Olhar

Esta semana, tenho trabalhado à noite, cobrindo férias de um colega. Trabalhar à noite gera a ilusão dos dias livres. Logo dava impressão de que podemos por todos os assuntos atrasados em dia. Ilusão mesmo. Estou trabalhando das dez da noite às seis da manhã, em casa. Após o trabalho, levar as crianças para a escola, tomar café da manhã — é de manhã, oras, — já são nove horas e não dormi nada. Tento dormir, não estou acostumado a dormir de dia, consigo até umas duas ou três da tarde só. Acordo com fome, o estômago se lembra de que passou a hora do almoço e os olhos de que ainda é de dia. Como alguma coisa e já é hora de pegar as crianças na escola. Depois, fazer jantar, academia, banho e já é de novo hora de trabalhar. Acabo percebendo que só dá tempo de fazer o que sempre faço, mas em horários diferentes. Isso frustra. Ter o dia para si parece liberdade. Mas liberdade é poder fazer o que quiser, ou nada, ou dormir porque quer, sem precisar.

Liberdade é fazer o que se quer, mesmo que não seja nada diferente ou especial. É respirar o ar e provar o quão bem ele sabe.

Acordei segunda, terça e quarta-feira à mesma hora, depois do almoço. Peguei metrô. Comi sanduiche de pernil e tomei chá, gelado, escrevendo. Tão normal e sem graça como qualquer dia pode ser. Como se não tivesse de fazer diferente por, afinal de contas, serem sempre assim. Para completar, segunda e terça-feira, sentei-me, por coincidência, no mesmo lugar, no balcão alto de madeira que me serviu de mesa de merenda e também de escrivaninha. Quarta-feira e hoje, sentei-me numa mesa. Por coincidência na mesma mesa. Fico imaginando se amanhã e no sábado sentarei-me também duas vezes no mesmo lugar. Há um ditado que diz que algumas coisas só acontecem uma vez, mas nada só acontece duas. Essas coincidências devem ser assim. Esta do lugar deve ser e eu aguardarei, talvez com uma ajuda, que se repita uma terceira vez para não desmentir o ditado que desenterrei.

Nesta mesma mesa, ontem, sentei-me, não tenho certeza mas acho que na mesma cadeira ou noutra na mesma posição, de frente a uma mesa com quatro meninas. A mesa ainda está ali, na mesma posição. As cadeiras não todas. Cadeiras são leves por isso o pessoal toma a liberdade de mudá-las de posição, de uma mesa para a outra conforme a conveniência. Enquanto eu escrevia e tomava meu chá — mas, principalmente, escrevia — a menina mais próxima à minha mesa, sentada de lado para mim, quase encostada à minha mesa, me olhou. Essas olhadas normais de quem relaxa os músculos do pescoço e dos ombros, cansados de manterem a cabeça parada muito tempo na mesma posição, com um movimento diferente. Olhada de quem se cansaram os olhos de uma cor, um canvas, uma iluminação, e os relaxa, espreguiça-os, olhando se há alguma novidade no que está em volta. Olhar despretensioso, sem maior intenção, que teria passado em branco se não tivesse cruzado com o meu e eu notado a expressão de desprezo que eles sincronizaram, junto com a boca e o nariz. Parece que, para ela, eu, por algum motivo, não tinha direito de relaxar meus olhos e pescoço como ela se isso me levasse a vê-la. Coisa de mulher antipática, as que se acham bonitas costumam ser. Nisso não a culpo, por se achar bonita, era muito. Seu olhar de desprezo não me faz diferença, assim como sua beleza. Imagino pelo quê ela julga as pessoas com quem se relaciona.

As outras três, apenas olhavam para o centro da mesa. Não tinham o mesmo movimento periscópio de pescoço quando precisavam aliviar a tensão. Em vez, olhavam para  grupo, uma a outra, ainda conversando. Conversavam. Papo de meninas provavelmente. Aqueles burburinhos que não atrapalham, mas, às vezes, chamam a atenção por uma palavra ou sílaba pronunciada mais alto.

Foi assim que, após um pequeno silêncio na conversa, uma delas me surpreendeu dizendo alto algo sobre “…quando fulano e eu paramos de ficar…” O silêncio quebrado por algo assim, não é coisa que passe despercebida, mesmo para quem está de fora da conversa, só tentando escrever e beber chá. Isso por si já, quando eu tinha a idade delas, não era coisa que se dissesse em voz alta. Distraída então a minha atenção, fiquei curioso de ver a cara da dona da frase. Ela estava na posicao oposta à da loira que me desprezou, também de lado para mim. Outra delas, que estava de costas para mim, me encobria vê-la. Inclinei-me um pouco para a direita e vi seu corpo pequeno, vestido azul. Depois inclinei-me para a esquerda, e vi seu rosto. Não devia ter dezoito anos ainda. Admirei-me por um instante, mas depois, pensando bem, lembrei-me de que, quando era adolescente,mas conversas também iam por aí. A diferença é que não conversávamos sobre isso em voz alta num café lotado.

