Eu me lembro bem daquele dia, foi igual ao anterior, e talvez ao anterior também.
Eu saí do trabalho, umas seis e meia, sete horas. Saí sozinho. Não era desses dias bons para happy, devia ser uma quarta ou quinta-feira. Provavelmente quinta, porque eu estava sem a mochila grande da academia. Ela é grande, pesada. Só o quimono já deve pesar uns oito quilos. Mais a toalha e as tralhas de banho, e o peso da própria mochila, deve dar dez.
Do trabalho para casa eram três estações de metrô, mais trezentos metros de subida da rua. Não davam nem vinte minutos. Eu não queria chegar tão rápido. Queria companhia, conversar, fazer algo bom. No mínimo passear. A princípio, pareceu uma boa idéia passear. Tem mais duas estações ao longo da avenida, no sentido contrário ao de casa. Eu podia passear, olhar as lojas, o movimento, tomar café. Eu já tomava bastante café no trabalho, me acostumei quando trabalhava num projeto com muitos americanos e argentinos. Nos próximos dias, vou me acostumar a tomar café também em cafeterias de rua e no shopping, passando o tempo e olhando o movimento quando não estou no trabalho. Podia passear pela avenida para passar o tempo e, então, pegar o metrô mais para trás. Há outras duas estações na avenida. Uma terceira mais adiante, mas essa não quero. Me deixa triste, lembranças de outro tempo.
Eu começo a andar, na direção do metrô, como se fosse pegá-lo, mas continuo. Parece que todos na rua repararam que há algo de errado. Devo estar com uma cara estranha, andando de um jeito esquisito. Devo estar mesmo. Estou preocupado com que não reparem, devo estar nervoso fazendo algo de estranho para repararem.
Pensando bem, do trabalho pra casa é a mesma distância que até o final da avenida. Eu não fui na academia, estou descansado, preciso de exercício. É conveniente pensar isso. Em vez de andar pela avenida, posso andar para casa. O caminho não é tão legal. Pelo contrário, é bem feio! Tem um viaduto feio, os hospitais, a faculdade de medicina, três cemitérios grandes, outro viaduto. Depois, já no bairro, melhora, com as ruas bem arborizadas, a igreja de Nossa Senhora de Fátima.
Para não repararem na minha meia volta, entro numa galeria – era uma galeria de cinemas quando eu era mais novo, tenho saudades dessa época – saio pela outra porta – a que não havia no tempo dos cinemas – e volto andando na outra direção, pra casa. Passo a entrada do metrô. Alguém do trabalho vai me ver, vou ficar sem graça. Aperto o passo. Atravesso a rua, passo o prédio do trabalho. Minha colega está fumando na porta. Vejo de rabo de olho. Finjo que estou distraído e não a vi. Mas a vi. Aperto mais o passo para sair logo dali. Passo a igreja e vou para o final da avenida, para o viaduto.
Por ali, ninguém sabe que esse não é meu costume, meu caminho normal. Ninguém vai perguntar. Relaxo o passo, passo a passarela por baixo da outra avenida, para contornar o viaduto. Lembro que, para que isso sirva de exercício, tenho que apressar o passo, acelerar o coração. Esforço aeróbico, senão não adianta. E eu exatamente quero ir a pé para demorar, e para relaxar. Demorar e relaxar. Gastar um tempo andando, pensando em mim e na vida, em vez de gastá-lo em casa, sozinho.
Olho a hora no telefone. Das próximas vezes, ia anotar quanto tempo levava e projetar metas. Apresso o passo até uma marcha. Espero não rebolar como aqueles cara que fazem marcha atlética. Nem preciso ir tão rápido como eles. Cuido para não mexer muito os braços, não ser espalhafatoso. Mas ali ninguém me conhece.
O caminho é feio mesmo. Uns bares que eu não conheço, as lanchonetes e hospitais, os cemitérios, o segundo viaduto, por cima da avenida. O caminho só serve mesmo pra se andar e pensar. E andando rápido não dá para pensar em nada calmo. Só em besteira. E, isso é curioso, descubro que pensar besteira dá raiva e que raiva dá pressa. Com essa pressa a mais, aperto mais o passo, e isso acaba relaxando. O esforço desvia a atenção e ajuda a espeirecer. São quase três quilômetros assim.
Depois do viaduto, chego no bairro. Já o bairro é bonito. Casas chiques, antigas, ruas muito bem arborizadas. Logo no começo, está a igreja. Nossa Senhora de Fátima. Igreja de portugueses. Há muitos portugueses por aqui. Dá-me vontade de entrar. E não vejo por que não. Atravesso a rua. A porta da frente está fechada. Dou a volta, a do lado também está. A capela está aberta, nunca fecha. É pequena, paredes de vidro, tem alguns bancos, cabem umas doze pessoas, a imagem, grande, e a garrafa de água benta.
Benzo-me, sento, rezo. Peço muito muitas coisas. Não sei se pedi as coisas certas. Tenho certeza de que todos meus pedidos foram atendidos. Mas eles não resolveram. Talvez isso também eu não saiba fazer, pedir. Com Nossa Senhora de Fátima também tenho que aprender a conversar direito. Com ela também.
Rezei uns quinze minutos. Depois continuei pra casa. Mais uns quinhentos, oitocentos metros, mais ou menos. Até aqui, o caminho foi plano, agora é uma pequena descida. Eu moro no começo da descida, na ponta do espigão. É a parte fácil. Depois de ter parado na igreja, já não tenho mais o passo apressado. Parece que não adianta mais para o exercício. Ando mais devagar para demorar um pouco mais a chegar em casa.
Na porta do prédio, lembro-me de olhar a hora. Cinqüenta e cinco minutos. No elevador, faço a conta. Tirando uns quinze da igreja, foram, mais ou menos, quarenta de caminhada. Está bom. Noutro dia, cronometro direito.
Cheguei no meu andar, pego a chave para abrir a porta.