos. Quis ver seu rosto e, apoiando-se em sua cintura com as duas mãos, se levantou e então percebeu que era alguns centímetros mais alto que ela.

Só conseguiu ver o rosto diretamente por uns segundos. Ela, que pensava ser feia, muito envergonhada, abaixou um pouco a cabeça e o escondeu de encontro a seu peito, apertando um abraço. Ele, que sabia que o mais bonito naquele quarto, e noutros lugares onde estiveram antes noutras cerimônias que não esta do sexo, ficou incomodado e com medo de ficarem tristes, já estavam. Sem afrouxar o abraço, pôs-lhe a mão no ombro, por dentro do colarinho da camisa que estava torto já. Afagou-lhe com firmeza o pescoço, um afago quente que a excitou e fez suspirar, sentindo-se desejada e fantasiando sobre o que fariam já sem roupas daí a alguns minutos. No mesmo movimento do afago, que não aceitava ser contrariado, ele guiou seu rosto para cima, obrigando-a a olhá-lo diretamente. Ela tinha um receio que ele não conseguia admitir. Continuou com a mão até proteger-lhe todo um lado do rosto e, sem planejar, acariciou com a ponta de um dos dedos uma pequena marca que encontrou. Algo nela mudou, um alívio nos músculos do rosto, um brilho nos olhos, algo que ele entendeu como tê-la agradado e ela ficar à vontade. Também sem planejar, ele sorriu, sentindo-se aceito e retribuído e ela, em resposta, sorriu também, com a cara que os ditos bobos fazem ao chorar de alegria, sentindo a mesma coisa.

Levaram mais de uma hora entre beijos. Ele a beijou com vontade como há muito não beijava alguém. Ela o beijou sem pressa de acabar, como há muito também. Essa uma hora de beijos foi também o tempo que levaram para tirar a camisa um ao outro. E as tiraram quase sem querer, pois o plano das mãos não era despir, mas sim tocar e, a cada beijo, elas entravam mais por dentro das camisas, procurando ombros, braços, costas, o veio entre os peitos, a barriga. Nos acostumamos a pensar, preconceituoso que somos, que esse passar mãos cada vez mais atrevido seja o ritual da busca lasciva das zonas erógenas. No entanto, é só a gostosa perda da timidez e do receio bobo de infringirem os limites do abraço. A cada pequeno movimento das mãos, desabotoar um botão ou soltar o pano um pouco mais para o lado era conseqüência e não parte do plano para os finalmentes.

Quando as camisas caíram na cama, onde já haviam se sentado e estavam já debruçados, lado a lado, grudados, cada um com o corpo apoiado num cotovelo que lhe sustentava para não dizerem que estavam deitados, acharam por bem cada um tirar os próprios sapatos, meias e calças. Fizeram isso rápido e meio sem jeito, mas ela, que acabou primeiro, deu um sorriso sapeca, girou rápido para ficar de bruços e conseguir alcançar o interruptor do abajur para apagá-lo.

Ele teve medo de se atrapalhar no escuro. Não enxergava nada. Não enxergava onde jogar as calças, mas, sentindo suas mãos em seus ombros, sua cabeça seu rosto em seu pescoço e seus peitos, ainda com o sutiã branco de algodão sem renda, em suas costas, apenas largou-as e virou-se para se orientar tateando no corpo dela. Foi surpreendentemente fácil achar-lhe a cintura, com uma mão de cada lado e o rosto, com a boca, guiado por seu calor.

Beijou-lhe toda a frente e os lados do corpo devagar, como se lhe beijasse a boca, tirando do caminho a roupa de baixo, conforme a boca a encontrava. Quando se viu com a calcinha dela amassada na mão, feito uma bolinha de papel, deitou-se de bruços com a cabeça entre suas pernas abraçando-a. Ela, num primeiro momento, sentiu-se nervosa, constrangida até, mas logo, os beijos sinceros dele, escondidos entre suas pernas, a relaxaram. Apertou os olhos fechados, mordeu o lábio e, com uma mão, segurou-o de encontro a si para que soubesse que podia continuar o quanto quisesse. Com a outra, sem perceber, fazia cafuné. Ele não queria parar.

Uns vinte minutos passaram até lhe cansarem as pálpebras que forçava bem fechadas. Sentia-se toda babada dele que lhe apertava mais forte o quadril e chafurdava com gosto a cada vez que a percebia contrair com força um músculo diferente.

Ela então parou o cafuné para segurar-lhe a cabeça com as duas mão sobrepostas na sua nuca e jogou-se para trás usando o peso do corpo bonito para puxá-lo mais para si. Só aí abriu um pouco os olhos, tinha o rosto voltado para cima, para o teto e o escuro do próprio quarto a surpreendeu. A príncipio não viu nada. Conforme se acostumou, conseguiu focalizar algumas estrelinhas fluorescentes do teto e foi como se elas fossem de verdade e estivessem sozinhos ao relento sob elas. Até sentiu diferente o ar gelado que entrou pelas frestas da janela. Não quis mais olhar para baixo com medo da realidade do mundo, mas voltou a fazer cafuné, agora com as duas mãos, e abriu um sorriso feliz, de lábio mordido, porque daí a pouco gostará de deitarem-se a descansar olhando juntos as estrelas.

sol

Juro que parei de tentar entender a lógica do mundo, o como e essa história de se há um porquê das coisas acontecerem ou um plano divino para tudo. Não sei quantos mundos existem por aí, nem quero saber, mas ao menos este em que vivemos é caótico, definitivamente.

