A mãe me recomendou que não fizesse desfeita: “O que te oferecerem você come ou bebe sem frescura.” Não precisava, eu tenho educação. Foi ela quem me criou, deveria saber.
A recomendação era sobre o café na casa do amigo. Estávamos brincando na rua. Ele entrou pra tomar café, eu voltei pra casa – morávamos há uns cinquenta metros um do outro, praticamente só dobrar a esquina. A mãe dele disse pra me chamar que ela havia preparado a mesa pra mim também.
Eu fui, acanhado. Não era uma criança muito social. Talvez nenhuma criança seja. Eu já conhecia bem a casa, mas bati palmas no portão. A mãe dele gostava disso, eu era o único colega que batia palmas e pedia licença antes de entrar. Dei a volta na casa e entrei pela porta de trás, da cozinha. O pastor alemão me policiando.
Eu sempre quis ter um pastor alemão. Mas eu já tinha um cão, o Rex, que estava na casa de meu avô – do outro lado da rua – porque uma vez minha irmã subiu no muro e, quando viu que ele subiu atrás, se assustou, nem sabia que era ele, caiu e quebrou o braço. Meu pai ficou tão nervoso com o bicho que tivemos de pedir ao avô para protegê-lo. Coincidiu de, pouco depois, morrer o Dondom, o cão da avó, e o avô pediu para deixarmos o Rex morando lá. Dondom era bravo. Rex era muito manso, até covarde. Com ele todos brincavam. E nós e os primos brincando lá com o cão, alegrávamos a casa, disse ele.
Eu entrei na cozinha, estavam todos sentados me esperando. Na época, tínhamos uns oito anos, mas meu amigo tinha uma irmã de dezoito. Sentada de vestido de chita cavado na minha frente. Puxou conversa comigo. “Você prefere café com leite ou chá.” Aos oito anos, a gente ainda não entende essas oportunidades. Eu nem sei se respondi. A mãe deles, talvez eu não tenha respondido mesmo, perguntou se eu queria que esfriasse meu chá como o do filho dela. Isso eu respondi que não. Não gostou dessas coisas de comida amassadinha, chazinho morno, água temperada, a que a mães super-protetoras acostumam os filhos. Ela disse que já ia me pôr a xícara.
A filha do vestido cavado me ofereceu bolo. “Você gosta de bolo de cenoura?” Teimava em puxar conversa comigo. Ofereceu já cortando um pedaço grande e me esticando no prato. “De cenoura? Nunca vi.” Como pode existir bolo de legume? De salada? De cozido? Causou-me estranheza, mas a cobertura de chocolate era convidativa. E o prato já estava à minha frente. Peguei. Não ia esperar que ela tivesse câimbra.
Mordi o bolo com receio. Soube-me a gordura açucarada. Não achei ruim, era bem macio e tinha chocolate por cima. Mas eu nunca escolheria aquele para que minha madrinha fizesse no café do domingo, quando íamos visitá-la. Acanhado, comecei a comer o bolo olhando para baixa, para o prato. Não sei se eu comi rápido, o que é provável, ou se eles comiam devagar, ou ainda nem tivessem começado a comer. Quando terminei, a mãe deles ainda estava esfriando o chá do filho.
“Você gostou. Já comeu. Quer mais um?” Eu não queria, mas me pareceu correto. A mão da irmã mais velha colocou mais um pedaço em meu prato. Olhando pro prato, esperei chegar o chá de meu amigo e ele pegar o bolo. Chegou, ele pegou e mordeu. A irmã deu uma dentada de quase meio pedaço. “Pode comer.” Comecei a comer o meu devagar. Achei que bem devagar. Meu chá nunca chegava. A mãe deles insistiu em esfriar o meu. Me disseram pra não fazer desfeita. Pedir pra não esfriar meu chá seria desfeita? Deixei esfriar, decepcionado.
Meu amigo chegou na metade do pedaço dele e disse que não queria mais. A mãe brigou. Me usou de exemplo, orgulhosa. Que ele desfazia do bolo da irmã… Opa, foi a irmã dele quem fez o bolo? Ela é filha. Filhos não são crianças? Criança pode fazer bolo? A irmã xingou-o de algo, pegou outro pedaço pra si e me ofereceu mais um, que já trazia cortado, equilibrado sobre a faca. Ainda sem chá, tinha na boça o gosto de óleo e açúcar dos outros dois pedaços. A cobertura de chocolate já não parecia tamanho alento, a essa altura. Sem saber exatamente como recusar, ela pôs o terceiro pedaço em meu prato.
A mãe levava a sério, com capricho, o lance de esfriar o chá. Bem frio, pelo jeito. E a filha, o lance de usar o amigo do irmão para se fazer de injustiçada por ele. Não sei quantos pedaços de bolo recebi até chegar o chá, que me foi tirado para ser açucarado. “Como assim, você vai beber sem açúcar? Deixa que eu adoço.” Recusar açúcar, eu podia? Mais bolo. “Que orgulho! Olha como teu amigo gostou, seu chato! Não está bom?” Respondi que sim, perguntei se era frito. Não disse que pensei isso por causa do gosto de gordura. Riram. Ela disse que ia mandar a receita pra minha mãe.
O chá, quando chegou, quase gelado, até que não muito açucarado, me deixou alegre. “Você gosta mais de chá do que de bolo!” Agora foi a mãe quem se fez de orgulhosa. Bebi correndo. Achei que ia acabar e correr para casa. Outro pedaço de bolo apareceu no meu prato enquanto eu tirava a xícara da frente do rosto, escondendo a careta de quem não gosta de açúcar.
Ouvi a voz da minha mãe no portão. Meu pai tinha de ir em algum lugar, provavelmente fazer mercado, e precisava de ajuda. Nunca fiquei tão feliz em carregar compras.
Agradeci e me despedi, correndo. O bolo que estava no meu prato veio atrás de mim no portão. “Não esquece teu bolo. Vou mandar a receita para a senhora. É de cenoura. Ele disse que adorou.” Eu nem me lembro de terceiro nada.
Dobrando a esquina, a mãe teve de fazer o comentário feminino. “Você estava lá e ela com aquele vestido?” Eu disse que não reparei, estava distraído com o lanche. A mãe deve ter tomado por safadeza minha. Safadeza? Eu só tinha oito anos! Disse que o bolo devia estar mesmo muito bom pra eu não te reparado. “Não gostei. Parecia tempura frio.” Já ameaçou brigar pensando que eu tivesse recusado. Não eu não tinha recusado. Nada? Nada. Quanto bolo eu comi então? “Sei lá, uns oito pedaços.” Julguei mais pelo volume que me revoltava o estômago do que por um controle que tivesse feito. Não devo ter errado muito.
“Não gostou? E comeu oito pedaços! Você não tem educação!”
Eu não sei o que respondi. Com certeza não foi nada educado. Mas imagine o que pensei quando estava com a cabeça na privada vomitando quase um quilo de bolo de que não gostei.
No dia seguinte, na escola, meu amigo me deu um papel de carta roxo daqueles decorados – Lolypop ou coisa do tipo, era moda entre as meninas – com a receita de bolo de cenoura escrita em letra feminina. A letra dele, espremida, eu já conhecia.
Minha mãe experimentou a receita. Me jogou na cara várias vezes, até hoje, eu falar que não gosto de bolo de cenoura quando ela faz, mas ter comido oito pedaços do da irmã bonita de meu amigo. Ainda me provoca: “O que não se come por uma saia, né?”