Aziago II: De volta ao café

De volta ao café, hoje dormi quase a tarde toda. Manhã de merda, péssimas notícias. À noite, foi feio fazer isso, eu sei, mas eu queria ficar sozinho. Fiquei. Sozinho entre estranhos, ali no terraço do café. Preciso escrever.

Por coincidência, não existem coincidências, sentei-me na mesma cadeira de ontem. Era a única disponível. Mesmo chá, mesmo charuto. Dois charutos no mesmo fim-de-semana. Não pode. Este fim-de-semana pode. Só este, eu juro. Juro pra ninguém, talvez pra mim. Levanto a cabeça, a mesma lua. Crescente, um pouco maior que ontem. Mais dois dias talvez para estar cheia. O céu limpo e escuro também é o mesmo. Eu, sentado aqui, acho que também sou.

Estou cansado. Além de tudo, cansado. Não só por tudo, por ter dormido à tarde também. Dormir cansa, dá sono. Dormir fora de hora acaba com a gente.

Nunca bebi tão rápido meu chá. O grupo de amigos na mesa do fundo, os casais namorando, nunca os invejei tanto. Inveja da despreocupação, da alegria, da noite de sábado que promete. Está frio, nem sinto. O dedo que acho que quebrei na academia lateja. Tiro as botinas para dar-lhe mais folga. Pés grandes, botinas grandes. Mesmo assim, por vezes acho que deviam sr maiores. O charuto está meio esquecido, o chá acabou. Os dois casais do canto à minha direita já acabaram também, mas recomeçaram. Já estou aqui há quase uma hora e eles ainda não trocaram duas frases. Tenho vergonha de tanta inveja. Não quero olhar-lhes, merecem um sábado só deles. Levanto os olhos pra lua de novo e uma lágrima ameaça escorrer. Pego o charuto finalmente e dou uma baforada de encher a boca toda. Cuidado para não aspirar. Me atrapalho e aspiro um pouco. Incomoda, tusso fraco, discreto pra não chamar a atenção. Isso me deixa tonto. Pra me recompor e me distrair, levanto de novo o rosto para a lua. Encosto a cabeça atrás, no vidro que serve de parapeito ao terraço. Fecho os olhos e fico olhando a lua. De olhos fechados, quieto, enfadado de pensar.

Quando abro os olhos de novo, os dois casais já estão nos finalmentes. Não me incomodam. Aprendi a não me incomodar com isso. Os amigos tem sono,me continuam conversando e brincando, em câmera lenta. Os casais, alias, também estão em câmera lenta. Os finalmentes em câmera lenta são os melhores. Vou deixá-los em paz.

Arrumo minhas coisas, terminar o post fica para depois. Muito chá, preciso ir ao banheiro antes de sair. No banheiro, ao lado da privada, havia um desenho na parede. Um gato tomando café e fumando, cercado de estrelas e tetos de edifícios. Gato é bicho vagabundo! Que mal gosto desenhar em parede de banheiro! Lavo as mãos, saio secando-as nas calças. Não gosto desses aparelhos modernos que secam as mãos com vento.

Na saída só banheiro, devo ter demorado. O café já está fechado. Escuro, vazio. Fico encabulado de pensar nas caras dos funcionários, do segurança, quando eu descer para sair. Desço. Não tenho que me envergonhar das caras deles. Não há ninguém. A porta está trancada. Fiquei preso.

Forço a porta, abre-se uma fresta. Talvez eu passe, emagreci. Parece que a porta não foi feita para ser fechada. Isso não da segurança. Aliás, achei que o café não fechasse no sábado a noite. Passo o pé, o braço. La fora está muito frio. Ninguém na rua. O corpo não passa. Nem volta. Agora, além de preso, estou entalado. Que aflição!

Lembro-me de histórias de tentativas de fuga da cadeia perto de casa, quando era criança. Sempre havia a história do preso que ficou entalado no túnel. Não consigo imaginar um jeito pior de se morrer. Fico impaciente, começo a me bater. Acho que a porta vai quebrar, mas ela não vai.

Páro para descansar os músculos e os nervos. Não consigo me ajeitar numa posição melhor. Suspiro fundo, só piora as coisas. A porta comprime meu diafragma e acho que vou sufocar. Não agüento o peso da cabeça. Me desespero. Na calçada, há algo caído. Um pano vermelho. Ainda consigo ver o que é. É um sutiã, de renda, cor-de-vinho, bordado em preto. Uma das garotas, daqueles casais do canto, usava um assim. Eu tinha visto antes de sair. Ela deve tê-lo jogado pelo beiral.

Ainda tento me debater, desesperado. A porta não abre, nem quebra. E eu não desentalo. Sou um animal. Um animal de burro. Agora um animal preso em esparrela. Só posso chorar, mas nem isso consigo, o diafragma comprimido pela porta. Não respiro. Vou desmaiar. Desmaiar aqui, sem respirar, significa que morrerei.

Com o braço que está pra fora, tento forçar a maçaneta. Nem consigo levantá-lo para a alcançar. Falta força. Sinto a pressão cair, sei o que vai acontecer. A nuca dói, por pouco tempo. Gosto de sangue vem à minha boca e seu cheiro ao nariz. Logo fico leve mas não agüento mais o peso de minha cabeça. Ela tomba e pende pra fora da porta.

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