Coelhos e Hortas

Tínhamos duas coelheiras em casa. Uma grande, do tamanho de uma geladeira deitada, onde ficavam os coelhos de criação, entre meia é uma dúzia, que a avó fazia para o almoço do sábado, coelho cozido com batatas, e aproveitava as peles para fazer tapetes super macios. Na outra, menor, metade do tamanho, moravam Escovão e Fofura. Esses eram de estimação, os únicos mansos. Os outros se pudessem nos arrancavam os dedos. Escovão e Fofura não. Com eles, podíamos brincar.

Brincar com coelho é basicamente alimentá-los e fazer carinho nas costas. São bichos muito frágeis. Por qualquer coisa, uma cabeçada um no outro, uma patada da cadela, tombam. Gostávamos de dar-lhes verdura no colo.

Coelho não come cenoura. Rói para gastar os dentes, mas come só a rama. Gosta da rama da cenoura, de salsão, funcho. Comem outras verduras também, alface, couve-flor, repolho. Não bebem água. Não sei como, tiram da verdura a água que precisam. Se lha damos num potinho para que bebam, morrem com diarreia. Eram assim os coelhos de casa. Já me disseram que “meu coelho não é assim”. Eu não sei a diferença dos nossos para os dos outros, mas me lembro de que com os nossos era assim.

O pai só não nos deixava chegar perto da coelheira quando havia algum coelho doente. Além do perigo da raiva — mamíferos sempre correm esse risco, de pegar raiva por uma mordida de morcego, rato, ou desses gatos vagabundos que vivem de telhado em telhado, de quintal em quintal, — havia também uma doença específica de coelhos, que fazia nascer uma espécie de chifre entre a boca e o nariz. A gente não sabia explicar o que era. O pai só sabia que o coelho que pegasse isso morria e que, se demorasse pra separá-lo, outros pegavam. Foi dessa doença que o Escovão morreu, tinha já mais de dez anos, isso é bastante para um coelho. Quando ficou doente, o pai o separou numa coelheira menor, improvisada, deu os remédios que indicaram na avícola — as lojas que vendiam aves para abate eram o que existia na época, em vez de pet shops. Num domingo, acordamos para o café e a mãe disse que o escovão tinha morrido e o pai o tinha enterrado no quintal.

A coelheira tinha o chão com muitos vãos, parecido com um mata-burro fino e embaixo ficava uma caixa com terra. Era o jeito de colher o esterco dos coelhos, ele caía na caixa pelos vãos do piso, para usar na horta e nas roseiras da mãe, as da mãe eram rosas e vermelhas, diferentes das da avó que eram quase todas brancas ou amarelas. Quando o pai achava que devia, ele cobria um uma camada de restos de verduras e legumes e outra de terra. Ia formando assim uma espécie de lasanha de esterco que, quando precisava, passávamos com a pá para a horta e o jardim.

Do jardim, quem cuidava era a mãe. Tinha rosas e umas plantas com nomes que eu não sabia diferenciar. Algumas, de folhas vermelhas, eram venenosas. As outras, samambaia, rendas, comigo-ninguém-pode, eram só folhas verdes. Naquela época, eu não entendia como alguém podia gostar de uma planta que não tenha flores, que não tenha perfume nem colorido. Hoje entendo isso, às vezes. Me lembro de poucas vezes em que a vi mexendo nas plantas do jardim. Ela fazia isso só durante a semana, depois dos que iam pra escola saírem pra escola e antes dos outros acordarem para ver televisão.

A horta era das crianças. Na verdade, era como se fosse de meu irmão. Ele que escolhia o que plantar, as sementes, as mudas. Ele que procurava com o pai e os avós o jeito de fazer com cada planta. Gostava de plantar funcho, salsinha, cebolinha, cenoura, salsão, espinafre e coisas para chá, erva-doce, melissa, camomila, angélica, erva-cidreira, hortelã. O avô nos deu algumas ferramentas básicas, cavoca, tesoura, pá, enxada. O irmão orquestrava. Fazíamos os canteiros, semeávamos ou plantávamos, cobríamos, regávamos, depois fazíamos uma treliça de linha por cima, para as galinhas e pombas não ciscarem ali e, por fim, a parte que eu mais gostava, púnhamos na cabeceira uma plaquinha com o nome do que estava plantado ali.