Imagine este sujeito. Ele passou as últimas duas, ou mesmo três, semanas pensando em quanta asneira faz, e aliás em como só faz asneira. Não conseguiu prender a atenção a nada que precisasse, distraído com problemas que nem devia ter.

Frustrado, resolve ir para casa mais cedo na sexta-feira. Antes de chegar à calçada, desiste desalentado, acha melhor tentar se distrair com o trabalho. Não consegue, claro que não. Quando percebe isso, passa raiva com o trânsito e o metrô lotação no caminho de volta. Parece-lhe ser a única pessoa da rua a voltar para casa quando todos os outros emendam ou saem para a noite. Tenta aproveitar a sexta-feira parando para beber algo, mas desiste e só compra uma garrafa de vinho para beber em casa em, sozinho à noite. Se calhar escreve algo para se distrair.

Desanimado, arrependido e frustrado, chega em casa, toma banho e se deita antes mesmo de escurecer. Maldito horário de verão! A idéia não era dormir, mas foi o melhor que lhe podia acontecer. Acorda perto da meia-noite, sem nada para fazer, procura um filme na televisão, no qual não presta atenção nenhuma, e bebe o vinho devagar amaldiçoando a vida quase tanto quanto a si. Depois da garrafa toda, do filme e de mais alguma besteira dessas que passam de madrugada, volta para a cama a revirar-se abraçado ao travesseiro até conseguir pegar no sono, já amanhecendo. Isso parece se repetir até acabar o fim-de-semana.

Chega no trabalho na segunda-feira e, primeira coisa, vai tomar um café (segunda e terceira também). Distrai-se com o telefone, alguma besteira sem importância, nem se lembra. Parecem-lhe poucos segundos isso. Mas é engraçado, e você já deve ter reparado nisso, como em poucos segundos de distração, minutos podem se passar e perdermos coisas importantes. Quem já deixou o leite ferver e derramar sabe disso.

Mesmo que tenham sido só segundos, foram o bastante para alguém, por trás, lhe cobrir os olhos com as mãos. Essa é uma brincadeira que se costuma fazer com criança, fingindo ser difícil para ela descobrir quem chegou. Mas os colegas falavam alto sobre futebol no café e ele não conseguiu ouvir a voz que provavelmente lhe disse o consagrado “Adivinha quem é.” Não ouvindo, não pode reconhece-la.

Gesto involuntário, que acho que ele faria mesmo se tivesse ouvido, pôs suas mãos sobre as que lhe cobriam os olhos e, ao tocá-las, soube de quem queria que fossem. Teve medo de falar e de se entregar. Falou alguma asneira, sempre fala uma, afinal de contas tudo começou com ele pensando em quanta asneira faz, não seria agora a se redimir. Ela riu de papel de bobo enquanto afrouxava as mãos para ele se virar e ver.

Antes de se virar, ele identificou ao mesmo tempo o perfume e a risada e, com essa pistas, a textura das mãos que não quis deixá-la tirar, mas deixou. Seu coração de pronto se alegrou da surpresa da brincadeira e da coincidência de ser mesmo quem ele imaginou.

Virou-se para a abraçar e viu o sorriso lindo que iluminou sua semana como o sol aparecendo do meio das nuvens.

 

Zaz :: Si jamais j’oublie

Rappelle-moi mes rêves les plus fous.
Rappelle-moi ces larmes sur mes joues.
Et si j’ai oublié combien j’aimais chanter

Si jamais j’oublie les nuits que j’ai passées, les guitares et les cris,
rappelle-moi qui je suis, pourquoi je suis en vie.

Diário Insone

Sentenced to drift far away now,
Nothing is quite what it seems,
Sometimes entangled in your own dreams.
Entangled by Genesis, 1976

 

Eu acho que não vem ao caso falarmos aqui sobre a qual natureza dos problemas que me levaram a isso. Coisas que aconteceram nos dias e no dia anteriores. Isso seria só uma introdução chata e enfadonha que não nos levaria a nada além daquela chuva molhada da conversa de bêbado triste para o colega de copo que lhe calhou de dar plantão. Podem ser problemas de trabalho para quem não tem o problema de não ter trabalho. De amor para quem tem a sorte ou o azar de ter a quem querer. De família, que quase todos os têm porque quase todos têm uma. De consciência. E já esses suspeito que muitos não tenham por falta de uma que lhes doa.

Acho que posso começar a contar a partir de umas cinco da manhã, talvez um pouco antes. Foi mais ou menos a essa hora que começatam a bater o desespero e a revolta por não ter conseguido dormir quase nada. Aquela sensação horrível de impotência, de não conseguir fechar os olhos e se alienar do mundo todo, morrer por algumas horas. O virar de um lado para o outro da cama incomodado pela sensação gelada do próprio suor nos lençóis e no travesseiro.

Foi por esse incômodo que preferi me sentar no sofá e ligar a televisão num programa que me distraísse e cansasse. Um telejornal europeu. Previsão do tempo e condições de estradas e aeroportos para os portugueses que tomam café da manhã e partem para trabalho. Notícias dos pequenos incidentes da noite: dois carros que bateram numa cidade do interior, uma imagem sacra danificada pela água da chuva que escorreu do telhado estragado a igreja, a festa da padroeira de uma paróquia que parece ser famosa. A agenda dos governos para o dia.

Uma piscada de olho e fiz a besteira de olhar em direção à janela. A noite que vinha de fora não era mais a mesma. Diluia-se. Já dava para notar um pouco da cor vermelha da parede texturizada, o verde da samambaia do canto, o amarelo da lombada de um livro. Só o azul de minha mochila ainda era cinza bem escuro. São assim essas duas cores, as últimas a amanhecer.

