Tem gente que as chama de lagartixas, mas elas não são. As lagartixas são calangos, verdes ou cinzas, cascudos, grandes, que obviamente não conseguem subir uma parede. Imagine um calango, uma lagartixa, tentando subir a parede de azulejos do banheiro, toda molhada, durante seu banho. Osgas sobem.
Elas são claras, às vezes, de tão claras, translúcidas, que se lhes vêem as vísceras. Uma pele nojenta, não tenho coragem de tocar, mas tenho certeza de que é fina, macia, gelada, nojenta. Comem moscas e larvas. Vivem onde há gosma. As moscas comem e fazem o ninho na gosma. A osga vai atrás do ninho da mosca.
Um lugar onde elas gostam de viver é a pocilga. Principalmente quando a gente alimenta os bichos com comida de verdade, não ração, e com papa. Era o caso dos porcos de meus avós. A avó juntava os restos da cozinha: cascas de legumes e frutas, folhagem, toco de fruta, a sobra do arroz e do feijão, fazia um sopão e engrossava com farinha de milho. Lavagem é o nome. Tem gente que acha que lavagem é dar banho no carro no fim-de-semana. Isso é banho. Lavagem é comida de porco. A gente jogava a gororoba no coxo e o bicho vinha feliz. Depois não dava para brincar perto dali, com o bafo dele.
Coitado do Dondom, o cachorro da avó, um cachorro grandão, parecido com o Scooby-Doo e o Marmaduke. A casinha do Dondom repartia o teto com a do porco. A pocilga dos meus avós era um coberto dividido em quatro aposentos de mais ou menos uns dez metros quadrados cada, dois e pouco de altura, parede de treliça, todos com portas individuais para o quintal.
Dondom morava no mais próximo á área de serviço e à cozinha. Sua casa era a única que não tinha folha na porta, ele entrava e saia quando queria.
Atrás da dele, escondido pelas árvores e plantas, pra não chamar a atenção de quem passasse na rua, ficava a do porco. Cada ano era um porco diferente. A avó criava para comermos na Páscoa. A casa do porco não tinha folha na porta porque não tinha porta. Meu pai fechava com tábuas pregadas. O porco entrava ali quando era pregado e só saia para o abate. Isso foi necessário quando um porco grande, mais de cem quilos, conseguiu subir a porta, ou a subiram para ele, e tentou atacar a avó na cozinha. Porco é bicho feroz. Quem anda no mato sabe que é o bicho mais perigoso de se encontrar a solta. Atacam é atrancam pedaços, comem até os ossos. Naquele dia, a casa estava cheia de crianças. A avó conseguiu fugir e trancar o porco na cozinha e buscar meu pai e os irmãos para pegar o bicho. O medo de que acontecesse de novo fez meu pai abolir a porta e transformar o chiqueiro em calabouço. Mas ficou o aviso: nunca ponham a mão na treliça. Porco morde sem dó e arranca pedaço.
Ao lado da do porco, também coberta pelo mato, mas com porta. Uma porta enorme para o que guardava. Era a casa dos porquinhos-da-índia. Eram menores que a treliça, não sei como não fugiam, disciplinados. Nem sei como os gatos da avó, ela tinha quase cinqüenta, não os comiam. Talvez comessem. Aqueles bichinhos dai cria a cada vinte dias. Nascem mais de dois punhados de cada vez. A casinha deles parecia vazia. Chão coberto de folhas grandes, eles ficavam amontoadinhos num canto, ou no meio. Tinha de prestar atenção para encontrar, não faziam espaço. O tio conseguia comer um por dia e, ainda assim, eles nunca acabavam, tantos nasciam.
O quarto alojamento, na frente, ao lado do Dondom, não tinha a parede da frente. Meu avô usava para guardar madeiras. Não sei de onde ele tinha tanta madeira. Ficavam aí e mais noutro coberto grande, do outro lado do quintal, maior que meu apartamento. Esses depósitos de madeira serviam bem para a hora de brincar de esconder. As tábuas ficavam deitadas. A gente entrava nos vãos entre elas e ficava mocozado, esperando a hora de correr pro pique. Havia-se de tomar cuidado com aranhas. Podia ter cobras e escorpiões também, mas nunca vi. Aranhas sim aos montes, de todos os tipos.
Foi numa dessas brincadeiras de esconder que meu irmão, mal perdedor, me jogou uma tora maior que meu braço, para me atrapalhar alcançar o pique, e abriu minha cabeça. Eu atravessei a rua correndo, pra casa, carros freando em cima. Eu com o sangue escorrendo pela cara, não via nada. O pai, quando viu, quebrou uma garrafa de vidro de álcool, naquele tempo havia álcool em garrafa de vidro, mas talvez a garrafa fosse de pinga mesmo, e despejou tudo na minha cabeça. A mãe e eu quase desmaiamos, ela de susto, eu do álcool arder o machucado. Não podiam me levar para o pronto-socorro. Naquele tempo, isso daria Febem para meu irmão. Para estancar o sangue, minha mãe abriu a água do bidê – tínhamos bidê, isso era muito chique! – fechou o ralo e enfiou minha cabeça dentro. Machucava o pescoço, a cabeça, eu achava que ia me afogar.
Meu irmão apareceu na porta do banheiro rindo de eu estar morrendo. A água gelada do bidê, a rebeldia com a brutalidade do tratamento, me deram força pra me erguer um pouco e xingá-lo com as piores palavras que eu conhecia: “Seu bobo!” Tomei um tapa da mãe: “Não fala palavrão que não foi assim que eu te criei!” O filho-da-mãe saiu rindo. Foi ver TV.
Ganhei vinagre no machucado e um monte de café na cabeça. Meu pai disse que eram para desinfetar e estancar o sangue. Acho que funcionaram, sobrevivi. A mãe enrolou então tudo, minha cabeça também, com um cueiro. Cueiro é uma fralda de pano grosso, coisa de português. Ficou parecido com os lenços que ela usava. Mas os lenços eram de linho ou seda, floridos. O cueiro era de algodão grosso, branco, duro de tantas vezes que o ferveram. Não me deixaram deitar: “Não, pancada na cabeça, se dormir, morre. E o sangue tem que escorrer pra baixo, pra não escapar pelo machucado.”
Ganhei ainda mais uma bronca: “O que é isso na tua roupa?” Parecia ovo. “A gente lava pra vocês sujarem?” Minha irmã apareceu para fazer o comentário que revoltou o estômago da mãe: “Eu vi quando a gente estava brincando e ele se escondeu. Ele deitou num canto entre as madeiras que estava cheio de ovos de osgas.”
Eu fui pesquisar sobre osgas e encontrei esse texto, achei que iria falar só sobre elas mas não kkkkkkkkk, eu ri muito kkkkkkkkkkkk…
CurtirCurtir
Não foi só você… kkkk
CurtirCurtir