Isso nas Suas Costas

“Isso nas suas costas…” Ele descuidou e ela percebeu. Não estava nos planos, mas ele, embora acostumado a esconder, já não conseguia mais manter o tempo todo tanta vigilância. Chega uma hora em que todos temos que relaxar da preocupação. Ele relaxou, por pouco tempo, já havia relaxado de outras vezes e deu sorte, desta não, ela percebeu. Na verdade, viu. Chegou à casa dele, encontrou a porta destrancada e foi entrando. Ele não notou, saiu do banho com a porta aberta e ao vê-la, antes que pudesse jogar a toalha sobre as costas, ela o viu, nu. É verdade que causa espécie um homem surpreendido nu cobrir as costas e não o sexo com a toalha. Foi isso que o fez sentir-se ridículo e confessar, completar a frase dela, sem desculpas esfarrapadas: “… são asas.” Só depois disso sentiu-se envergonhado e tirou a toalha das costas, não cobria nada e, mesmo que cobrisse, agora seria inútil. Já havia se entregado.

“Você não é corcunda? Deformado?” Isso era no que ele fazia todos acreditarem. Às vezes, é mais fácil esconder o caqui chamando-o de tomate do que levando-o para longe. Foi o que ele fez. As asas, grandes, brancas, parecidas com as de cisnes, ele escondia, apertadas junto ao corpo por ataduras. Depois uma camiseta bem justa, bem grossa, de algodão, o mesmo das ataduras. Por cima vestia a camisa. O volume nas costas, dizia ser uma má-formação que lhe incomodava. Mudava de assunto. Os outros mudavam também, sem desconfiarem. Ele nem se deu ao trabalho de responder. Pensava nas conseqüências, se podia confiar nela.

“Eu sempre achei mesmo muito estranho, você, tão bonito, forte, ser corcunda.” Ele riu feio, indignado pelo preconceito dela. Não lhe importava agora ser bonito ou feio. Mas para ela, ser bonito era incompatível com ter um defeito. E ele também se envergonhou. Primeiro, por pensar em defeito quando pensou em corcunda. Depois, porque se lembrou de que é mesmo bonito e forte, e que não tem o defeito que fingia. E se sentiu pego no pulo por achar que fosse só preconceito. Por fim, porque percebeu que se deixou enganar pelo raciocínio. Porque ser bonito e não ser corcunda não quer dizer que não haja bonitos corcundas por aí.

“Você é um anjo?” Ele não quis ser agressivo, mas talvez ela tenha achado agressiva sua negativa. Foi apenas o “não” de um jovem enfastiado que não tem medo de arrumar confusão para sua cabeça se se deixar tomar por algum ser celestial. Quis dar-lhe as costas, mas não lhe expor as asas. Preferiu ficar de frente, encarando-a. Ela, provavelmente, tomou isso como coragem. Não foi. Foi sentir-se vulnerável e, sem pensar, fugir de encarar-lhe com as costas, que eram diferentes das dela, para encarar-lhe com os olhos, iguais aos de todo mundo. Ela, se tivesse juízo, aproveitaria o ensejo, a visão de homem tão bonito, nu, de frente para si, tentando cobrir o sexo com uma toalha pendurada na mão, mas revelando-lhe todo o resto, o que ela mais gosta, seu peito, os braços, a boca, as pernas… Ela, se tivesse juízo, deixaria a conversa para quando o visse vestido. Mas, curiosa que é, mulher que é, não fica à vontade e não pára de perguntar.

“Você voa?” E essa realmente deve ser a primeira pergunta que qualquer pessoa teria, embora a maioria calasse. Ele já a esperava. “Eu consigo. Mas não tenho o costume. Não quero que me vejam e acabo perdendo a pratica. Além disso, eu acabo estranhando quando as tiro de debaixo das roupas.”

“Mas por que você as esconde?” Pergunta compreensível vinda de quem não tem asas. Como respondê-la de modo a que quem não tem asas entenda? “Por isso mesmo: voar. Você acha que as pessoas aceitam alguém que pode fazer algo que elas não podem? Voar? Imagina. Anjo? Bruxo? Presunçoso? Um filho-da-puta que acha que pode isso-e-aquilo só porque tem asas? Olha só o idiota, porque voa se acha melhor do que eu… Você acha que as pessoas não gostam do que é diferente. É ainda pior, elas têm ódio, absoluto, de quem faz o que elas gostariam de fazer. É melhor passar-se por coitado. Te ignoram.” A resposta saiu consciente, ele já tinha pensado várias vezes nisso, sabia o que falava, mas não menos emocionada. Pela primeira vez, ele teve a quem dizer isso, que ele já havia concluído várias vezes. Falou com raiva, mas mantendo o tom de voz em um nível sóbrio que realmente lhe tomariam por anjo.

“Mas não machuca escondê-las assim?” Sim, machuca. E ele chorou para responder. Não caiu no lugar comum de dizer que o que mais machuca é, por dentro, como se sente. Mas foi isso que ela pensou quando percebeu que ele ficou nervoso. Não com vontade de chorar. E ele até gostaria mesmo de chorar, desabafar anos de tormento. Ainda assim, nem perto chegou. Surpreendeu-se com como o enfrentar as dificuldades endurece o coração. Sentiu-se mesmo superior aos que choram tocados pelo sofrimento.

Ele calou a resposta e ela, pasma e já com medo, sentiu como se o estivesse interrogando, pondo-o na parede. Ele, por outro lado, conformado em ter-sido descoberto, passou da sala para o quarto e não se preocupou em fechar a porta. No caminho, sem querer, relaxou o braço da mão que segurava a toalha e ela o viu todo. E ela se admirou com sua perfeição, ao vê-lo de lado e, mais ainda, ao vê-lo de costas. Mas sua excitação não foi mais que automática, dados os olhos com que, por alguns anos, se acostumou a ver o amigo. Ele mexeu numa gaveta, procurava algo.

Ela queria falar algo para quebrar o silêncio. Não percebia que o silêncio era simplesmente uma rejeição. Ele não a queria lá. “Você nunca as usa? Não as deixa solta?” Ele não abriu mão do silêncio. Achou-a mesmo indelicada por não se constranger e sair. De quê mais do que perguntas sem respostas uma pessoa precisa para saber que deve ir embora? Não sabemos se era o que procurava, mas ele encontrou um frasco de perfume, ainda lacrado. Deixou-o sobre o móvel. Logo encontrou também uma escova e uma sunga. Notou o início de uma eração e não a vestiu, deixou-as também sobre o móvel. Pensou se conseguiria que a amiga fosse embora se, sem expressão, a pegasse pelo braço e a tentasse debruçar de quatro na cama. Se conseguiria que ela se ofendesse e fosse embora. Não tentou e ela ficou. Olhou-o escovar um pouco os cabelos, romper o lacre do frasco e se perfumar.

As asas, ele às vezes as usa. De tempos em tempos, acampa num morro, nunca o mesmo, à beira-mar, numa praia deserta. Passa a noite em frente à fogueira, olhando as estrelas e o negrume do mar, aquece-se com um cobertor e chá. Espera o sol nascer. Acordado, para não perder nada. Assiste devagar, como se pudesse controlar a velocidade do sol. Tira uma foto, uma só, para guardar. Estão ali, no painel da parede do quarto. Por fim, tira a roupa, espreguiça as asas, abre-as e pula. Pula já sabendo que, um dia, elas não funcionarão.

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