Olho o relógio. O sol ainda não saiu porque não obedece o horário de verão. Os padeiros obedecem. Alguma padaria já está aberta. Se não consigo dormir, posso engordar ao sabor de pão fresco e manteiga. Manteiga de verdade. Não aquele óleo de fritura batido que se chama margarina, mas alguns teimam de chamar de manteiga. É tão bizarro que há até uma marca de “margarina sabor manteiga”.

Bermuda velha desbotada de surfista que comprei de improviso nas férias de julho e a tradicional camisa de meu time. Me troco e desço pra garagem com a costumeira roupa que uso na padaria. A bermuda tem dois bolsos grandes com velcro, o da direita uso para o telefone, um caderno pequeno (tenho mania de rabiscar) e um lápis, o da esquerda para a carteira. Negligencio o banho e escovar os dentes, provavelmente por falta de ter acordado. Descobrir-se, pisar no chão frio, ir ao banheiro mijar, tomar banho e escovar os dentes não são um ritual pensado, mas atos involuntários necessários à transição sono-sonambulismo-despertar.

Esperando abrir o portão da garagem, penso no gosto de trapo velho e terra do café da padaria. Cafés bons mesmo eu conheço três: o da Praça da República, o da Praça Carlos Gomes e, o melhor do mundo, o da Praça da Independência. A Praça da República não é lugar onde se vá de carro e a Carlos Gomes fica a mais de uma hora de casa. A esta hora da manhã, descer a serra até a Praça da Independência de frente para o sol que nasce, minha vida para a trás, as ilhas e o mar à frente, parece até romântico.

O problema do caminho para o litoral é que tenho de atravessar toda a cidade. Ônibus no caminho da garagem para os terminais, gente que acordou cedo (e ainda assim atrasada) dirigindo como desesperada, jovens com cara de adolescentes à procura da estação de metrô que vai abrir. A estrada em si, do outro lado, é uma paisagem desnaturada, mesmo assim bonita. Sobram laranja, dourado e beges sob o céu azul marinho, quase roxo. Jogo de cores resultado de algum reflexo que eu não sei explicar.

O nascer do sol romântico que imaginei me parece mesmo feio, no mínimo sem graça. Uma combinação de cores escolhidas aleatoriamente sem nexo, sem combinação. Moda de décadas trás que casais piegas teimam em nos dizer ser bonita. Estão com os olhos fechados, dormindo abraçados, esses casais. E não vêem o nascer do sol como ele realmente é. Por isso o dizem bonito e romântico. Mas eu vejo que não é mais que uma cortina azul desbotando, a deixar à vista o bege feio, carnação, do pano cru por baixo. À espera de que alguém a abra para deixar o sol entrar. A paixão correspondida nos torna tão superficiais! Não é possível ver a realidade como ela é sem ter a amargura bem fresca e desperta no coração. A frustração. É a frustração de não ter algo que nos faz procurar em cada canto e, ao procurar uma coisa, encontrar outra, outras, vários detalhes delas. Não haveria boa poesia sem os frustrados. Disso tenho absoluta certeza. Só teríamos aqueles versinhos bestas de crianças do primário, descrições dos pais, das férias, das festas de aniversário. Não saberia realmente dizer o que são o amor, a beleza, a vitória, quem os tiver a centímetros do nariz sem ter procurado com dificuldade, se enganado várias vezes e decepcionado quando não podia.

Alguma coisa na rodovia, talvez uma árvore envergada fazendo sombra, me lembra de um episódio de anos atrás. Descendo para a praia à noite, por essa rodovia, enchi-me de alegria e lhe disse algo como: “Estou tão feliz! Gosto tanto de você!”e em troca ouvi um sermão sobre “como não são de confiança, pessoas que demonstram felicidade por tão pouco”. Acostumado a me arrepender de esconder o que sinto, naquela noite, me arrependi de me expressar. Precisa passar por isso quem quer entender o valor de um “Eu também.” ou de um simples sorriso encabulado. A lembrança me distraiu um pouco da paisagem. Ensimesmou-me. Por um tempo não prestei mais atenção em nada que não estivesse dentro do carro. No banco de passageiro, no rock que tocava no rádio.

Quando acordo da distração, já estava na bifurcação (trifurcação) do final da serra. À minha frente, já com luz de dia cedo, três caminhos. O meu, era o mais óbvio, do meio, aquela ilha, toda urbanizada. Depois dela, o mar. Depois dele, algo a que chamamos horizonte, mas que nada mais é do que quaisquer coisas que fiquem longe demais para vermos.

Eu cheguei já com dia claro. Mas naquela hora gostosa quando o sol ilumina e longe, baixo, e os prédios todos fazem sombra. O ar ainda está fresco e úmido dos ventos da noite. Ainda assim, cheguei cedo o suficiente para estacionar em uma travessa perto do comércio sem precisar fazer baliza nem pagar zona azul.

Tiro os tênis dentro do carro. Não nasci para várias coisas, uma delas é usar sapatos. Em casa, mesmo no quintal, vivo descalço. É curioso meus pés não serem calejados. Suas solas, macias mesmo, parecem de quem passa o dia com meias grossas ou usa aqueles cremes hidratantes de cheiro enjoativo.

