Você acorda no meio da madrugada, se é que chegou a pegar no sono, pisca os olhos arregalados, presta atenção na luz de faróis que entra pelas frestas da persiana e corre pelas paredes, pelo armário e pelo teto, preocupado em não perder a hora de sair para o trabalho hoje e inquieto, sem saber, se terá de se preocupar em não perder a hora nos próximos dias. Se já fosse de manhã, esquentaria água para passar um café e se sentar com o copo de massa de tomate cheio dele, bem adoçado e quente, na soleira da porta, olhando as crianças passarem no caminho para a escola. Como ainda não é, senta na cama mesmo, pega o telefone e procura na internet vídeos usando palavras usando palavras que não tem coragem de deixar sua família ou amigos saberem que lhe excitam.
Fica no trabalho na segunda-feira à noite sozinho, sem coragem de procurar se há mais alguém como você que não tenha um compromisso ou um motivo para voltar para casa no dia mais odiado da semana. Repassa o status de tudo o que os colegas tem atrasado ou pendente e também de tudo com que deviam se preocupar. Em ter para quem comentar, esbraveja para si mesmos que são um bando de vagabundos e incompetentes e envia vários e-mails cobrando e chamando a atenção de todos para coisas que você finge serem da sua conta. O chefe já está em casa, mas daí a alguns meses o elogiará pela compromisso com a empresa.
Mas, ainda no dia seguinte, frustrado com mal-humor desse mesmo chefe e com os colegas que, em vez de trabalhar, falam de futebol, sai para fumar cinco ou seis vezes. Olha os carros passarem na rua pensando em como esse pessoal pode estar passeando em pleno horário comercial. Olha também todas as mulheres que passam e não sejam feias, surpreso com o pensamento de que é possível que todas tenham vida sexual. Não consegue imaginar que sejam todas elas capazes de fazer o que, sabe-se, todo adulto é capaz. Surpreende-s ainda ao pensar que o mais provável é que a maioria realmente faça e que muitas delas façam inclusive as coisas que ele nunca fez. Bafora a fumaça como se ela fosse vapor de panela de pressão que foge pela válvula da tampa enquanto o feijão cozinha. Olha a fumaça se dispersar pensando se quem o vê ali consegue também imaginar o que ou deixa de fazer e acreditar ou duvidar disso também.
Na sexta-feira, depois do chope com os colegas que xingou na segunda, quando todos se dispersam para cuidar das próprias vidas, vai dali para outro bar, perto da zona esse. Pede algo que lhe parece forte e distinto. Senta-se ao balcão e não para de olhar para os lados, para as mesas, para o pessoal que fuma na calçada. Procura mais alguém que também não tenha nada para fazer. Não encontra. Dois bêbados noutros bancos ao balcão e uma meia dúzia que fuma na calçada gritando e já sem coordenação para encher o próprio copo lhe incomodam e dão pena. Pede mais uma dose, mais outra. Fala consigo mesmo sobre o que pensa de todo mundo e, por fim, já chutando o balde, de saco cheio de tudo, o que pensa de si. Percebe que é mais um dos bêbados do balcão e imagina que, patético, apenas incomode e lhe tenham pena. Levanta o copo para matá-lo, mas bebe devagar olhando o círculo molhado que ele deixa no balcão.