Aziago

Parecia que a vida estava dando a guinada que ele tanto queria. Aos poucos. A última semana e, em particular, os últimos dois dias tinham ido muito bem. Tinha uma confiança nova, insensata mesmo. Dormir voltava a ter gosto. Sonhar também. E sonhava, muito.

Dia de acordar mais tarde para o trabalho, e sair mais cedo. Evento do departamento. Tomou banho com calma. Tão difícil poder tomar banho com calma pela manhã. Aparou a barba. Lembrou-se dos comentários do colega sobe seu excesso de perfume. Exagerou mesmo assim. Tomou café na padaria. Sente-se como rei quando toma café na padaria.

A agenda do dia tem pouca coisa, mas o suficiente para lotar o expediente mais curto. Resolve os dois problemas que reservou, conhece gente nova. Adianta uns documentos para a próxima semana. Estranha a colega que ele não encoste quando precisa digitar algo em seu teclado. Estranha, mas não pensa muito nisso. Lembra-se que não a cumprimentou hoje com o seu tradicional beijo na testa. Os colegas tradicionais ele costuma apertar a mão, beijar o rosto das meninas, sem encostar o rosto nem o lábio na bochecha, como elas fazem. Mas os colegas estimados, os amigos ou quase, ele faz questão de abraçar e sorrir,mas garotas, beija a testa. É o mais velho da equipe, bem mais velho, permite-se tratá-los assim. Não se lembra porque pulou o beijo dela, mas já passou. Agora não seria mais um beijo de bom dia. Não almoçaram juntos.

No almoço, outro colega comentou que o namorado dela anda pegando no pé, ciumento. Por isso ela não vai ao evento. Pensou num filho da mãe que, ontem, olhou para os dois e deu risada sem motivo. Odeia fofoca, mais do que odeia esse filho da mãe. Sexta-feira é dia de peixe, a melhor comida que existe. Pediu muito mais do que consegue comer e desperdiçou a salada toda. Fingiu que foi porque o peixe quente a estragou.

Ficou feliz dos amigos colegas quererem parar para um café na volta. Sabia que alguns deles queriam fumar. Ele não, só fuma um charuto, de vez em quando, dois ou três por ano, em ocasiões especiais. Disse-lhes que fossem para as mesas de fora fumar, lhes levaria o café. Cumprimentou a menina bonita e quietinha que fica no caixa à tarde. Perguntou pela amiga morena, que sempre lhes faz o café. “Tua amiga não veio?” “Ela saiu ontem. Discutiu com o gerente… Eu faço o café, mas não da pra te dar atenção que estou trabalhando sozinha até contratarem mais alguém.”

Ele ficou triste, levou os cafés, que tomou com os amigos. Desta vez não participou da conversa, pensativo. Gostam desse horário do café para alinhar as atividades e trocarem informação sobre as especialidades de cada um.

Depois do café, foi ao banheiro. Não era sua vez de pagar. Na saída, deixou dois cartões de visitas com a menina do caixa. “Quando ela aparecer, diz pra falar comigo. Você também, quando puder.”

A tarde não foi mais a mesma, nem o caminho de volta. Pensou na terapia, que não teve essa semana, e na academia, que faltou na quarta-feira. Queria faltar hoje também. Pensou em como estava avoado e não prestaria atenção, atrapalharia os outros. Não, não atrapalharia, queria uma desculpa para não ir.

Chegando em casa, deitou-se na cama, abraçado ao travesseiro. Sempre abraça o travesseiro. Desta vez não quis ligar a música, nem sonhar. Não conseguia saber o que queria ouvir. Eram sete e meia ainda. Só tinha vontade de dormir e nem sabia se queria se levantar amanhã.

Lembrou-se de um amigo antigo que, nessas horas, o chamava para dividirem uma bebida e um charuto. Não podia beber pois estava dirigindo. Saiu, comprou um vinho, para depois, à noite, sozinho em casa, e um charuto. Passou em frente à vitrine de lingerie. Um modelo chamou-lhe a atenção por ser muito simples e, por isso mesmo, muito bonito. Outro, por ser extravagante demais, chegou a achá-lo ridículo mesmo. Lingerie lhe lembrou café da manhã, e ele se lembrou de ir.

Procurou uma cadeira ao ar livre no café, pediu seu chá. Sentou-se, acendeu o charuto! com dificuldade por causa do vento, mais gelado que seu chá. Dessa vez, o frio não o deixou mais triste. Levantou o rosto para a primeira baforada e, nisso, deu de cara com a lua, crescente, já mais da metade cheia, bem em cima de si. O céu completamente limpo. A bosta do charuto nunca lhe soube tão bem.

Percebeu que o melhor que fazia era ficar ali, quieto, sozinho com sua lua, parado. Abriu o caderno, pegou o lápis e ficou… pensando… e pensando em como contar como se sentia.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s