Mickey

Mickey Ears

Hoje em dia, fala-se muito em bullying. Tudo é bullying, e tudo traumatiza as crianças. Mania das mães desta geração. Mas o que elas não percebem é que o pior bullying que as crianças sofrem vem das próprias mães.

Elas têm algumas manias que ninguém merece e que, tenho certeza, ainda serão catalogadas pela Anistia Internacional como barbaridades da história antiga, a nossa antigüidade. Socam comidas horríveis nas bocas dos filhos, falam com voz tate-bitate de retardadas, largam o filho no chiqueirinho na frente da televisão com aquela maldita galinha azul. E nem venhamos nós, pais, acharmos que fazemos melhor. Um dia, nossos filhos nos processarão.

Minha mãe tinha uma mania horrorosa: ela usava os filhos para brincar nas coisas de criança com eles. Palhaço, parquinho, loja distribuindo bexigas ou algodão-doce. Não interessava se os filhos queriam, ela queria e precisava do filho junto para participar. Pobre não se contenta em ser pobre. Não pode ver algo de graça que precisa entrar na fila, mesmo que o filho, irritado, diga que odeia algodão-doce e mais ainda o palhaço de cara de saco cheio que está distribuindo. O errado é o filho: “Ele tem medo do palhaço!” É o argumento mais clássico. Acham que o filho vai se ofender, subir em seus brios, e encarar a fila pra apertar a mão do palhaço, logo me lembro daquelas luvas imundas e fedidas (por que é que palhaço de periferia nunca lava a roupa?), minha cara de mamão cumprimentando com nojo, depois a frase óbvia: “Se não quer o algodão doce, dá pra mim.” E lá seguíamos o caminho, eu procurando onde lavar a mão, a mãe se deliciando com aqueles fiapos de açúcar no palito.

A minha maior diferença era com o Mickey. Aliás, com OS MICKEYS. Cansei de ser acusado de ter medo do Mickey. Riam de mim. Bastava passar por uma loja que tivesse na porta alguém com aquelas fantasias mal feitas e já começava a ladainha: “Vai lá. É o Mickey. Não seja bobão.” E era difícil o dia que não houvesse um desses pelo calçadão da António Agu, lá em Osasco. Eu simplesmente não queria chegar perto daquela coisa que tentava se passar pelo camondongo do gibi. Camundongo que, convenhamos, nunca me inspirou muita confiança, nunca se soube de que ele trabalhasse… vivia entrando e saindo da delegacia… e, mesmo assim, não passava os apuros de falta de grana, comuns a seus amigos Pateta, Donald e Zé Carioca… Sujeitinho suspeito esse tal de Mickey!… O que, no entanto, não me impedia de ler seus gibis. Que o diga Seu Vilaça, dono da banca de gibis de segunda mão na Praça Duque de Caxias, mais conhecida por “Jardim”, entre a Catedral (então Matriz) e o Hospital das Damas.

Seu Vilaça não tinha culpa pelos farsantes que pensavam estar fantasiados de Mickey no calçadão. Talvez tivesse culpa apenas por eu conhecer muito bem o original e não ser tão facilmente enganado quanto as outras crianças.

Teve um Mickey que eu me lembro muito bem, sempre me lembro, era igualzinho a todos os outros. E eu não queria chegar perto dele. Em primeiro lugar, porque não era o verdadeiro. Nem parecia. Era alguém, vai saber quem, com uma fantasia de pelúcia, ridícula, e encardida, que mais parecia de lagartixa. Mas reconheciam-se aquelas orelhas redondas, são um verdadeiro logo. Era mais rato do que o camondongo do gibi: sujo, fedido e nojento. Essas fantasias são sempre assim. Imagino que fiquem guardadas todas no mesmo depósito imundo esperando o dia da promoção da loja.

Me admira que, se o sujeito não estivesse com aquelas orelhinhas de pretas redondas, ninguém, tenho certeza, nenhuma mãe o deixaria chegar perto de uma criança. Mas, vestido assim, empurram os filhos para eles: “Como você é bobo! Vai lá! Está com medo. Ele não vai fazer nada. Você vai ganhar pirulito.”

Meu irmão é mais novo do que eu. Na época, era bem pequeno. Ainda concordava com tudo que a mãe dissesse. Ele foi. A mãe parou de insistir comigo, feliz por já um dos filhos ter concordado. Tinha então a desculpa para ela também ir brincar com o rato. O caçula foi reto atrás da mão que distribuía os doces. Ela não. Quis conversar, abraçar, brincar com as orelhas, perguntou pela Margarida. “Minnie”, corrigiram-lhe a indiscreção. Quem corrigiu não foi o fantasiado. Esse não fala como o original, da televisão e dos quadrinhos. Só acena. Sorte ainda não terem inventado celulares com câmera digital. Ela passaria meia-hora tirando Mickey Mouse Selfies.

Voltaram. Eu já enfastiado de esperar. Não sei se ela estava satisfeita. Acho que só voltou porque não achou correto deixar sozinho o filho sem-graça que não quis brincar com o rato. Mickey não era rato, era um camundongo. São animais diferentes, não se cruzam. Aquele ali sim, era um rato.

O irmão trouxe na mão dois pirulitos, o dele e um que a mãe o fez pedir em meu nome: “Para o envergonhado ali.”

Eu disse para a mãe guardar, ou pegar para ela. Não quis nem o pirulito. Eu preferia o cachorro-quente que ia ganhar na volta pra casa da avó, acompanhado por um gibi.

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