Éter

Eu me lembro de fuçar o armário do banheiro da minha avó. Era daqueles armários de parede, atrás do espelho, com algumas prateleiras pequenas onde não parecia caber quase nada. Mas cabia muita coisa que eu não, criança, fuçava mais pela falta do que fazer do que pela curiosidade.

Nas pequenas prateleiras atrás do espelho, não havia quase nada da minha avó. Tudo era da madrinha. A avó guardava suas coisas no quarto.

Ali havia um vidro de perfume da Avon, amarelo, com cheiro forte de licor. Não me lembro o nome. Era uma delícia cheiro de dar água na boca, dar água na boca mesmo. Eu me lembro da primeira vez em que comi papo de anjo. É um doce daqueles bem doces. Um pedaço de pão-de-ló mergulhado em calda de açúcar, baunilha e licor. Não sei dizer se o cheiro é o mesmo. Quando experimentei o doce, já não cheirava o perfume havia anos. Mas me lembrou de imediato, com a mesma água na boca.

Tinha também a latinha grande de Creme Nívea, que eu nunca soube para quê serve. Mas a madrinha usava aos montes. Tinha sempre uma latinha por perto. Uma na bolsa, outra na máquina de costura, outra no quarto, uma grande em cada banheiro. Uma vez perguntei para quê servia. “Para passar!” Claro, para passar. Certas coisas a gente nem deve perguntar.

Escova e pasta de dente, como em todo banheiro. Escova de cabelo e pente grande, e também um pente-fino, como em muitos banheiros. Uma caixa de grampos de cabelo, que a madrinha usava para prender o seu cabelo ralo. Diferente da avó que tinha cabelos brancos enormes, até as coxas, que ficavam presos sob um lenço grande e eram lavados de manhã bem cedo no tanque do quintal com água fria e, no máximo, duas gotas de azeite, a madrinha já estava ficando careca. Deixava o cabelo crescer bastante e o prendia com grampos para cobrir toda a cabeça. Os grampos serviam também para limparmos os ouvidos.

Pedra-pomes e pedra-hume. Uma para lixar calos, a outra para ajudar a secar pequenos cortes. Pinça, que eu gostava de pegar emprestada para mexer em insetos. Lixas de unha, mertiolate e éter.

Éter é uma coisa que eu nunca soube porque se teria em casa. Perguntei também para quê que servia e tive outra resposta espartana: “Para usar.” A madrinha dizia que seu cabelo começou a cair por causa de tantos produtos químicos que elas usávam no salão quando era mais nova. Talvez éter fosse um deles. Ou, outra possibilidade, e isso explicaria a resposta evasiva, ela usava como um colega meu da faculdade que, mais velho que nós, dizia que, no começo dos anos oitenta, saía para a noite com um lenço cheio de éter no bolso e o cheirava junto com as parceiras de dança “para a conversa chegar logo nos finalmentes.” Não parecia coisa da minha madrinha.

Uma vez, na escola, a professora de Ciências, falando sobre volatilidade, citou o éter: “logo que você abre, o cheiro imediatamente pega a casa toda”. Lembrei-me de um desenho, acho que do pica-pau, em que ele abria um vidro onde estava escrito éter e uma névoa se espalhava por todo lado. Lembrei-me também do éter no armário do banheiro.

Em casa, curioso, fechei a porta do banheiro e peguei o frasco do armário. Com cuidado, deixei o rosto bem afastado, abri. Esperei uns vinte segundos e nada do cheiro. Decepcionado, cheguei o frasco perto do meu narigão. A princípio, não senti cheiro nenhum. Mas quando senti algo, foi de uma vez. Uma dor no fundo dos olhos que parecia que tinham me enfiado fundo agulhas de tricô pelas narinas. À frente da cabeça ficou leve, a nuca pesada. A cabeça caiu para trás. Para não cair de cabeça no chão, tentei me equilibrar de volta para a frente. E foi para a frente que minha cabeça caiu então. Não senti nada mas, anestesiado, ouvi a pancada muito forte da minha testa na torneira.

A madrinha bateu à porta. Quando abri perguntou se eu estava mexendo com éter. Respondi que confundi com o mertiolate, para passar no machucado da testa. O corte grande que eu abri com a pancada na torneira.

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