Noutra Vez

Já faz algum tempo. Tempo bastante? Tempo demais pra mim. Sempre parece ser muito tempo pra quem espera ansioso. Assim como quem tem medo sempre percebe a demora embora, instintivamente, tente empurrá-la mais um pouco. O tempo não é areia ou água. Não dá para guardá-lo num pacote e pesar na balança, esperar que atinja o peso solicitado na receita. Por isso, nenhum médico receita tempo. Não dá para dosar, para escrever a bula, apesar de dizerem que o tempo é um santo remédio. O tempo é sim como uma borracha que vai apagando as coisas. Ele não resolve, só faz esquecer, passar. Passar tudo, o ruim, e também o bom. Passar tempo suficiente para passar o ruim, pode também fazer passar o bom. Apagá-los. Esquecê-los. Limpar toda a folha onde está escrita, desenhada, a vida. O que passou de ruim deve ser muito ruim para se querer algo assim. Triste não haver coisas boas de se recordar que compensem. Mas, se as há, esperar que tempo? São pensamentos desconexos com conexão. Ele os elaborava há algum tempo. Desde que achou que devia esperar algum tempo. Foram um jogo de palavras que ele montava para justificar não esperar mais e se preocupar apenas em criar coragem. E resolveu que não ia mesmo esperar mais, que já havia passado tempo, muito tempo, demais, que não podia passar mais. Faltava a coragem.

Ele gosta muito de música. E de cinema. Teatro não é cinema, mas também é bom. Musicais têm música e teatro. Ele gosta. Homens não costumam gostar, mulheres sim. Principalmente se a história é romântica. Estreia um musical novo na cidade. Adaptação. Ele sabe do que se trata, já conhece a música, é romântico. É uma boa desculpa pra criar coragem, uma coragem dissimulada. Ela haverá de se interessar.

“Estou sendo convidada?”

“Sim, senhora. Não foi isso mesmo que eu falei?”

“Você perguntou se vamos, é diferente. Mas, a que devo a honra?”

“Você não vai me deixar ir sem companhia. Você já me é uma companhia tão boa em tantas oportunidades. Por que não em mais esta?”

Ela queria ir. Queria lhe fazer companhia. Não ia continuar a conversa tentando deixá-lo mais sem graça. Não sabia se o convite vinha em boa hora, mas gostou de recebê-lo. Sentir-se querida e lembrada fez bem. Na verdade, tentou deixá-lo sem graça, mais sem graça, para não ficar ela mesma sem graça. Sentiu-se cruel e se arrependeu. Mordeu o lábio, de remorso, e perguntou quando.

Ele queria no sábado. A estréia era na sexta-feira. Mas, no sábado, dá para se arrumar sem pressa, salão, barbeiro, banho, comprar outra roupa se não tiver uma adequada. Dá pra marcar mais cedo, a pretexto de jantar, ou de qualquer coisa, e ter mais tempo para conversar. Ele pensou em tudo isso antes, mas só disse que no sábado fica menos corrido. Ela concordou, já pensava no salão. São várias especialidades diferentes pra agendar no salão, cabelo, pé, mão, e sabem lá as mulheres o que mais, pra ir num evento desses. Ela queria agradar. Ele queria estar lá com ela. Combinaram de ir juntos, mais ou menos juntos. Ela mora longe, e ele mora perto do teatro. Ela vai até a casa dele e, de lá, seguem juntos.

Ela chegou perto da hora combinada, depois. Mas, mesmo assim, antes do que ele imaginava. Ele tinha já se preparado e esperava vendo televisão, sentado no sofá, com cuidado para não amassar a roupa. Besteira. Ele não conseguiria amassar o suficiente para que ela reparasse. Ele a achou linda, como sempre. Desta vez ficou sem graça de dizer. Estranhou a roupa. Não era feia. Só que ele nunca tinha visto as roupas que ela usava para sair à noite. Não adivinha que ela tivesse essa no armário. Havia imaginado as que já conhecia. Vão no carro dele, o dela fica na garagem, esperando. Chegam bem cedo. Mais tarde é difícil encontrar onde estacionar, mesmo os estacionamentos lotam. A região é cheia de restaurantes. Haviam falado de almoçar antes do teatro.

“Você dorme cedo?”

A pergunta, assim, fora de contexto, a pegou de surpresa. Não entendeu direito, mas respondeu.

“Durante a semana, deito cedo, mesmo que não tenha sono.”

“Vamos tomar só um café agora? A gente janta depois, com mais calma.”

Dava tempo de jantar, e ela não gosta de comer tarde, mas concordou. Não queria ter pressa também. Ou, talvez, só não quisesse contrariá-lo já. Tomaram cappuccinos, com croissants. Deu pra conversar bastante, fácil achar assunto, sempre conversam bastante.