O café e a banca de jornal em frente estão abrindo, estrategicamente no mesmo horário. A padaria, cinqüenta ou cem metros mais à frente, que, acho isso curioso, tem o nome de uma flor obscura, o mesmo nome incomum do meu bairro, está aberta já. Da calçada sinto o cheiro azedo de bromato e fermento do pão mal feito me convidando a entrar. Pão fresco, mesmo ruim, é sempre uma maravilha. Sabe a satisfação.

Pão puro. Não peço manteiga porque já caí no golpe da margarina aqui. Como devagar, tentando prestar atenção nos quadrinhos, nas manchetes e nas colunas de opinião do jornal local. Segundo pãozinho. O balconista pergunta várias vezes se não quero mesmo manteiga ou algo para beber.

Largo o jornal no balcão. O café da praça cheira a ser um bom motivo para acordar. A xícara quante, a simpatia do balconista e o cheiro do café recém passado, que valeu oitenta quilometros de estrada, são a primeira boa coisa do dia e, por alguns segundos, me distraem de mim mesmo. A segunda xícara resulta do apego, de não querer ir embora, muito mais do que do ritual matinal de beber algo para acordar. Ela chega com mais um sorriso e duas palavras simpáticas do balconista.

Parece-me besta já voltar para casa. Tanta gente passando, indo ou vindo, nas suas caminhadas na praia, dos banhos gelados do mar. Eu gosto muito de andar. Vou para o calçadão da praia. O caminho de cimento cortado entre os canteiros é bem movimentado. Uns trinta minutos a pé e chego ao parque.

Esse parque é um grande jardim muito arborizado. Parece resto de mata. Árvores bem fechadas, samambaias e outras plantes cortadas pelos passeios. Há alguns brinquedos de crianças à direita da entrada, animais soltos, cotias, sagüis, um jabuti de mais de meio metro de altura, viveiros de plantas, especialmente o de orquídeas, e de pássaros. Falam de um bicho preguiça, mas nunca o encontrei. Andar devagar pelo passeio, uma parada a cada dois passos, para olhar, ao redor e acima, as sombras e movimentos dos bichos nas plantas e nos galhos das árvores é uma das poucas coisas que sempre conseguem me distrair. Posso ficar o dia todo aqui, sem perceber. A melhor parte é o viveiro grande perto da saída, com portas duplas acortinadas, e uma passarela para entrarmos e andarmos no meio dos pássaros. As plantas dele são mais galhadas. Você pode se debruçar na beira da passarela e procurar os pássaros entre os galhos, vê-los andar, voar, comer, te olhar com suspeita. Só falta. Uns dois ou três troncos caídos que sirvam de banco e café igual ao da praça. Todas as vezes que venho aqui são iguais, não há o que contar. Somando devagar pela passarela até a saída, a maior parte do tempo debruçado no beiral, procurando quantos pássaros diferentes encontro e se os consigo identificar pelas placas informativas espalhadas. De vez em quando, um pássaro voa atravessando o caminho de quem vai pela passarela. Isso me dá aflição. Imaginar que possa tocar, sem querer, um desses bichinhos, seus dedinhos, asinhas e ossinhos frágeis. Me encolho de medo de pensar que posso acabar machucando um. Essas coisinhas pequenas de que gosto, tenho sempre muito medo de machucá-las, por isso acabo me encolhendo distante sem coragem de tocar ou mesmo de que cheguem perto. Por isso mesmo, os bichinhos devem ter medo de que eu seja algum predador à espreita. Olhando atento, a distância estratégica, quase imóvel. Represento-lhes o gato, a cobra, o mal dissimulado prestes a dar bote. Quando saio do viveiro e procuro o portão para a rua, imagino o alívio que têm e a festa que fazem, como alunos quando o professor saí da classe.

Na calçada, sem a sombra das árvores, o sol da manhã me lembra da preguiça típica dos fins-de-semana emendados. Aqueles em que o melhor que pode acontecer é acordar tarde num quarto de hotel na praia ou no interior e descer correndo para ainda conseguir tomar o café-da-manhã de chinelos, calção e a mesma camiseta usada pra dormir, depois voltar ao quarto e deitar preguiçoso na cama para namorar mais um pouco, tomar banho e pensar em como gastar o resto do dia. Essa preguiça me leva do parque dos viveiros só até o parque do início da praia.

Quadras vazias, um prédio administrativo completamente deserto. Adolescentes bestas desprezam as colegas que lhes dão bola para arriscar os ossos na pista de skate em manobras tão tímidas que parecem inventadas por yiddish mames de condomínio. Dos vinte ou trinta skatistas, só dois brincam sem medo. Tomam velocidade, caem, se levantam passando a mão no novo esfolado. Depois tentam de novo. São os únicos dois que brincam sem parar. Tem os equipamentos já bem gastos, roupas rotas e puídas. São também os únicos que não parecem fazer parte de nenhum grupo de amigos.

Casaizinhos que já chegara formados perdem também tempo sentados no bobodromo, uma espécie de arquibancada para as pessoas namorarem fingindo olhar a praia e as ondas que quebram na chegada a ela.

Eu gosto mais de olhar o mar a partir do mirante logo em seguida. Ele já fica virado para fora da praia. Para o que seria mar aberto se não houvesse uma ilha logo em frente.

Essa ilha, acho que é a dos urubus. Toda praia tem uma com esse nome. Ilha dos Urubus. São na verdade pedras altas que saem do mar cobertas de plantas. Talvez todos os alunos de uma pequena escola tivesse de dar as mãos para a conseguir abraçar. Está ilha dos urubus tem até muitas árvores. Urubus são poucos, dois ou três que vejo voando perto. A está hora, ou já saíram para trabalhar, caçando pequenos bichos moribundos ou circundando pobres almas no mínimo igualmente moribundas.

