Rádio

Eu, quando era pequeno, morava num bairro de periferia muito violento. Meus pais ainda moram lá, e as coisas não mudaram muito. Minha avó morava na cidade, perto do centro, num dos melhores bairros, perto das melhores escolas estaduais. Por isso, meus irmãos e eu sempre estudamos em escolas na cidade. Dávamos o endereço da avó.

O pai era motorista de ônibus. Saia cedo de casa, cinco e meia da madrugada. No caminho, nos deixava na avó e ia para a garagem. Na avó tomávamos Toddy e pão com manteiga, esperando a hora de ir para a escola.

Eu só peguei por pouco mais de dois anos essa fase de acordar muito cedo. Depois de se aposentar, quando eu estava na terceira série, o pai nos acordava mais tarde, seis e meia.

Quando ainda não tinha idade para escola, às vezes, acontecia de o meu sono espalhar, ou por causa do barulho dos irmãos, ou por eu me deitar muito cedo mesmo. A mãe mandava todo mundo pra cama às oito. Quando acontecia, nem precisavam convidar, ia pra cozinha, esfregando os olhos de sono, ajudava o pai a encher sua xícara de café, com um pouquinho de pinga às vezes, pra acordar. E esperava os irmãos voltarem trocados. Ia de carona, de pijama mesmo, pra casa da avó. A mãe agradecia, tinha o caçula ainda nenê para cuidar.

Tirava o pijama lá. A avó ajudava a mãe com as roupas pra lavar e sempre desviava umas peças para eu usar nessas visitas. O avô, quando acordava para dar bom dia aos meus irmãos e me via, vinha todo orgulhoso: “Meu cenourinha! Veio ouvir rádio comigo.” O apelido de cenourinha era uma piada por causa de um macacão horroroso, entre laranja e ferrugem, que eu, quando era nenê usei numa sessão de fotos que a mãe tirou no jardim deles. Já o lance de ouvir rádio… estar com o avô era o mesmo que ouvir rádio com o avô.

Um dos primeiros funcionários da Phillips no Brasil. Quando começaram a fabricar rádios aqui, ele ganhou um. Orgulhoso, se apaixonou. Quando lançaram a televisão, também ganhou uma. Número de série 00004. Recebeu numa festa junto com o prefeito, o governador e o presidente. Ela durou anos, de madeira sólida e válvulas. Eu a conservei funcionando em meu quarto até à época da faculdade. A televisão, meu avô só ligava para o futebol, o jornal e o programa da Inesita Barroso. Rádio, era o dia todo. Tinha três, todos Phillips. Aliás, se comprássemos algo, sua primeira pergunta sempre era: “Comprou Phillips, né?”

Logo que acordava, pegava do criado mudo o pequeno, do tamanho do maço de cigarros. Esses modelos eram chamados de radinhos de pilha. Vinha do quarto para a cozinha com ele ligado perto do ouvido, escutando o fim do programa do Zé Bettio. Passava pela cozinha cumprimentando todos e ia para o banheiro. Saía com o rádio no ouvido, na mesma posição, a avó brincava que ele não tirava o rádio do ouvido nem no banheiro: “Assim, acaba se atrapalhando e molhando as calças.” Tomava o café com uma mão, o rádio na outra. Escutava o rádio e as conversas da mesa ao mesmo tempo.

Depois do café, ia cuidar dos passarinhos. No quartinho onde eles dormiam, tinha outro, mesma marca, portátil também, mas do tamanho de uma resma de sulfite, esse era de pilhas grandes. Cuidava dos passarinhos ouvindo o Gil Gomes. Minha avó brigava para não irmos lá escutar também, não era programa bom para criança.

Quando terminava, era hora de relaxar. O rádio grande, de ligar na tomada, presente da empresa, ficava na varanda de treliça, entre o tanque e o banheiro, ao lado da cadeira azul onde ele fumava pela manhã. Eu me sentava entre os dois, com meus lápis e cadernos e desenhava para ele. O avô conseguia fumar quase dois maços de Hollywood numa manhã. Ouvíamos os programas do Roberto Carlos, do Sílvio Santos, o jornal da Jovem Pan, o noticiário esportivo, as notícias do São Paulo. Era são-paulino, tadinho, faleceu tentando converter o neto a essa religião que ajudou a fundar. Não conseguiu, o orgulho do sangue português falou mais alto ao neto brasileiro do que a ele que era português.

Desligava o rádio só para o almoço, quando meus irmãos voltavam da escola. Depois do almoço, o pai passava para nós buscar e ele ia para a sala com a avó namorar e dormir um pouquinho.

Meu avô faleceu numa quarta-feira, reclamando de não poder fumar nem ouvir rádio no hospital. Eu tinha onze anos. Era o primeiro dia de aula depois das férias de julho. Minha avó pediu para eu passar o fim-de-semana seguinte fazendo-lhe companhia. Na verdade, só me devolveu a meus pais dez anos depois, quando ela também faleceu.

No domingo, quando já escurecia. Ela entrou no meu quarto com o radinho de pilha de meu avô ligado. Tinha acabado a final do campeonato paulista. O São Paulo ganhou. “Teu avô ia ficar tão feliz! Por quatro dias ele não ouviu a final… Ele me pediu pra te dar o radinho quando ele morresse.”

A antiga televisão de válvulas do meu quarto não aquentava ficar ligada mais do que duas horas por dia. Precisava de um aparelho que a gente chamava de reloginho, uma espécie de transformador ou estabilizador. O rádio, transistorizado, não. Meu avô há de ter perdoado, talvez não, seu radinho nunca mais sintonizou jogos do São Paulo, exceto quando fossem contra a Portuguesa. Foi nele que ouvi os gols de Denner, que me acostumei a ouvir o jornal ao acordar e os programas de música de sábado à noite.

A programação mudou bastante, desde então. Já se vão quase trinta anos desde que meu avô morreu. Mas eu me lembro dele sempre que ouço aquele chiado característico de quando mexemos na sintonia do AM.

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