A horta começou com um pedaço do quintal de mais ou menos um metro por um e meio. Eram três ou quatro canteiros compridos. Não me lembro o que tinha no começo, exceto pelo espinafre. Queríamos espinafre para comer igual ao Popeye. E comemos. Pegamos o espinafre que a mãe refogou igual couve, — ela nunca tinha feito espinafre, achou que fosse igual à couve — colocamos no copo e fingimos que era a lata de espinafre do Popeye. A brincadeira perdeu a graça logo que percebemos o gosto de verdura amarga. A mãe gostou, mas que comêssemos nos pratos e com talheres, chegava de copos.

Com o tempo, fomos aumentando o número de fileiras, uma ao lado da outra. Depois pegamos mais um pedaço para encompridá-las. Mas já nas continuações, plantamos coisas diferentes.

No domingo, quando a mãe disse que o Escovão havia morrido e o pai o tinha enterrado, pudemos de novo brincar no quintal perto das coelheiras. O pai vinha regando nossa horta, mas tínhamos mais umas mudas e sementes que queríamos plantar. Isso o pai deixava para nós, o negócio dele eram as criações, coelhos, galinhas, pombas e carpas.

Os nossos canteiros já estavam todos lotados. Precisávamos abrir um espaço novo. Não para o fundo do quintal, que lá ficavam as coisas do pai, era muita bagunça pra mexer. Tinha um pouco de espaço junto ente a horta e as roseiras. Dava para abrir um canteiro ali, mas precisava de um pouco de terra para subir o terreno, senão, a chuva ia estragar tudo.

Nós gostávamos de pegar terra dentro do galinheiro. Ela já vinha meio adubada e, no buraco que deixávamos, as galinhas depois se divertiam ciscando. Abrimos um dos galinheiros de baixo, os que tinham chão de terra, deixamos as galinhas fugirem e entramos para pegar areia. Elas correram fuzarqueiras, ciscar fora do galinheiro atrás de minhocas e porcarias diferentes. Pegamos a terra e voltamos.

Antes de plantar, a pior parte: conseguir tocar as galinhas pra dentro de novo. Elas ao menos estavam amontoadas no canto. O irmão foi buscar uns papelões de caixa para ajudar a cerca-lãs para dentro do galinheiro e eu, curioso, fui olhar o que faziam. Galinha é bicho nojento, adora atacar rato, barata, lagartixa. Mas elas então atacavam outra coisa. Encontraram terra remexida e ciscaram até fazer um buraco e encontrar o Escovão, que o pai tinha enterrado ali de manhã.

Eu tomei um susto com o coelho rígido, de olhos abertos, parecia de pelúcia. Com raiva das galinhas, corri no meio delas, chutando-as. Atropelei o irmão que chegava com o papelão e subi a escada pra casa, chorando.

Ele deve ter percebido o que aconteceu. Guardou as galinhas, plantou a horta, subiu pro banho e não me zoou, nem nunca comentou aquilo comigo.

Rádio

Eu, quando era pequeno, morava num bairro de periferia muito violento. Meus pais ainda moram lá, e as coisas não mudaram muito. Minha avó morava na cidade, perto do centro, num dos melhores bairros, perto das melhores escolas estaduais. Por isso, meus irmãos e eu sempre estudamos em escolas na cidade. Dávamos o endereço da avó.

O pai era motorista de ônibus. Saia cedo de casa, cinco e meia da madrugada. No caminho, nos deixava na avó e ia para a garagem. Na avó tomávamos Toddy e pão com manteiga, esperando a hora de ir para a escola.

Eu só peguei por pouco mais de dois anos essa fase de acordar muito cedo. Depois de se aposentar, quando eu estava na terceira série, o pai nos acordava mais tarde, seis e meia.

Quando ainda não tinha idade para escola, às vezes, acontecia de o meu sono espalhar, ou por causa do barulho dos irmãos, ou por eu me deitar muito cedo mesmo. A mãe mandava todo mundo pra cama às oito. Quando acontecia, nem precisavam convidar, ia pra cozinha, esfregando os olhos de sono, ajudava o pai a encher sua xícara de café, com um pouquinho de pinga às vezes, pra acordar. E esperava os irmãos voltarem trocados. Ia de carona, de pijama mesmo, pra casa da avó. A mãe agradecia, tinha o caçula ainda nenê para cuidar.

