Eu nunca entendi o jogo de bolinhas de gude. Às vezes, via, na escola, os colegas jogarem em vez de brincarmos de outra coisa. Me enfadava. Para mim, era um jogo sem fim, sem sentido, extremamente ritualizado com dúzias de fórmulas e palavras mágicas que deviam ser pronunciadas em voz rápida, ininteligível, em momentos específicos. Me parece que elas era usadas para invocar as entrelinhas do livro de regras. Também me aborreciam as discussões constantes provocadas pelas diferenças entre as palavras mágicas e os rituais de cada um. Era como um religião primitiva. Cada grupo tinha sua própria versão. Sem falar na margem que havia para alguém inventar na hora do apuro uma regra que lhe beneficisse, fingindo que “na minha rua sempre jogamos assim.”
Os jogos de bolinhas de gude dos colegas contribuíram muito para minha familiaridade com o Professor Jacó, o professor de português de meus irmãos que servia de bibliotecário na hora do recreio. Nas temporadas de bolinhas (porque criança tem temporada para cada brincadeira), eu passava na biblioteca no começo do recreio, pegava um livro ou gibi e lia sentado no degrau, chamávamos de pódio, onde se esteava a bandeira à quartas-feiras.
Um dia, o professor me perguntou porque eu aparecia na biblioteca todo dia, coisa muito rara entre crianças. Expliquei que meus colegas estavam todos jogando bolinhas de gude. Mas não tive tempo de explicar que não gostava. Ele já puxou do bolso a chave para fechar a biblioteca: “Bolinha de gude? Eu adoro. Vamos lá com eles. Eu quero jogar também.”