Pasta

Thank G-d it’s not that simple in My Secret Life.
— Leonard Cohen, In My Secret Life

Pasta

Eu almocei impaciente. Não via a hora da soneca. Não da minha. O pessoal tinha que tirar logo o cochilo de depois do almoço para eu fazer minhas coisas em paz. Eu tinha muito o que fazer. Estava entusiasmado mas, se não quisesse esperar até a noite, tinha de aproveitar aquela hora e meia em que os adultos dormiam na sala, sentados, com as cabeças jogadas para trás, bocas abertas. Ritual curioso e feio esse!

Eu comi rápido, como se isso apressasse os outros. Em dez minutos já tinha comido a carne, as batatas, um pouco do arroz-feijão, não tudo porque não gostava do tempero da avó, e a salada de cebola crua com azeite e orégano que comíamos depois, como se fosse uma sobremesa. Já estava na frente da televisão, esperando os roncos dos adultos.

Demorou. Primeiro tinham de lavar louça, limpar o chão, guardar a comida que sobrou, sentar e falar um pouco sobre as notícias do rádio. Era muita coisa! e isso eu não conseguia acelerar. Sem prestar atenção a nada, assisti os jornais todos, o começo daquela reprise de novela que passa à tarde. Era engraçada, mas eu não ria, aflito. As idéias iam me escapar. Ficava repetindo-as na minha cabeça, elaborando-as, para não esquecer. Nessas horas, e agora também, queria ter uma secretária para ir anotando tudo o que penso e me deixar só com o trabalho intelectual.

Sentei-me na escrivaninha, em frente à televisão. Nossa televisão, preto-e-branco ainda, ficava no meu quarto, nos fundos, junto à copa, longe da sala. A janela estava quase fechada, dia escuro de chuva. Eu deixava assim para não entrar água pelas frestas. A claridade vinha da porta que dava para a copa. Balançava as pernas ansioso.

Me pareceu demorar até parar o barulho na cozinha, depois as vozes na sala. Fui pegar um copo de chá na geladeira pra xeretar se estavam todos dormindo. Estavam. Abortei o chá. A geladeira, antiga, tinha uma maçaneta de trinco, dessas de câmara frigorífica, muito barulhenta. Acordaria alguém. Voltei pro meu quarto.

Não podia encostar a porta. Em casa, só se fechava porta pra trocar de roupa. Chamaria atenção se alguém acordasse. E também, a porta fechada abafaria barulho de passos se viesse um xereta. De resto, eu estava seguro, ou quase. Conhecia o ritual, o primeiro que acordasse, iria direto ao banheiro. O banheiro ficava entre a cozinha e meu quarto, o barulho da porta seria o alarme. Mesmo assim, eu não queria ser pego, se alguém se comportasse fora do roteiro, e me pegasse em flagrante.

Procurei não fazer barulho nenhum, para poder escutar o silêncio da casa. Baixei o volume da televisão, deixei só o suficiente para, do corredor, saberem que ela estava ligada. Peguei a cadeira de madeira fina, velha mas firme, pintada de azul, que meu tio fez para se distrair num domingo à tarde, e a coloquei ao lado do guarda-roupa, entre ele e a mesa da televisão. Mesmo assim, nunca fui alto, ficava difícil de alcançar. Subi descalço, na cadeira e na ponta dos pés. Alcancei só o friso da borda do alto do guarda-roupas. Segurei-me nele com os dedos e, flexionando os braços, puxei meu corpo para cima. Eu era muito magro e tinha os braços, particularmente o direito, fortes. Deu caimbra, mas consegui tirar por um tempo a mão esquerda do friso e alcançar a pasta que eu guardava em cima do guarda-roupas.

Na descida, a mão escapou. Caí de volta na cadeira. Descalço, não fiz barulho, mas ela se inclinou e bateu no chão. Isso sim fez barulho, como os tamancos de minha avó. Escondi a pasta debaixo do travesseiro e fui à cozinha, xeretar, da porta da sala, se dormiam ainda. Dormiam sim.

Voltei ao quarto. Peguei a pasta, abri-a. De dentro tirei as folhas de caderno escritas. Coloquei-as dentro de meu caderno, cujas folhas restantes estavam todas em branco ainda, a pasta por baixo, como mesa. Sentei-me sobe a escrivaninha, de frente para a porta, costas na grade da janela, meus textos no colo. Quem chegasse na porta, me veria escrevendo, pensaria ser lição da escola. Não teria como xeretar sem chegar perto.

Me abaixei um pouco para abrir a gaveta. Peguei um lápis e tornei a fechá-la. Eu sempre escrevi devagar. Tinha de me apressar. Em pouco mais de uma hora, alguém já acordaria. E eu tinha muitas idéias para escrever antes de esconder a pasta de novo.

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