Tirava o pijama lá. A avó ajudava a mãe com as roupas pra lavar e sempre desviava umas peças para eu usar nessas visitas. O avô, quando acordava para dar bom dia aos meus irmãos e me via, vinha todo orgulhoso: “Meu cenourinha! Veio ouvir rádio comigo.” O apelido de cenourinha era uma piada por causa de um macacão horroroso, entre laranja e ferrugem, que eu, quando era nenê usei numa sessão de fotos que a mãe tirou no jardim deles. Já o lance de ouvir rádio… estar com o avô era o mesmo que ouvir rádio com o avô.

Um dos primeiros funcionários da Phillips no Brasil. Quando começaram a fabricar rádios aqui, ele ganhou um. Orgulhoso, se apaixonou. Quando lançaram a televisão, também ganhou uma. Número de série 00004. Recebeu numa festa junto com o prefeito, o governador e o presidente. Ela durou anos, de madeira sólida e válvulas. Eu a conservei funcionando em meu quarto até à época da faculdade. A televisão, meu avô só ligava para o futebol, o jornal e o programa da Inesita Barroso. Rádio, era o dia todo. Tinha três, todos Phillips. Aliás, se comprássemos algo, sua primeira pergunta sempre era: “Comprou Phillips, né?”

Logo que acordava, pegava do criado mudo o pequeno, do tamanho do maço de cigarros. Esses modelos eram chamados de radinhos de pilha. Vinha do quarto para a cozinha com ele ligado perto do ouvido, escutando o fim do programa do Zé Bettio. Passava pela cozinha cumprimentando todos e ia para o banheiro. Saía com o rádio no ouvido, na mesma posição, a avó brincava que ele não tirava o rádio do ouvido nem no banheiro: “Assim, acaba se atrapalhando e molhando as calças.” Tomava o café com uma mão, o rádio na outra. Escutava o rádio e as conversas da mesa ao mesmo tempo.

Depois do café, ia cuidar dos passarinhos. No quartinho onde eles dormiam, tinha outro, mesma marca, portátil também, mas do tamanho de uma resma de sulfite, esse era de pilhas grandes. Cuidava dos passarinhos ouvindo o Gil Gomes. Minha avó brigava para não irmos lá escutar também, não era programa bom para criança.

Quando terminava, era hora de relaxar. O rádio grande, de ligar na tomada, presente da empresa, ficava na varanda de treliça, entre o tanque e o banheiro, ao lado da cadeira azul onde ele fumava pela manhã. Eu me sentava entre os dois, com meus lápis e cadernos e desenhava para ele. O avô conseguia fumar quase dois maços de Hollywood numa manhã. Ouvíamos os programas do Roberto Carlos, do Sílvio Santos, o jornal da Jovem Pan, o noticiário esportivo, as notícias do São Paulo. Era são-paulino, tadinho, faleceu tentando converter o neto a essa religião que ajudou a fundar. Não conseguiu, o orgulho do sangue português falou mais alto ao neto brasileiro do que a ele que era português.

Desligava o rádio só para o almoço, quando meus irmãos voltavam da escola. Depois do almoço, o pai passava para nós buscar e ele ia para a sala com a avó namorar e dormir um pouquinho.

Meu avô faleceu numa quarta-feira, reclamando de não poder fumar nem ouvir rádio no hospital. Eu tinha onze anos. Era o primeiro dia de aula depois das férias de julho. Minha avó pediu para eu passar o fim-de-semana seguinte fazendo-lhe companhia. Na verdade, só me devolveu a meus pais dez anos depois, quando ela também faleceu.

No domingo, quando já escurecia. Ela entrou no meu quarto com o radinho de pilha de meu avô ligado. Tinha acabado a final do campeonato paulista. O São Paulo ganhou. “Teu avô ia ficar tão feliz! Por quatro dias ele não ouviu a final… Ele me pediu pra te dar o radinho quando ele morresse.”

A antiga televisão de válvulas do meu quarto não aquentava ficar ligada mais do que duas horas por dia. Precisava de um aparelho que a gente chamava de reloginho, uma espécie de transformador ou estabilizador. O rádio, transistorizado, não. Meu avô há de ter perdoado, talvez não, seu radinho nunca mais sintonizou jogos do São Paulo, exceto quando fossem contra a Portuguesa. Foi nele que ouvi os gols de Denner, que me acostumei a ouvir o jornal ao acordar e os programas de música de sábado à noite.