Certos indios do Norte do Brasil inventaram a expressão “comer” para se referir ao homem ter sexo com uma mulher. Para eles, os homens são bichos e as mulheres espíritos. Por isso proíbem as mulheres de beber qualquer coisa que lhes possa causar alucinações. Medo de que cheguem ao mundo dos espíritos e, percebendo-se em casa, não queiram mais voltar. Os homens, para manterem-se humanos, creem, tem de casar e regularmente se alimentar do espírito feminino. Na dificuldade de tradução da língua indígena, que, agrafa, tem vocabulário muito reduzido, para o português, “alimentar-se da mulher” virou “comê-la”.

Os urubus, ao contrário, caçam as poucas coisas que encontram mais débeis e miseráveis que eles. Comem a podridão e sobrevivem, alimentando apenas sua infâmia.

Há uma placa, um aviso de proibição do acesso à ilha. Também de proibição de descer do mirante para as pedra que cercam sua base. Essas pedra, de formas e cores muito variadas, obviamente não são naturais dali. Foram colocadas para proteger o mirante das ondas que quebram altas e fortes e que os surfistas adoram. Parecem valentonas a garantir que nem as pedra, nem o mirante, nem eu, covardes que somos, tentemos quebrar as regras. “Passe daí, te acerto e você se arrepende.” Não há de ser com o mar que eu brigaria. Acho-o bonito, mas respeito demais. Não me aventuro. Meu negócio é a terra, caminhar, pisar, sentar.

Caminhar pela areia, onde ela está molhada, descalço. Senti-la se deformando em pegadas ao peso dos pés número quarenta e cinco para os quais tenho dificuldade de encontrar sapatos que caiam bem. As ondas resistentes, que sobem até mais dentro da praia, cobrem meus pés e tornozelos. Ajudam a diluir a areia e afundar meus pés. Refrescam a palma cansada e quente de tanto andar.

Parece coisa de velho. Já que está na praia, molhar os pezinhos no mar. Deve ser, embora eu tenha feito assim desde garoto.

Sento-me na areia, já à altura da praça onde estacionei e tomei café da manhã e só então levanto a cabeça e olho diretamente para o mar aberto, para a boca da baía e os navios que somem no horizonte.

Pego do bolso o caderno e o lápis. Não gosto de caneta. Tem algo de legal no lápis que eu não sei explicar. Algo na aspereza do grafite, na sua aparente e engenhosa rusticidade. Tento rabiscar o que vejo.

Não desenho bem. Mesmo na escola, nas aulas mais chatas de Educação Artística quando demonstrava ser um dos poucos alunos a entender os conceitos de perspectiva, ótica e proporção, meus desenhos eram esdrúxulos e infantis. Eu invejava outros alunos que, sem técnica alguma, conseguiam criar belos desenhos enquanto eu tirava dez por fazer, com sombras perfeitas, casinhas iguais às das crianças do pré-primário.

O moço da barraca de bebidas me reconhece e pergunta se não vou-me sentar em uma de suas cadeiras hoje. Eu não estava pensando nisso mas o sol queima já. Sento-me embaixo de um guarda-sol, sem cadeira. Ele me oferece uma caipirinha (pouca pinga, muito gelo, limão expremido, sem açúcar) ou suco de maracujá (com receita parecida). É cedo ainda. Sei que ele não tem, mas não evito dizer que ia bem um café, um copo bem grande, sem açúcar, mesmo que estivesse gelado como fazem nas praias do Sul.

Ele brinca se estou curando a ressaca na areia. Demorou, mas quando voltou com o suco que pedi, trouxe também um copo grande de plástico e uma garrafa térmica de café. “O pai foi buscar pra mim, disse pra te trazer uma também. Está sem açúcar que ele sabe que você não gosta.” Agradeci surpreso. Acho que segurar um copo de café sentindo seu cheiro misturado à maresia foi a segunda coisa boa que me aconteceu. Uma sensação de liberdade e conforto que me lembrou de outros momentos de alívio.

Logo corro a desenhar no canto do caderno algo de que tinha me esquecido ja na noite de ontem. Um rosto deitado de lado na mão, cotovelo sobre a mesa. Um sorriso encabulado, olhos procurando algo, eles sabem onde, e bochechas avermelhadas de quem de repente se sente vulnerável e infantil por esperar atenção no momento inusitado. Um brilho de olhos que os faz piscar involuntariamente e a mudança no ângulo do sorriso ao perceber que tinha a atenção e que ela vinha acompanhada de olhos que lhe procuraram e de sorriso diferente, mas igualmente encabulado e satisfeito pela reciprocidade. Satisfação de quem queria lhe dizer “Eu gosto muito de teu sorriso e o o seu olhar iluminou meu dia o suficiente por todos os outros em que não tive motivo para retribuir um sorriso.” De quem responderia a um amigo que, abelhudo e debochado, e, se amigos o podem ser, desrespeitoso, lhe perguntasse “E aí, vai comer?”… Lhe responderia apenas “Quero seguir encantado por esses olhos e por esse sorriso, hoje à noite, amanhã pela manhã e mergulhar neles para senti-los em meu rosto como se fossem meus.”

