“Pêlo de gato!”
Eu estava distraído com a cabeça deitada sobre meu braço, tentando fugir do tédio da aula repetida de química (o professor repetia as aulas até achar que os alunos haviam aprendido a lição). O professor disse disse alto a frase, passando a mão por boa parte do comprimento do cabelo da galega, para chamar a atenção geral da classe para ela que, provavelmente, estava de novo dormindo ou distraída desenhando. Filho da mãe!
Nessa época, eu costumava me sentar atrás dela e, embora passasse a aula inteira olhando a garota, sempre me contive de tocar-lá, fazer carinho ou coisa que pudesse ser tomada como ousadia ridícula. Parece estranho, mas ser um garoto feio era assim. A gente se acostumava a saber que não devia tomar liberdade com as garotas bonitas. E a galega era uma. Portuguesa, baixinha, loira (e ser loira na periferia chamava muito a atenção), branquela, quadril largo. Não se levava a sério mulher que não tivesse o quadril largo. Foi a primeira garota que eu conheci que malhava em academia. Não para ter o corpo bombado como é moda agora. O seu corpo era bonito mas normal. Sem secura, sem aqueles músculos artificialmente grandes e rígidos. Tinha suas poucas gordurinhas no lugar certo. Principalmente nas bochechas.
Sentava-se à minha frente e eu passava boa parte da aula tentando olhar-lhe o pescoço e os ombros por baixo de tanto cabelo. O cabelo grande e volumoso chegava ao meio da bunda. Nos dias mais ousados, quando ela se debruçava na mesa e a camiseta subia, espiava espiava sua cintura entre a barra da camiseta e o começo da saia. Mas para isso, eu tinha de esticar muito os olhos e me debruçar um pouco. Era arriscado, ficava numa posição meio ridícula que denunciava aos outros a minha curiosidade. Ela me flagrou umas duas vezes e reagiu rindo encabulada como se fosse ela a fazer alguma besteira.
A provocação dele tinha motivo (outro além de se engraçar com a aluna bonita). Elastava realmente dormindo, cabeça baixa, olhos nos rabiscos da mesa. Acordou quando percebeu que riam todos do inesperado do professor abusado. Encabulada, sentou-se de lado espalhando a cara de sono e virou-se para mim com o sorriso de quem sabe que está com a cara amassada e tenta ver graça em si mesma para dissimular a vergonha. Esse sorriso pareceu-me alegre. Normalmente seu sorriso parecia triste, melancólico, desanimado, eu nunca entendi porquê. Era como se, enquanto o abria, percebesse que os outros não entendiam seu motivo para sorrir e se envergonhasse dele. Era comum seus sorrisos durarem muito pouco e logo terminarem numa expressão vazia, lábios abertos, olhos enxergando bem longe, fora da sala. Então ela esquecia do assunto da conversa e, às vezes, parecia se esquecer até de onde estava, como sonâmbulo que acorda fora da cama.
“Preciso cortar meu cabelo. E muito comprido.” Enrolando-o e esticando como se fosse um rabo de cavalo. E depois, batendo as mãos nas pernas e bufando com expressão de saco cheio: “Chama a atenção.” Chamava mesmo, acho que não por ser comprido, mas pelo volume. Denso e muito cacheado.
Eu não soube o que dizer. Nunca soube o que dizer. Até hoje nunca sei. Se digo que não precisa cortar, estou errado porque discordo dela. Se digo que precisa, estou errado porque ela vai assumir que não gosto de seu cabelo. Não falei nada e, depois, me pareceu ser o mais errado. Podia ter-lhe dito que se o cortasse, eu conseguiria ver seus ombros, talvez também visse melhor suas bochechas. Será que ela estava de brincos? Podia pedir para vê-los. Ela fez cara de brava por eu me abster de descobrir a resposta que ela queria. Aproveitou a caneta que tinha na mão e escreveu no canto de meu caderno, meio de lado, a primeira sílaba de seu nome. Enfeitou com um coração sobre a segunda letra, que ficou parecida com uma vela acessa.
Seu braço deitado na minha mesa para escrever. Se, ao invés do cabelo, ela tivesse falado do braço, eu talvez soubesse o que dizer. Que não mexesse nele, que parecia quente e macio, e que, quando ela se virava assim, me dava vontade de usá-lo de travesseiro para sentar a cabeça e pensar direito em algo para dizer sobre seus cabelos.
Sorriu de novo, feliz por eu não brigar por sua arte. Minha reação foi só olhá-la e ela escondeu, de novo, o sorriso. Percebeu que eu estava triste por algo que me disse antes da aula e ficou também.
“Se você quer cortar o cabelo, corta.” Isso foi o máximo de interação verbal que eu consegui. Podia ter elogiado, mas não, só concordei com que mexesse no que lhe incomodava, como se me incomodasse também.
“Meu pai não deixa. Na minha igreja, mulher não pode cortar o cabelo.” Ela tinha se convertido pouco antes de trocar de escola e nos conhecermos. Imposição da pai que achou conveniente culpar sua antiga religião por seus próprios defeitos. A irmã pouco mais velha que ela não se converteu e o pai a convidou a se casar logo para não morar mais com eles. A galega criou medo de contrariá-lo também.
Além do cabelão que nunca cortava, usava sempre a mesma saia (ou será que tinha varias iguais?) de jeans azul, igual às outras garotas de sua igreja. Nós as dintingüiamos assim. Mas diferente das outras, que ficaram bravas, quando a escola adotou calças (do mesmo jeans) no uniforme obrigatório de todos os alunos, meninas ou meninas, ela ficou feliz como criança que ganha brinquedo.
“Você gosta desse…?” Fingi não me lembrar do nome. Ela completou a frase, talvez para me lembrar, talvez para me mostrar que era infantil fingir. “Meu pai disse que não posso namorar ninguém de fora da igreja. Ela é pequena, não dá pra escolher muito. Melhor ficar logo mesmo com ele que ao menos ele é bonito.”