A programação mudou bastante, desde então. Já se vão quase trinta anos desde que meu avô morreu. Mas eu me lembro dele sempre que ouço aquele chiado característico de quando mexemos na sintonia do AM.

Mickey

Mickey Ears

Hoje em dia, fala-se muito em bullying. Tudo é bullying, e tudo traumatiza as crianças. Mania das mães desta geração. Mas o que elas não percebem é que o pior bullying que as crianças sofrem vem das próprias mães.

Elas têm algumas manias que ninguém merece e que, tenho certeza, ainda serão catalogadas pela Anistia Internacional como barbaridades da história antiga, a nossa antigüidade. Socam comidas horríveis nas bocas dos filhos, falam com voz tate-bitate de retardadas, largam o filho no chiqueirinho na frente da televisão com aquela maldita galinha azul. E nem venhamos nós, pais, acharmos que fazemos melhor. Um dia, nossos filhos nos processarão.

Minha mãe tinha uma mania horrorosa: ela usava os filhos para brincar nas coisas de criança com eles. Palhaço, parquinho, loja distribuindo bexigas ou algodão-doce. Não interessava se os filhos queriam, ela queria e precisava do filho junto para participar. Pobre não se contenta em ser pobre. Não pode ver algo de graça que precisa entrar na fila, mesmo que o filho, irritado, diga que odeia algodão-doce e mais ainda o palhaço de cara de saco cheio que está distribuindo. O errado é o filho: “Ele tem medo do palhaço!” É o argumento mais clássico. Acham que o filho vai se ofender, subir em seus brios, e encarar a fila pra apertar a mão do palhaço, logo me lembro daquelas luvas imundas e fedidas (por que é que palhaço de periferia nunca lava a roupa?), minha cara de mamão cumprimentando com nojo, depois a frase óbvia: “Se não quer o algodão doce, dá pra mim.” E lá seguíamos o caminho, eu procurando onde lavar a mão, a mãe se deliciando com aqueles fiapos de açúcar no palito.

A minha maior diferença era com o Mickey. Aliás, com OS MICKEYS. Cansei de ser acusado de ter medo do Mickey. Riam de mim. Bastava passar por uma loja que tivesse na porta alguém com aquelas fantasias mal feitas e já começava a ladainha: “Vai lá. É o Mickey. Não seja bobão.” E era difícil o dia que não houvesse um desses pelo calçadão da António Agu, lá em Osasco. Eu simplesmente não queria chegar perto daquela coisa que tentava se passar pelo camondongo do gibi. Camundongo que, convenhamos, nunca me inspirou muita confiança, nunca se soube de que ele trabalhasse… vivia entrando e saindo da delegacia… e, mesmo assim, não passava os apuros de falta de grana, comuns a seus amigos Pateta, Donald e Zé Carioca… Sujeitinho suspeito esse tal de Mickey!… O que, no entanto, não me impedia de ler seus gibis. Que o diga Seu Vilaça, dono da banca de gibis de segunda mão na Praça Duque de Caxias, mais conhecida por “Jardim”, entre a Catedral (então Matriz) e o Hospital das Damas.

Seu Vilaça não tinha culpa pelos farsantes que pensavam estar fantasiados de Mickey no calçadão. Talvez tivesse culpa apenas por eu conhecer muito bem o original e não ser tão facilmente enganado quanto as outras crianças.

Teve um Mickey que eu me lembro muito bem, sempre me lembro, era igualzinho a todos os outros. E eu não queria chegar perto dele. Em primeiro lugar, porque não era o verdadeiro. Nem parecia. Era alguém, vai saber quem, com uma fantasia de pelúcia, ridícula, e encardida, que mais parecia de lagartixa. Mas reconheciam-se aquelas orelhas redondas, são um verdadeiro logo. Era mais rato do que o camondongo do gibi: sujo, fedido e nojento. Essas fantasias são sempre assim. Imagino que fiquem guardadas todas no mesmo depósito imundo esperando o dia da promoção da loja.

Me admira que, se o sujeito não estivesse com aquelas orelhinhas de pretas redondas, ninguém, tenho certeza, nenhuma mãe o deixaria chegar perto de uma criança. Mas, vestido assim, empurram os filhos para eles: “Como você é bobo! Vai lá! Está com medo. Ele não vai fazer nada. Você vai ganhar pirulito.”