Sempre me senti mais confortável escrevendo. Talvez porque a escrita seja apenas a formalização de uma história contada, na qual não há nada físico para eu enfeiar. É por isso que, percebendo o disparate de meus garranchos, rabisco algumas frases. Frases bestas daquelas de figurinhas de drops de eucalipto e de revistinhas femininas como as que minha irmã colecionava na adolescência. Frases que eu ponho no papel sem pensar em valor ou qualidade. Só para tentar guardar o máximo do momento e o que sinto. Para depois, com calma, talvez escrever algo.

Rabisco as frases e finalmente estou leve, distraído. A ansiedade passa toda aos dedos que seguram e guiam o lápis. Ele, inquieto, aproveita minha sensação de leveza e cria asas. Sinto-o suspender-me. Tenho medo de soltá-lo e cair. Já olho para trás, está a praia. Para baixo, sinto o vento rápido e perco o medo, vejo o prateado da água do mar.

Mais de Duas da Manhã…

… e eu já não sei mais porque cismei de que tenho de postar algo hoje. Deve ter já uns dois anos que eu não termino algo de ponta a ponta para postar. Outros dois , dez, vinte anos, não farão diferença nenhuma.

Já mexi em quatro ou cinco coisas que estavam pela metade, já tentei começar algo do zero e já tenho ganas de processar a Apple pelo novo teclado do iPad, que engasga, bagunça tudo e apaga uma ou duas palavra de cada linha antes que eu perceba. Hora de comprar um notebook leve pra carregar por aí.

Cheguei em casa faz pouco mais de uma hora. Sem sono, são quase tres da manhã. Na televisão, já não há mais nada. Na mesinha de centro, que uso como pufe, há sim meu notebook, pesado demais para ser chamado de portátil, mas equipado com um teclado decente.

Na adega improvisada debaixo da pia, só tem pinga e licores. Falta vinho. Não posso me perdoar por deixar faltar vinho em casa. Se bem, que neste calor, vinho talvez não me caísse bem. A geladeira só tem água em garrafa de plástico. Eca! A água fica com aquele gosto horrível do plástico! No freezer, duas bandejas com bastante gelo. Na fruteira, laranjas que, de tão azedas, ninguém quis chupar. Deus é minha testemunha de que sou obrigado a fazer uma caipirinha.

Sentado na poltrona, copo ao lado do telefone, a televisão em algum filme ruim da madrugada a servir de abajur, o que me incomoda é o notebook quente no colo. Tenho preguiça de ligá-lo à tomada, mas parece ter uma hora e pouco de bateria ainda é isso tem de ser mais do que o suficiente para eu terminar algo antes de ter sono e cair.

O editor de textos do blog aberto. A luz da tela me incomoda um pouco. Olho o copo. Três cubos de gelo, uma rodela de laranja, bem pouca pinga. O gelo assim emerso vai demorar a derreter.  Ao tenho ideia do que escrever, a não ser aquelas usuais baboseiras da boca maldita que já me cansaram.

Fuço os rascunhos. Páginas e páginas de rascunhos que já deveriam estar viradas a muito tempo. Pouca coisa vale a pena de ser terminada. Mas essa pouca coisa também, não estou a fim de revirar.

Vêm-me à idéia sonhos e paisagens impossíveis. Borboletas que polinizam fadas. Peixes coloridos fazendo música de vanguarda no fundo de um vulcão submarino. Um casal feliz que não teme o futuro. Crianças dançam ao som de uivos de lobos. Uma mulher que morde os beiços até sangrarem e chora de emoção enquanto o namorado, que, durante o dia, trabalha como puma no zoológico, geme alto tomando-a de um jeito que nenhum dos dois ainda havia experimentado. Outro casal, nu, estreia sua nova cama de casal com um beijo demorado, rolando nela, mãos apertando as nádegas um do outro, na competição por quem será o primeiro. Um homem feio segura sozinho entre as duas mãos, para esquentá-lo, o copo de conhaque, pois o garçom não lhe trouxe uma vela, na primeira mesa ao canto da calçada, no primeiro bar da Avanhandava, rabisca desenhos e frases sem nexo no bonito caderno que tirou da mochila e, apesar dos olhos ligeiramente úmidos e de uma gota que lhes escorre pelo lado do rosto escondido pela parede, parece mais realizado e feliz que qualquer casal da rua.

Creio que todas serão boas histórias para quem souber vivê-las ao escrever. E péssimas para quem as escrever por exercício ou obrigação.

Percebo que estou ansioso e olho de novo para o copo. O gelo começou a derreter. Pinga quente é ruim. Lembro da ansiedade e de como esse copo de pinga deixaria bravo o cardiologista que disse que sou ansioso e propenso a procrastinar por conta de ataques de pânico. Eu o convidaria a beber comigo e conversar agora. Amanhã é domingo e, menos que você tenha em casa um chato que lhe infernize para acordar cedo, aos domingos, a gente pode dormir e acordar quando conseguir. Esse pensamento, e saber que a noite que ficou trancada lá fora, escondida de mim pelo teto e pelas cortinas, me acalma.

Jogo a cabeça para trás, olhando uma lâmpada apagada no teto e conto a mim mesmo uma história que já me aconteceu. Paro a certo ponto a verdade. Instintivamente, dramatizo com a sombra da luz da televisão, com o encosto da poltrona e com o vento fresco que entra pela janela, longe, do outro lado da sala, a versão correta, a que realmente aconteceu em algum sonho perdido ou num momento de razão em que deixei de raciocinar e fiz o que quis, sem medo, como se estivesse de madrugada, sozinho, na poltrona da sala.

