Acordei no meio da madrugada, pouco mais de duas e meia. Na verdade, nem sei se dormi. Devo apenas ter ressonado. Até imagino o quanto ronquei, aquele ronco dos agitados, do sono mal dormido de quem se deitou por obrigação ou por fastio de estar acordado.
O coração está bem agitado. Poderia ser por um pesadelo, mas acho que eu me lembraria se tivesse sonhado. Desconfio do energético com pinga. Antes de me deitar, o refrigerante havia acabado, e eu queria alho gasoso e bem gelado para me aliviar no calor da noite de verão. Calor que veio acumulado, nas paredes do apartamento e no meu corpo do dia todo. O vento não entrava pela janela da sala, culpa mais dos mosquitos que poderiam entrar por ela do que de um projeto mal feito do arquiteto. Peguei a única coisa gasosa da geladeira, três latas de energético, que eu guardo para quando preciso acordar cedo. Achei que álcool me faria pegar no sono, já que sono eu não tinha, e procurei embaixo da geladeira, onde tenho uma adega improvisada. Havia vinho, tinto e madeira, houvesse verde eu não precisaria fazer a gororoba. Não havia verde. Mas tinha uma garrafa de pinga que eu uso quando flambo cogumelos ou frutas. Lembrei-me do guaraná com vinho licoroso vagabundo que minha mãe gostava e me deixaria beber junto quando lhe fazia companhia no trabalho. Batizei o energético com a pinga, imaginando que o gosto ficaria parecido com o familiar da minha infância, e deixei no freezer enquanto tomava banho. Quando bebi, já havia uma fina pele de gelo em cima. Mas não me refrescou.
Deitei-me, com a janela do quarto meio aberta, persiana fechada. Parecia que não deixavam o vento passar. Talvez não houvesse vento mesmo. De pronto, já me senti todo suado e sujo. Sensação de que o banho não foi o bastante para essa noite. Tive coceira nas pernas. Nos braços, não achei mosquitos.
Coloquei uma música. Sempre que ouço música à noite, acabo dormindo. Achei que o efeito seria o mesmo, mas a música só serviu para me inquietar e irritar. A coceira nas pernas. Virei-me de ponta-cabeça, com o travesseiro nos pés da cama. Nada. O travesseiro esquentou.
Isso demorou, não sei quando dormi. Sei quando acordei. Reflexo de sempre olhar o relógio. Virei-me da esquerda para a direita e de volta, procurando um pedaço fresco do travesseiro ou da cama, uma brisa, uma cabeça vazia. Tudo era incômodo.
Tirei a roupa suada. Abri a gaveta do armário e peguei uma camiseta bem grande. Não a vesti. Dobrada, cobri o travesseiro com ela. Pus minha cabeça em cima. Estava fresca ali. Abracei o travesseiro, ilha de frescor numa noite suada e abafada. Imaginei-me envolto, na verdade, imaginei-me envolvido nessa ilha. Uma sensação gostosa de alívio e conforto foi-se espalhando por mim, não sei dizer se a partir da pele que tocava a roupa fresca do travesseiro, ou se vinha de dentro de mim, fruto de pura imaginação.
Foi essa dúvida que me levou a usar a imaginação e logo passei a distrair-me com ela. Lembrei-me de situações imaginadas ainda há poucas horas, quadros pintados, histórias por contar. E tentei elaborá-las, preencher as lacunas, descorá-las com nuances de decoração. Normalmente, imagino com cuidado e detalhamento os cenários e o fundo de minhas histórias, procuro o lugar certo para cada coisa na cena e a coisa certa em cada lugar. Curiosamente, dessa vez, não houve fundo, e só depois me toquei disso, só o tema, só a história envolta em penumbra e no frescor de conforto. E me envolvi nela. Timidamente, no começo, confesso, e isso há de se compreender. Quem já se envolveu em uma história sonhada acordado de madrugada compreende.
A tensão da história cresceu em mim e me inquietou. Não foi a inquietude do pânico, mas a da pressa de devorar os capítulos do livro. Notei minha respiração acelerada. Já sabia que, desta vez, com certeza não tinha a ver com nenhuma bebida nem com pesadelos. Era a aceleração do sonho. Não lamentei ser apenas sonho. Pelo contrário, diferente da decepcionante realidade, sendo sonho, poderia se extender e durar o quanto eu quisesse. E durou.
E quando eu, por fim, imaginava qual o melhor fechar de cortinas, o posfácio, aquela frase final que falta em muitos filmes, acordei sem querer para o quão freqüente é, logo ao acordarmos, esquecermos nossos sonhos, para sempre. E o esquecimento não podia ser o destino desse sonho. Quando percebi isso, antes que esse pensamento se tornasse preocupação e depois inquietação, levantei-me.
Acendi a lanterna do celular e procurei um caderno de anotações na gaveta. Peguei um, novo, em branco ainda, e também um lápis e a caneta, não sabia qual usar. Tinha de escrever tudo para não esquecer. Escrevi, infelizmente sem me lembrar de alguns detalhes e, mais infelizmente ainda, sem conseguir descrever os de que me lembrava do jeito como deles me lembrava. Mas escrevi, para não esquecer mais. Isso é importante, não esquecer.
Escrito, tive medo de que alguém o encontrasse e fuçasse, e se intrometesse tentando mudá-lo. Precaução com ares de adolescente ingênua, voltei à gaveta pegar cola e fechei o envelope. Estava agora seguro, ninguém abriria um envelope com o sonho de outra pessoa. É possível intrometer-se num livro, num caderno, lê-los, não num envelope. Ia sossegar assim, mas não. Como pode um sonho sobreviver num caderno selado? se nunca mais fôr lido? Morreria, como animal asfixiado. E isso eu não poderia deixar. Seria crueldade demais! Minha. Comigo mesmo. Com um sonho que há poucas horas me confortou e tirou o fôlego.
Estava decidido. Vesti novamente a calça e a camiseta que me serviam de pijama no verão, calcei as sandálias e saí para a rua. Já fora de casa, a noite não parecia abafada pelo verão. Era fria, escura, úmida de relento e solidão das ruas desertas e sujas do bairro que, durante o dia, foi oficina das bagunças de foliões. Andei, sem saber para onde, pela noite fresca, atrás de uma caixa de correio. Selo não é necessário. Não há endereço no envelope. Certas cartas devem ser enviadas sem endereço. Não precisam disso para encontrar seu destino.