Meu irmão é mais novo do que eu. Na época, era bem pequeno. Ainda concordava com tudo que a mãe dissesse. Ele foi. A mãe parou de insistir comigo, feliz por já um dos filhos ter concordado. Tinha então a desculpa para ela também ir brincar com o rato. O caçula foi reto atrás da mão que distribuía os doces. Ela não. Quis conversar, abraçar, brincar com as orelhas, perguntou pela Margarida. “Minnie”, corrigiram-lhe a indiscreção. Quem corrigiu não foi o fantasiado. Esse não fala como o original, da televisão e dos quadrinhos. Só acena. Sorte ainda não terem inventado celulares com câmera digital. Ela passaria meia-hora tirando Mickey Mouse Selfies.

Voltaram. Eu já enfastiado de esperar. Não sei se ela estava satisfeita. Acho que só voltou porque não achou correto deixar sozinho o filho sem-graça que não quis brincar com o rato. Mickey não era rato, era um camundongo. São animais diferentes, não se cruzam. Aquele ali sim, era um rato.

O irmão trouxe na mão dois pirulitos, o dele e um que a mãe o fez pedir em meu nome: “Para o envergonhado ali.”

Eu disse para a mãe guardar, ou pegar para ela. Não quis nem o pirulito. Eu preferia o cachorro-quente que ia ganhar na volta pra casa da avó, acompanhado por um gibi.

Rosas Amarelas

Minha avó tinha um pequeno jardim na frente da casa. Pequeno mesmo, três metros por três, ou coisa que o valha. Quadrado. Em torno dele, um caminho cimentado de, talvez, meio metro de largura, calçado com lascas grandes de cerâmica vermelha, cor de barro, servia de moldura.

Por dentro, ele era cortado em quatro por duas diagonais de cimento, que se encontravam no meio, numa espécie de rotatória. A rotatória mais os quatro pedaços formavam então cinco canteiros, bem colados, delimitados por uma borda de uns cinco centímetros de altura, o suficiente para a água da chuva e da limpeza do jardim não invadi-los a revirar a terra.

As diagonais cimentadas e o anel em torno da rotatória central eram muito estreitos. Só quando eu era muito pequeno, conseguia andar por eles. Na época, as flores coloridas, mais altas que eu, cheias de insetos, formavam um cenários surrealista, fantástico. Aproveitava quando era o caçula e só eu conseguia correr por ali no pega-pega. Atravessava outro mundo. Um sendero perdido. Acordava pra realidade ao me machucar nos espinhos. Eram muitos.

Jardim

Dos adultos, só a avó, muito magra que era, entrava ali. Com cuidado, volta e meia se machucava. Tinha problemas com cicatrização. Passava depois, horas, apertando a ferida com a mão até parar de pingar. Entrava para cuidar de suas flores.

Era bastante variedade, a maioria flores baixinhas. Dálias, margaridas. Num canto, tinha uma florzinha esquisita, de folhas brancas carnudas, pareciam pedaços de fruta. Minha avó dizia que era flor-de-cera, que se ficássemos segurando, derretia. Com pena dela, nunca tentamos.

As plantas grandes eram as roseiras. Ela gostava de rosas. Altas, mais de metro e meio de altura. São bonitas, por isso os espinhos. Vermelhas, rosas claras, a maioria, brancas e, as principais, as amarelas. Hoje em dia já é mais ou menos comum, mas na época eram raras. Volta-e-meia alguém batia palmas no portão pedindo uma. Ela oferecia um pedaço de tronco, para plantar. Quase sempre recusavam, queriam só uma flor. A avó cortava e entregava, contrariada. Queria que mais gente tivesse rosas amarelas. Não entendia as pessoas quererem mas não as plantarem.

A avó cuidava com cuidado, vaidosa de suas rosas. Usava esterco de coelho. Depois, quando minha outra avó, sua fornecedora de esterco, morreu, ela passou a usar esterco de cavalo. Comprava do peixeiro que passava às quartas-feiras, de carroça.

Quem podava era seu irmão, meu tio Porphírio, com o podão, uma tesoura forte, que servia também para cortar os ossos do frango do domingo. Ele guardava para nós as forquilhas que cortava. Gostávamos, as crianças, das roseiras para fazer estilingue. Para atirar em latas, não passarinhos, que isso não faríamos. Ai de quem cortasse uma forquilha de roseira sem autorização.