Essas, que vêm sem querer, nas distrações em que confundimos a lembrança e o desejo, talvez não sejam as melhores histórias a se contar, carecem de trama e profundidade psicológica provavelmente, mas são as melhores de se escrever. Mais profusas que frases motivacionais em revistas femininas e fluentes como só pesadelos e pensamentos ruins podem ser. Quando uma dessas acontece, é ela a história certa a escrever. Preciso agora ter calma suficiente para pô-la fora pelos dedos no teclado sem me atrapalhar. Tentar acompanhar com os dedos o ritmo em que ela jorra sem querer de minha cachola doentia.

O grande problema em escrever é mesmo esse. Ter idéia, tenho muitas. Anoto-as e até esqueço pois não dá tempo de escrever tudo. E sentado na poltrona, conforme a cabeça viaja na imaginação, coisas que eu sei que nunca vão acontecer tomam forma ao meu redor de mim em coisas que só podem ser alucinações. O hálito de alguem que conversa comigo de perto, trazido pela quentura que meu pescoço deixou na borda do estofado. Uma voz conhecida dizendo no tom perfeito as melhores respostas para as perguntas que faço apenas com o movimento da boca. Paisagens urbanas de uma cidade serrana coloridas no escuro da daquela parede onde a luz da televisão não chega.  Devaneios de perdição num calor que não sei de onde vem, mas que só pode ser o do corpo de alguém que ainda não conheço. Sei que quanto mais rápido imagino (e isso é inevitável quando gosto do que imagino), mais perco na limitada velocidade da escrita.

É um constante alternar da imaginação involuntária para a necessidade de descrevê-la e, vice-versa, da escrita para a fantasia. Os detalhes. Os detalhes. Quero anotar todos, todos, mas tanta água desce em enxurrada por essa ladeira que acabo consegu8ndo só os mais evidentes, que espero sejam também os mais importante.

Teclo, teclo. Choro. Passo raiva. Suo muito. Olho o copo onde, me lembro, uma pedra de gelo muito grande derretia. Ela já derreteu quase toda. A pinga amarelada agora parece pura água. Não bebi nada. Nem me da mais vontade. Teclo mais algumas frases, para depois buscar água na geladeira. Aquela água com gosto de plástico que eu não quis antes. Está muito quente aqui. Eu sou muito. Escorrem o sovaco, o pescoço, a nação, atrás dos joelhos, até as mãos.

Certas coisas são difíceis de se escrever. Tem de ir de uma vez sem parar para pensar no que vai dar. Cheiro ruim de ferro. O nariz seco incomoda. De tanto suar, a pressão me parece cair e os dedos já escorregam nas teclas. Curioso, olho para o teclado, coisa que digitador bem treinado não faz. Já não distinguo algumas letras das teclas, lambuzadas com um líquido gosmento e opaco. Não parece ser só suor. Os dedos, das duas mãos, sujos.

Pego o copo no qual ainda não pus a boca, o guardanapo que estava embaixo dele para limpar o teclado. O papelzinho absorvente rasga e quase se desmancha logo que o pego. O vermelho clássico só agora me fica evidente. Mergulho os dedos, quase todos, exceto os polegares, das duas mãos, no líquido ainda meio gelado do copo. O drink, antes cristalino e sem graça, fica imediatamente bonito, decorado pelo sangue que escorre das feridas abertas neles pela escrita.

handwriting

Lembro de como me doía a mão direita de segurar o lápis para escrever. Sempre segurei-o com muito mais força do que devia. Também sempre demorei muito mais do que devia para escrever. Apertava os dedos contra o lápis e ele contra o papel. Isso já acabou. O que me cansa agora são as dobras de alguns dedos, de pouco se mexerem enquanto teclo.

Dor. Dor só de coisas lembradas ou imaginadas, que não consigo terminar de escrever para postar.

Queria escrever mais rápido. Mais rápido para logo desembuchá-las no teclado e postar. Postar para longe. Para algum lugar do mundo onde sumam.

Não consigo, e essa lentidão em redigir me aflige.

Ficam essas histórias inacabadas me atormentando. Pior do que se não existissem, rascunhadas.

está difícil

Acho que cansei-me, e talvez já isso seja irremediável, de escrever neste tablet. A ideia de comprá-lo há uns três ou quatro anos atrás, para a praticidade de escrever em qualquer lugar, foi boa. Mas hoje, cada vez que o destravo, logo às primeiras letras digitadas, desanima-me lembrar de quanto tempo demoro a escrever e de quanta coisa gostaria de escrever. É até agradável imaginar que penso muito rápido e que sou criativo demais. Infelizmente, não é esse o caso, absolutamente. Sempre escrevi devagar. Mesmo à lápis, na escola, naquele papel pautado quadrado com dois furos na margem. O chamávamos “folha de linguagem”. Um nom que, pensando bem, não faz muito sentido, tirando que as professoras mais antigas chamavam as aulas de português do primário, na verdade aulas de alfabetização, “Aulas de Linguagem”. Tínhamos até cadernos etiquetados como “Caderno de Linguagem”. Eram onde escrevíamos os ditados, copiávamos os textos da cartilha e, no primeiro anos, repetíamos por linha e linhas inteiras, página e paginas inteiras, cada letra, em maiúscula e em minúscula, até lhe decorarmos o jeito para, ao escrever, não ter de pensar na mecânica do lápis e da mão.

