Boa Noite

A pequena pôs a cabeça no travesseiro e logo a levantou de novo: “Conta uma história?” Já fazia tempo que haviam perdido o costume de contar histórias antes do dormir. A mãe foi pega de surpresa: “História?” Perguntou pela surpresa. Não que tivesse dúvidas sobre se era mesmo de histórias que tratassem, ou de que tipo de histórias.

A menina também só respondeu para garantir: “É, mãe, uma história beeeeem bonita!” E vá lá a mãe encontrar uma história que seja bem bonita com um “bem” tão longo!

A mãe não tem saída, não quer discutir, está cansada, tem a cabeça cheia, mas a menina não tem nada a ver com isso, só quer que ela seja mãe e conte uma história, com sói às mães fazerem. Depois de assentir, dar um sermão, ajeitar a filha na cama, no cobertor, — a história, nessa hora vira moeda de troca para a filha ficar quieta, pronta para dormir, é parte do protocolo entre pais e filhos — a mãe finalmente começa a história. Não é situação para pensar muito. Falar com calma, puxar da memória, conseguir contar, já lhe custa bastante agora. A contração de história começa automática como também sói acontecer com as mães: “Era uma vez…”

Não if além disso. A menina interrompeu: “Por que toda história começa com «Era uma vez»? Tem alguma coisa que exista mais de uma vez? Acho que não. Se tiver eu não conheço. Não precisa falar que era uma vez isto ou aquilo, basta falar que era e pronto. Pra quê o «uma vez»?”

A tagarelice da menina lembrava as aulas de filosofia de que a mãe fugia no tempo do curso de Magistério. Era professora, estudou para isso. Não foi escolha própria. O pai, também professor, a matriculou no magistério quando era adolescente ainda, sem lhe pedir opinião. Era de se esperar que, preparada para dar aula para crianças, estivesse também preparada para lidar com a tagarelice da filha e sua busca por atenção na hora de dormir. Não estava. Mas também não perderia a paciência. A menina, que agora lhe dava trabalho, era uma de suas poucas, talvez uma das únicas, ou a única, fontes de alegria.

Não soube o que responder. Deu-lhe um beijo na bochecha e mandou-lhe ficar quieta para dormir, senão nada de história.

Vendo a menina quieta, tentou recomeçar a história mas foi interrompida de novo. Não por uma tagarelice, mas por uma dúvida pertinente quanto à qualidade do produto que fornecia: “Você já contou essa história antes?” Sim, já havia contado. E a menina, quando pequena, há uns seis meses atrás, já havia se cansado dessas histórias repetidas. Agora não poderia repeti-las de novo.

Mãe confusa. A menina pede: “Uma história nova… e com final feliz.”

A mãe fica sem palavras. O pedido da menina lhe acerta como um soco no fígado. Sem fôlego, se debruça sobre a filha, segura-lhe o braço e fica pensando em como prosseguir. Não há nenhuma nova história, bem bonita, com final feliz, para lhe contar.

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