A avó regava com a leiteira. Fazia trabalho de formiguinha, buscando um pouco de água, regando devagar uma roseira, olhando-a, depois indo buscar mais água para a próxima.

Roseira

Uma vez, ela estava dormindo na sala depois do almoço, ouviu chamarem no portão. Conversou um pouco pela janelinha da porta da sala, era alguém pedindo uma rosa amarela. Ela foi na casinha dos fundos, no quartinho que foi das ferramentas de meu avô, pegou o podão e foi para o jardim. Eu estava no quintal, sentado embaixo da pitangueira, lendo. Vi ela passar para o quartinho, depois para o jardim. Daí a pouco, ouvi um desaforo e barulho do metal da do podão. Fiquei preocupado, fui olhar o que era.

A avó, furiosa, atacava as roseiras com a ferramenta. No chão, todas as rosas já estavam cortadas. Todas, independente da cor. Os troncos pelados. Sobravam só alguns bracinhos com folhas. Aquelas folhas verdes bordadas de espinhos. Não tinha mais ninguém no portão.

“Quê foi?”

A avó, como se eu tivesse desligado a chave, parou de cortar. Pôs a ferramenta no bolso do avental e, visivelmente brava ainda, começou a arrastar seus tamancos de volta pra sala. Não conseguiu levantar o braço cansado para pôr-me a mão no ombro. Eu a segui sem precisar disso.

“Quando eu fui dar a rosa, a mulher disse que era pra macumba. Ainda fez cara como se eu fosse uma retardada por não saber disso. Macumba com rosa minha, ninguém mais faz.”

E ela nunca mais encostou no jardim.

Pasta

Thank G-d it’s not that simple in My Secret Life.
— Leonard Cohen, In My Secret Life

Pasta

Eu almocei impaciente. Não via a hora da soneca. Não da minha. O pessoal tinha que tirar logo o cochilo de depois do almoço para eu fazer minhas coisas em paz. Eu tinha muito o que fazer. Estava entusiasmado mas, se não quisesse esperar até a noite, tinha de aproveitar aquela hora e meia em que os adultos dormiam na sala, sentados, com as cabeças jogadas para trás, bocas abertas. Ritual curioso e feio esse!

Eu comi rápido, como se isso apressasse os outros. Em dez minutos já tinha comido a carne, as batatas, um pouco do arroz-feijão, não tudo porque não gostava do tempero da avó, e a salada de cebola crua com azeite e orégano que comíamos depois, como se fosse uma sobremesa. Já estava na frente da televisão, esperando os roncos dos adultos.

Demorou. Primeiro tinham de lavar louça, limpar o chão, guardar a comida que sobrou, sentar e falar um pouco sobre as notícias do rádio. Era muita coisa! e isso eu não conseguia acelerar. Sem prestar atenção a nada, assisti os jornais todos, o começo daquela reprise de novela que passa à tarde. Era engraçada, mas eu não ria, aflito. As idéias iam me escapar. Ficava repetindo-as na minha cabeça, elaborando-as, para não esquecer. Nessas horas, e agora também, queria ter uma secretária para ir anotando tudo o que penso e me deixar só com o trabalho intelectual.

Sentei-me na escrivaninha, em frente à televisão. Nossa televisão, preto-e-branco ainda, ficava no meu quarto, nos fundos, junto à copa, longe da sala. A janela estava quase fechada, dia escuro de chuva. Eu deixava assim para não entrar água pelas frestas. A claridade vinha da porta que dava para a copa. Balançava as pernas ansioso.

Me pareceu demorar até parar o barulho na cozinha, depois as vozes na sala. Fui pegar um copo de chá na geladeira pra xeretar se estavam todos dormindo. Estavam. Abortei o chá. A geladeira, antiga, tinha uma maçaneta de trinco, dessas de câmara frigorífica, muito barulhenta. Acordaria alguém. Voltei pro meu quarto.

Não podia encostar a porta. Em casa, só se fechava porta pra trocar de roupa. Chamaria atenção se alguém acordasse. E também, a porta fechada abafaria barulho de passos se viesse um xereta. De resto, eu estava seguro, ou quase. Conhecia o ritual, o primeiro que acordasse, iria direto ao banheiro. O banheiro ficava entre a cozinha e meu quarto, o barulho da porta seria o alarme. Mesmo assim, eu não queria ser pego, se alguém se comportasse fora do roteiro, e me pegasse em flagrante.