Nesse tempo, eu já escrevia devagar. O movimento da mão sempre foi lento, com cuidado para ficar legível. Mas também, eu apertava muito o lápis de encontro ao papel e os dedos de encontro ao lápis. O pulso logo doía, a ligação entre fãs duas ultimas falanges do indicador também. Numa redação de vinte linhas para a Dona Terezinha, isso não chega a ser grande coisa. Terminada, era só chacoalhar um pouco a mão e descansa-lá por alguns minutos até o recreio. Hoje as coisa que quero escreve são mais longas e, se é verdade que a mão está mais treinada, também é que corrigi-las já torna impossível de ser feito no papel com lápis e borracha. Imagine, apagar e reescrever meia página cada vez que percebo que queria por mais um parágrafo, contar algo mais, ente isto e aquilo.

O digital foi um ganho nisso. Muito mais fácil de corrigir (e, cá entre nós, parece-me que também é mais fácil de errar). Muito menos cansativo do que o lápis e o papel. Mais rápido até, embora eu continue escrevendo muito devagar.

O problema são meus rascunhos que crescem e crescem. Multiplicação de anotações, de ideias, histórias, frases soltas e citações. Coisas sobr as quais quero escrever, mesmo que não sejam do interesse de mais ninguém. Cada vez que destravo o tablet e penso no quanto demoro a escrever cada uma delas, desanimo e pego-me pensando em algo que consiga escrever no tempo que tenho. Nada é possível de escrever no tempo que tenho. Tudo, ao final, me parece igual, repetitivo e incompleto. Não consigo imaginar o que era para Dona Terezinha ler quarenta redações seguidas entituladas “Minhas Férias”. Todas escritas sobre o mesmo mês passado em casa assistindo à programação da Globo. Sessão da Tarde. Festival Trapalhões. Salvos os dois ou três que diziam ter passado um fim de semana na praia.

Dona Therezinha tinha paciência para ler e corrigir. Era uma boa professora. Eu já não tenho a mesma para escrever as casas que invento enquanto penso em tantas outras que poderia inventar, sem ao menos saber se alguma delas prestaria.

Continuo escrevendo assim, só o que consigo, por falta de uma ordem nesta minha cabeça atormentada.

Romeo y Julieta

Romeo y Julieta não estavam juntos, eram na verdade um só. Entremeados e enlaçados um no outro (como se poderia dizer que fazem as lombrigas, se fosse romântico falar em lombrigas), trocavam juras de eternos amor e fidelidade.

Os já mais experientes da vida podem jugar-lhes ingênuos e até deles rir. Afinal de contas, é a reação que todos temos frente às paixões dos jovens. E estes, em particular, são muito jovens.

Ainda assim, seria-nos de admirar, a nós e a ela, a dimensão que essa eternidade, esses “para sempre” e “até a morte”, toma no caso desses dois Julieta e Romeo. Nem Shakespeare, narrador de tragédias e comédias, lhes adivinharia ou fazia tal futuro.

Nem nós, que sabemos da fugacidade do amor e de suas juras, poderíamos conceber que o destino ironizasse essa promessa assim, sem pudor de demonstrar poder. Tampouco eles, apaixonados, envolvidos pelos encanto que os prazeres sempre hão-de ter aos jovens imaturos, e mesmo aos adultos, adivinhariam que um promessa se cumpriria tão fácil e quase involuntariamente.

Pega-lhes entre os dedos médio e indicador o Termo. O Termo, feio, velho (muito mais velho que eles), mal-humorado, barbudo e baforento, fedido a álcool que (não importa o preço ou a marca) é sempre álcool, é sempre barato.

Ele leva-os à boca e toca-lhes fogo. Aspira. Tenta tragar-lhes o que têm. Traga duas, três, quatro vezes e se admira (sem emoção) de ainda estarem unidos numa estátua que já é quase metade carvão.

Entre uma tragada e outra, tenta se distrair soprando no ar, como fuligem, a fumaça grossa que deles tira. Imagina o que seja. Imagina pelas formas que lhe percebe. Nuvem. Fantasma. Chifre. Carrossel. Loucura.

Mais duas tragadas, e a estátua se quebra. As cinzas caem na terra, na grama, e se esfarelam. Já eles não têm metade do peso original.

Duas ou três depois e o que deles resta lhe esquenta o dedo, ameaça queimar. Ele joga então esse toco, ainda queimando, no arbusto, ao pé de uma árvore. Nesse toco, estão enroscados, ainda firmes. Realmente até o fim.

 

Post sem Moral da História

O sujeito chega em casa, tarde da noite. Perdeu o jornal, perdeu a novela. Seu time também está perdendo. Durante o dia, no trabalho, uma treta atrás da outra. Já lhe apelidaram de varal, por causa da piada corporativa do varal com caralhos pendurados. A esposa o abraça e enquanto o beija, beijo de três segundos, alcança sua carteira e pergunta pelo pagamentos dos boletos e as coisas que devia trazer, mas não trouxe, do mercado. As crianças o chamam para brincar, cada uma por um braço, e brigam entre si, posto que cada uma quer uma brincadeira diferente. O cachorro, para também entrar na disputa, puxa-lhe a barra da calça com os dentes e acaba por rasgá-la. Toma banho e vai para a cama danado com o chuveiro que estava muito quente e com o choque que tomou tentando mexer.

De manhã, é o primeiro a acordar. Antes mesmo do telefone que só iria tocar às seis. Vai à cozinha, faz um café, amaldiçoando a ramela que incomoda o olho. Senta-se na poltrona da sala pensando no dia maldito que começa. Liga a televisão. Jornal já começou. Segura a caneca do café com as duas mãos e a leva à boca. A alguns dedos de distância, sente-lhe o cheiro. “Ah! Ainda bem que existe café!”