Olhei as outras meninas da mesa, mais comedidas, até mesmo a antipática, mais velhas também, ligeiramente. A loira devia ter uns 21. As outras duas por aí também. Talvez vinte. A que estava de costas para mim, via-se que era patricinha, como as duas anteriores, a loira e a da fala alta. A quarta, de frente para mim, era diferente. Pele mais morena, não usava roupas novas e de marca. Via-se que era diferente das outras. E falava pouco, em meio à falação da mesa. Uma morena bonita, sem produção. Parecia tímida. Olhava muito para a mesa e para a menina à sua frente, a que estava de costas para mim, não diretamente no rosto.

Falaram algo como “Vamos” e se levantaram as outras três. Achei que iam embora. A morena continuou sentada e falou algo, uma ou duas palavras só, para a loira antipática. As três foram para o caixa, ficou a morena guardando a mesa.

Ela tinha um papel que segurava com as duas mãos, estendidas sobre a mesa. Olhou-o e mexeu nele, primeiro esfregando com os dedos como se estivesse verificando se era uma única folha, depois enrolou-o feito cigarro. Quando consegui, desenrolou-o quase todo e olhou na minha direção. Não era aquele olhar de quem relaxa, espreguiça os olhos. Ela o fixava em algo, na minha direção, mas o olhar ia longe, passava por mim.

Eu, numa pausa entre duas frases que digitava, olhei-a. Um olhar não só fisioterapêutico, confesso que foi curioso também. Ela se incomodou, eu percebi. Seu corpo recuou um centímetro, ou até menos, foi um movimento imperceptível, mas que aconteceu, como se meu olhar, talvez inesperado, a tivesse empurrado. Ainda assim, o olhar dela permaneceu fixo. Isso me incomodava. Fiquei olhando-a como se jogássemos o isso. Nossos olhares se esgrimavam. O meu, fixo, desafiando o dela, insistente, que me incomodava. Foi complicado resistir à tentação de desviar, procurar algo ao fundo para olhar perdido como ele fazia. Era como se estivesse segurando dois imãs juntos com os polos equivalentes se tocando e se repelindo. A tensão me fazia mexer imperceptivelmente meu corpo, como ela já havia mexido o seu também havia pouco. Então, percebi que o dela não me atravessava. Percebi que ela não olhava algo atrás de mim é que eu não era apenas um obstáculo no meio do caminho. Era a mim que ela olhava. Mas meus olhos, no meio do caminho, não eram vistos por ela. Ela não olhava exatamente para mim, olhava para dentro de mim. Seu olhar atravessava minha retina, entrava por meus olhos e ia para algum lugar dentro de mim. Fez como eu já havia feito alguma vez antes, fingindo que olhava outra coisa para não denunciar o que olhava, não deixar os olhares se cruzarem mesmo quando os olhos se viam.

Eu, quando fiz isso, foi por timidez e covardia. Timidez que é apenas um nome diferente para covardia. Ela, eu não sei porque fazia, o que pensava. Acho que ela enxergava algo dentro de mim, por como me olhava. Eu não via nada além dela me olhando.

Eu não sabia como agir. Se deixava olhar, pedia para parar, dizia “oi”. Se pegava um cartão de visita, desenhava ou escrevia algo e lhe entregava. Tampouco sabia o que devia sentir, incômodo, vaidade, excitação, dúvida, desprezo? Desprezo como da amiga dela?

Olhei-a, sem mexer meus olhos que já a fitavam, e tive inveja de como seu olhar foi mais forte que o meu. Finalmente fugi, olhei para baixo. Tentei escrever, não consegui. Olhei-a. Ela ainda me olhava e percebia, acho eu que percebia, cada coisa que eu pensava, pois cada vez que eu pensava em algo, ela mexia um músculo do rosto, da bochecha, da pálpebra, do lábio. Sua expressão facial continuava reagindo, imperceptivelmente. Não sei se seus movimentos se sincronizavam com algum meu. Parecia estar começando o movimento para responder a algo que eu lhe dissesse. Um movimento varias vezes freado pois eu nunca cheguei a lhe falar algo. Apenas inisisti em tentar olhar-lhe também. Insistência várias vezes frustrada. Queria saber o que acontecia ou tentar me concentrar em escrever. 

Foram dois ou três minutos longos. Uma estranha, bonita sim, me olhando fixo, me esperando falar algo. E eu, se sabia da oportunidade que me diriam que eu não devia ter perdido, só pensava em outras vezes, em vezes em que quis que algo assim acontecesse e não aconteceu. Fiquei triste.

As amigas dela chegaram do balcão, com cafés e shakes. Chegaram, por coincidência, quando eu desisti e arrumava minha bolsa para ir embora.

Aquela morena não era a mais bonita, mas, no silêncio de seus olhos, tinha um poder enfeitiçante que eu ainda não entendi.

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