Procurei não fazer barulho nenhum, para poder escutar o silêncio da casa. Baixei o volume da televisão, deixei só o suficiente para, do corredor, saberem que ela estava ligada. Peguei a cadeira de madeira fina, velha mas firme, pintada de azul, que meu tio fez para se distrair num domingo à tarde, e a coloquei ao lado do guarda-roupa, entre ele e a mesa da televisão. Mesmo assim, nunca fui alto, ficava difícil de alcançar. Subi descalço, na cadeira e na ponta dos pés. Alcancei só o friso da borda do alto do guarda-roupas. Segurei-me nele com os dedos e, flexionando os braços, puxei meu corpo para cima. Eu era muito magro e tinha os braços, particularmente o direito, fortes. Deu caimbra, mas consegui tirar por um tempo a mão esquerda do friso e alcançar a pasta que eu guardava em cima do guarda-roupas.

Na descida, a mão escapou. Caí de volta na cadeira. Descalço, não fiz barulho, mas ela se inclinou e bateu no chão. Isso sim fez barulho, como os tamancos de minha avó. Escondi a pasta debaixo do travesseiro e fui à cozinha, xeretar, da porta da sala, se dormiam ainda. Dormiam sim.

Voltei ao quarto. Peguei a pasta, abri-a. De dentro tirei as folhas de caderno escritas. Coloquei-as dentro de meu caderno, cujas folhas restantes estavam todas em branco ainda, a pasta por baixo, como mesa. Sentei-me sobe a escrivaninha, de frente para a porta, costas na grade da janela, meus textos no colo. Quem chegasse na porta, me veria escrevendo, pensaria ser lição da escola. Não teria como xeretar sem chegar perto.

Me abaixei um pouco para abrir a gaveta. Peguei um lápis e tornei a fechá-la. Eu sempre escrevi devagar. Tinha de me apressar. Em pouco mais de uma hora, alguém já acordaria. E eu tinha muitas idéias para escrever antes de esconder a pasta de novo.

Osgas

Tem gente que as chama de lagartixas, mas elas não são. As lagartixas são calangos, verdes ou cinzas, cascudos, grandes, que obviamente não conseguem subir uma parede. Imagine um calango, uma lagartixa, tentando subir a parede de azulejos do banheiro, toda molhada, durante seu banho. Osgas sobem.

Osga

Elas são claras, às vezes, de tão claras, translúcidas, que se lhes vêem as vísceras. Uma pele nojenta, não tenho coragem de tocar, mas tenho certeza de que é fina, macia, gelada, nojenta. Comem moscas e larvas. Vivem onde há gosma. As moscas comem e fazem o ninho na gosma. A osga vai atrás do ninho da mosca.

Um lugar onde elas gostam de viver é a pocilga. Principalmente quando a gente alimenta os bichos com comida de verdade, não ração, e com papa. Era o caso dos porcos de meus avós. A avó juntava os restos da cozinha: cascas de legumes e frutas, folhagem, toco de fruta, a sobra do arroz e do feijão, fazia um sopão e engrossava com farinha de milho. Lavagem é o nome. Tem gente que acha que lavagem é dar banho no carro no fim-de-semana. Isso é banho. Lavagem é comida de porco. A gente jogava a gororoba no coxo e o bicho vinha feliz. Depois não dava para brincar perto dali, com o bafo dele.

Coitado do Dondom, o cachorro da avó, um cachorro grandão, parecido com o Scooby-Doo e o Marmaduke. A casinha do Dondom repartia o teto com a do porco. A pocilga dos meus avós era um coberto dividido em quatro aposentos de mais ou menos uns dez metros quadrados cada, dois e pouco de altura, parede de treliça, todos com portas individuais para o quintal.

Dondom morava no mais próximo á área de serviço e à cozinha. Sua casa era a única que não tinha folha na porta, ele entrava e saia quando queria.