No teatro, já sentados, ele se lembra que não lhe deu a mão, não tentou segurar-lhe a mão. Sorrindo, oferece-lhe a mão, sem timidez, ou com timidez disfarçada, e ela não entende como algo natural entre os dois, assistirem de mãos dadas, como se já tivessem se dado as mãos antes. Ela encolhe os ombros e se encosta a ele para mostrar que está a vontade. Ele aproveita que lhe segura a mão, e abraça-lhe o braço. Pega de surpresa, ela encosta-lhe a cabeça ao ombro, brincando de namorada.

A peça não foi exatamente Broadway, ou um mega-show, ou perfeita. Ele já havia previsto isso e não ligou. Ela achou que seria melhor, mas também não ligou. Quem quisesse qualidade de som e imagem, assistiria em casa. Passear no sábado é uma diversão diferente. A qualidade do que está no palco é secundária. Ele se lembra de que os atores costumam dizer que o importante no teatro está na platéia e, agora, entende, de um jeito dele, que está mesmo. Pareceu demorar um pouquinho mais do que devia. Talvez as últimas músicas não fossem tão boas quanto as primeiras, ou já saber o enredo e prever o final feliz tirasse a graça, ou só estivesse ansioso por sair dali para jantar. Ao final, depois dos aplusos, ele correu passar-lhe a mão um pouco antes do pulso. Foi seu jeito de pedir que saíssem também de mãos dadas. E saíram. Ele atrás, que ela estava mais próxima ao corredor. Empolgados por chegarem logo à rua, tomar ar, relaxar o corpo. Na rua, estava muito frio, soltaram as mãos e viraram de frente um pro outro.

Ele achou estranha sua própria ideia de jantar àquela hora.

“Você prefere jantar comida mesmo? Comer um lanche? Ou outro cappuccino… e um pedaço de bolo?”

Ela pareceu aliviada por ele perguntar.

“Cappuccino bem quentinho com torrada. Você não se importa? Prefere comida? Não tem fome?”

Ela respondeu, mas fez cara de quem achava que estava pedindo demais: estragar o passeio que ele planejou trocando o jantar por um lanchinho. Ele riu.

“rs Sábado à noite, mais de meia-noite. Você acha que eu falei pra gente comer por que tenho fome? Eu só quero uma desculpa pra sentar em algum canto e ficar mais bastante tempo conversando com você…”

Ela sorriu, sentiu-se mais lisonjeada do que se ele tivesse se lembrado de elogiar-lhe a aparência. Pediu que encontrassem logo um lugar quente. Ele conhecia um, mas tinham de andar um pouco. Deram-se os braços e foram apressados se aquecendo e rindo do frio que era a desculpa divertida da vez para se encostarem.

Conversaram mais. Ele sugeriu que ela tomasse o cappuccino tradicional, com conhaque. Ela aceitou a sugestão. Parece que o frio estava agarrado a suas roupas. Tomou dois. Ele bebeu um café duplo e chá. Ela ficou com cara cansada, denunciou o sono. Ele se lembrou que ela ia ainda dirigir.

“Você está cansada, como sono, e bebeu. Dorme lá em casa.”

Pediu, com carinho, temendo ser mal entendido, embora não fosse ruim ser mal entendido. Ela riu. Um riso de diversão, sem risada, só sorriso e cara de quem pegou o amigo no pulo.

“rs Você me oferece assim desinteressadamente e de improviso, né?”

Ele riu também, mais ou menos o mesmo riso, mas sem jeito. Chegou aquela hora que você tem de explicar algo.

“Olha, isso é novo pra mim. Estou falando pra você dormir em casa, pra dormir mesmo. Não tem segunda intenção. Eu também preciso ir devagar. A gente chega lá em casa, eu te faço um caneca bem grande de café, que você vai pousar ao lado do sofá e nem precisa beber. A gente põe um filme desses ruins que você gosta. Você encosta a cabeça no meu ombro até quase dormir. Aí, pode deixar, que lá tem cama suficiente pra você dormir sozinha.”

Ela não se esqueceu de avisar que queria tomar um banho antes de dormir, mesmo com esse frio todo.

No dia seguinte, acordou numa cama de solteiro, com roupa de cama da Disney, exceto pelo edredon. Era o edredon de casal com que tinham se coberto na sala enquanto viam o começo de um filme de que ela não se lembrava.

Ele tinha café da manhã pronto na cozinha: café, leite, pão fresco, peras. Quem come pera no café da manhã? Ela se divertiu provocando-o. Comeu o pão e o café com leite. Disse que levaria uma pera para mais tarde. Ele se lembrou de dizer algo sério.

“Eu não queria que você fosse embora.”

“Eu preciso. Eu gosto que você queira que eu fique. Eu também queria.”

E, mordendo o lábio inferior, lembrou-se ela também de lhe dizer algo sério, como se brincasse, mas não soube dizer. Só prometeu a continuação.

“Noutra vez.”

Ele percebeu e beijou suas mãos. Depois, pôs a mão nos lábios dela, trouxe os mesmos dedos aos seus lábios e beijou. Ela sorriu, procurou o casaco, deu-lhe um selinho e saiu.

 

 

 

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