Tínhamos duas coelheiras em casa. Uma grande, do tamanho de uma geladeira deitada, onde ficavam os coelhos de criação, entre meia é uma dúzia, que a avó fazia para o almoço do sábado, coelho cozido com batatas, e aproveitava as peles para fazer tapetes super macios. Na outra, menor, metade do tamanho, moravam Escovão e Fofura. Esses eram de estimação, os únicos mansos. Os outros se pudessem nos arrancavam os dedos. Escovão e Fofura não. Com eles, podíamos brincar.
Brincar com coelho é basicamente alimentá-los e fazer carinho nas costas. São bichos muito frágeis. Por qualquer coisa, uma cabeçada um no outro, uma patada da cadela, tombam. Gostávamos de dar-lhes verdura no colo.
Coelho não come cenoura. Rói para gastar os dentes, mas come só a rama. Gosta da rama da cenoura, de salsão, funcho. Comem outras verduras também, alface, couve-flor, repolho. Não bebem água. Não sei como, tiram da verdura a água que precisam. Se lha damos num potinho para que bebam, morrem com diarreia. Eram assim os coelhos de casa. Já me disseram que “meu coelho não é assim”. Eu não sei a diferença dos nossos para os dos outros, mas me lembro de que com os nossos era assim.
O pai só não nos deixava chegar perto da coelheira quando havia algum coelho doente. Além do perigo da raiva — mamíferos sempre correm esse risco, de pegar raiva por uma mordida de morcego, rato, ou desses gatos vagabundos que vivem de telhado em telhado, de quintal em quintal, — havia também uma doença específica de coelhos, que fazia nascer uma espécie de chifre entre a boca e o nariz. A gente não sabia explicar o que era. O pai só sabia que o coelho que pegasse isso morria e que, se demorasse pra separá-lo, outros pegavam. Foi dessa doença que o Escovão morreu, tinha já mais de dez anos, isso é bastante para um coelho. Quando ficou doente, o pai o separou numa coelheira menor, improvisada, deu os remédios que indicaram na avícola — as lojas que vendiam aves para abate eram o que existia na época, em vez de pet shops. Num domingo, acordamos para o café e a mãe disse que o escovão tinha morrido e o pai o tinha enterrado no quintal.
A coelheira tinha o chão com muitos vãos, parecido com um mata-burro fino e embaixo ficava uma caixa com terra. Era o jeito de colher o esterco dos coelhos, ele caía na caixa pelos vãos do piso, para usar na horta e nas roseiras da mãe, as da mãe eram rosas e vermelhas, diferentes das da avó que eram quase todas brancas ou amarelas. Quando o pai achava que devia, ele cobria um uma camada de restos de verduras e legumes e outra de terra. Ia formando assim uma espécie de lasanha de esterco que, quando precisava, passávamos com a pá para a horta e o jardim.
Do jardim, quem cuidava era a mãe. Tinha rosas e umas plantas com nomes que eu não sabia diferenciar. Algumas, de folhas vermelhas, eram venenosas. As outras, samambaia, rendas, comigo-ninguém-pode, eram só folhas verdes. Naquela época, eu não entendia como alguém podia gostar de uma planta que não tenha flores, que não tenha perfume nem colorido. Hoje entendo isso, às vezes. Me lembro de poucas vezes em que a vi mexendo nas plantas do jardim. Ela fazia isso só durante a semana, depois dos que iam pra escola saírem pra escola e antes dos outros acordarem para ver televisão.
A horta era das crianças. Na verdade, era como se fosse de meu irmão. Ele que escolhia o que plantar, as sementes, as mudas. Ele que procurava com o pai e os avós o jeito de fazer com cada planta. Gostava de plantar funcho, salsinha, cebolinha, cenoura, salsão, espinafre e coisas para chá, erva-doce, melissa, camomila, angélica, erva-cidreira, hortelã. O avô nos deu algumas ferramentas básicas, cavoca, tesoura, pá, enxada. O irmão orquestrava. Fazíamos os canteiros, semeávamos ou plantávamos, cobríamos, regávamos, depois fazíamos uma treliça de linha por cima, para as galinhas e pombas não ciscarem ali e, por fim, a parte que eu mais gostava, púnhamos na cabeceira uma plaquinha com o nome do que estava plantado ali.
A horta começou com um pedaço do quintal de mais ou menos um metro por um e meio. Eram três ou quatro canteiros compridos. Não me lembro o que tinha no começo, exceto pelo espinafre. Queríamos espinafre para comer igual ao Popeye. E comemos. Pegamos o espinafre que a mãe refogou igual couve, — ela nunca tinha feito espinafre, achou que fosse igual à couve — colocamos no copo e fingimos que era a lata de espinafre do Popeye. A brincadeira perdeu a graça logo que percebemos o gosto de verdura amarga. A mãe gostou, mas que comêssemos nos pratos e com talheres, chegava de copos.
Com o tempo, fomos aumentando o número de fileiras, uma ao lado da outra. Depois pegamos mais um pedaço para encompridá-las. Mas já nas continuações, plantamos coisas diferentes.
No domingo, quando a mãe disse que o Escovão havia morrido e o pai o tinha enterrado, pudemos de novo brincar no quintal perto das coelheiras. O pai vinha regando nossa horta, mas tínhamos mais umas mudas e sementes que queríamos plantar. Isso o pai deixava para nós, o negócio dele eram as criações, coelhos, galinhas, pombas e carpas.
Os nossos canteiros já estavam todos lotados. Precisávamos abrir um espaço novo. Não para o fundo do quintal, que lá ficavam as coisas do pai, era muita bagunça pra mexer. Tinha um pouco de espaço junto ente a horta e as roseiras. Dava para abrir um canteiro ali, mas precisava de um pouco de terra para subir o terreno, senão, a chuva ia estragar tudo.
Nós gostávamos de pegar terra dentro do galinheiro. Ela já vinha meio adubada e, no buraco que deixávamos, as galinhas depois se divertiam ciscando. Abrimos um dos galinheiros de baixo, os que tinham chão de terra, deixamos as galinhas fugirem e entramos para pegar areia. Elas correram fuzarqueiras, ciscar fora do galinheiro atrás de minhocas e porcarias diferentes. Pegamos a terra e voltamos.
Antes de plantar, a pior parte: conseguir tocar as galinhas pra dentro de novo. Elas ao menos estavam amontoadas no canto. O irmão foi buscar uns papelões de caixa para ajudar a cerca-lãs para dentro do galinheiro e eu, curioso, fui olhar o que faziam. Galinha é bicho nojento, adora atacar rato, barata, lagartixa. Mas elas então atacavam outra coisa. Encontraram terra remexida e ciscaram até fazer um buraco e encontrar o Escovão, que o pai tinha enterrado ali de manhã.
Eu tomei um susto com o coelho rígido, de olhos abertos, parecia de pelúcia. Com raiva das galinhas, corri no meio delas, chutando-as. Atropelei o irmão que chegava com o papelão e subi a escada pra casa, chorando.
Ele deve ter percebido o que aconteceu. Guardou as galinhas, plantou a horta, subiu pro banho e não me zoou, nem nunca comentou aquilo comigo.