Atrás da dele, escondido pelas árvores e plantas, pra não chamar a atenção de quem passasse na rua, ficava a do porco. Cada ano era um porco diferente. A avó criava para comermos na Páscoa. A casa do porco não tinha folha na porta porque não tinha porta. Meu pai fechava com tábuas pregadas. O porco entrava ali quando era pregado e só saia para o abate. Isso foi necessário quando um porco grande, mais de cem quilos, conseguiu subir a porta, ou a subiram para ele, e tentou atacar a avó na cozinha. Porco é bicho feroz. Quem anda no mato sabe que é o bicho mais perigoso de se encontrar a solta. Atacam é atrancam pedaços, comem até os ossos. Naquele dia, a casa estava cheia de crianças. A avó conseguiu fugir e trancar o porco na cozinha e buscar meu pai e os irmãos para pegar o bicho. O medo de que acontecesse de novo fez meu pai abolir a porta e transformar o chiqueiro em calabouço. Mas ficou o aviso: nunca ponham a mão na treliça. Porco morde sem dó e arranca pedaço.

Wild BoarAo lado da do porco, também coberta pelo mato, mas com porta. Uma porta enorme para o que guardava. Era a casa dos porquinhos-da-índia. Eram menores que a treliça, não sei como não fugiam, disciplinados. Nem sei como os gatos da avó, ela tinha quase cinqüenta, não os comiam. Talvez comessem. Aqueles bichinhos dai cria a cada vinte dias. Nascem mais de dois punhados de cada vez. A casinha deles parecia vazia. Chão coberto de folhas grandes, eles ficavam amontoadinhos num canto, ou no meio. Tinha de prestar atenção para encontrar, não faziam espaço. O tio conseguia comer um por dia e, ainda assim, eles nunca acabavam, tantos nasciam.

O quarto alojamento, na frente, ao lado do Dondom, não tinha a parede da frente. Meu avô usava para guardar madeiras. Não sei de onde ele tinha tanta madeira. Ficavam aí e mais noutro coberto grande, do outro lado do quintal, maior que meu apartamento. Esses depósitos de madeira serviam bem para a hora de brincar de esconder. As tábuas ficavam deitadas. A gente entrava nos vãos entre elas e ficava mocozado, esperando a hora de correr pro pique. Havia-se de tomar cuidado com aranhas. Podia ter cobras e escorpiões também, mas nunca vi. Aranhas sim aos montes, de todos os tipos.

Foi numa dessas brincadeiras de esconder que meu irmão, mal perdedor, me jogou uma tora maior que meu braço, para me atrapalhar alcançar o pique, e abriu minha cabeça. Eu atravessei a rua correndo, pra casa, carros freando em cima. Eu com o sangue escorrendo pela cara, não via nada. O pai, quando viu, quebrou uma garrafa de vidro de álcool, naquele tempo havia álcool em garrafa de vidro, mas talvez a garrafa fosse de pinga mesmo, e despejou tudo na minha cabeça. A mãe e eu quase desmaiamos, ela de susto, eu do álcool arder o machucado. Não podiam me levar para o pronto-socorro. Naquele tempo, isso daria Febem para meu irmão. Para estancar o sangue, minha mãe abriu a água do bidê – tínhamos bidê, isso era muito chique! – fechou o ralo e enfiou minha cabeça dentro. Machucava o pescoço, a cabeça, eu achava que ia me afogar.

Sangue

Meu irmão apareceu na porta do banheiro rindo de eu estar morrendo. A água gelada do bidê, a rebeldia com a brutalidade do tratamento, me deram força pra me erguer um pouco e xingá-lo com as piores palavras que eu conhecia: “Seu bobo!” Tomei um tapa da mãe: “Não fala palavrão que não foi assim que eu te criei!” O filho-da-mãe saiu rindo. Foi ver TV.

Ganhei vinagre no machucado e um monte de café na cabeça. Meu pai disse que eram para desinfetar e estancar o sangue. Acho que funcionaram, sobrevivi. A mãe enrolou então tudo, minha cabeça também, com um cueiro. Cueiro é uma fralda de pano grosso, coisa de português. Ficou parecido com os lenços que ela usava. Mas os lenços eram de linho ou seda, floridos. O cueiro era de algodão grosso, branco, duro de tantas vezes que o ferveram. Não me deixaram deitar: “Não, pancada na cabeça, se dormir, morre. E o sangue tem que escorrer pra baixo, pra não escapar pelo machucado.”

Ganhei ainda mais uma bronca: “O que é isso na tua roupa?” Parecia ovo. “A gente lava pra vocês sujarem?” Minha irmã apareceu para fazer o comentário que revoltou o estômago da mãe: “Eu vi quando a gente estava brincando e ele se escondeu. Ele deitou num canto entre as madeiras que estava cheio de ovos de osgas.”