Estou indo pra escola. Queria jogar bola, todo dia quero, mas todo dia vou pra escola. As outras crianças também, nenhuma quer ir pra escola, mas todas vão mesmo assim. Algumas gostariam de jogar bola, outras de brincar de bonecas, jogar vídeo-game, dormir. Dormir é bom! Já têm umas meninas da escola que preferiam namorar. Os meninos não, se já saíram da cama, quase todos preferem jogar bola. No entanto, vamos, todo dia, pelos mesmos caminhos, depois de tomar os mesmos cafés da manhã, para a escola. Ao menos eu tenho a desculpa de que todos que jogariam bola comigo também estão pra escola. Só se jogasse sozinho. Eu bem que preferia jogar sozinho, mas vou pra escola.
E eu aqui, carregando a mesma mochila, usando a mesma roupa… Porcaria de roupa ridícula! Minha mãe tem mania destas camisetas com estampas de bebê. Meus tênis ainda tem estampa, são vermelhos com elefantinhos. Ela ainda me compra cuecas estampadas, aquelas feitas para crianças pequenas que não usam calças. Dá pra acreditar?
Todo dia eu penso nisso e me lembro de, no dia seguinte, pegar uma roupa diferente. No dia seguinte… Nunca me lembro na hora de pegar a roupas. É sempre pelo caminho.
Na saída da escola, vou passar na banca de jornal e comprar os quadrinhos desta semana. Leio vários. Tenho de ler vários. As histórias se fragmentam entre eles. Estratégia para vender mais. Nestes quadrinhos, cada história começa num, se divide em três ou quatro ramificações que continuam em outras revistas diferentes. Sem dizer que as histórias de cada uma são continuações de histórias de outras revistas, que você não vai entender se não tiver lido. É como se a mãe, ao sentar para assistir novela das oito, assistisse as personagens dela interagindo com as das outras novelas em situações que ela só entenderia se tivesse assistido também as outras. Eles dizem que é para evidenciar que o mundo é um só. Mentira. É estratégia para vender mais. A gente que gosta de ler compra. Já, por várias vezes, disse que não compraria mais, me sinto enganado, manipulado. Não adianta, na semana seguinte compro.
Um tema recorrente nesses quadrinhos é o destino. É um jeito clássico, e já bem batido, de se fazer a história seguir um determinado rumo sem ter de quebrar a cabeça com a lógica dos fatos. É o destino e acabou. Mas com tanta gente no mundo, eles foram se encontrar, logo os dois, assim do nada, tão longe… é o destino. É uma explicação convincente pra quem escreve se for também para quem lê.
E talvez o destino exista mesmo, e seja tão clássico e batido como nos quadrinhos. Talvez destino seja isso. Ir pra escola em vez de fazer o que eu quero, com a roupa que eu odeio, depois ler os quadrinhos de que eu reclamo. E porque eu faço isso se não quero? Não sei. Será que é o destino? E do destino ninguém pode fugir? Quem tem explicação ma dê, por favor. Talvez, no final, isso tudo que eu fiz sem ter porquê se justifique. De repente, na última página, eu vou encontrar um tesouro no caminho pra escola e ficar com uma gata que gosta de conversar sobre quadrinhos, ou descubra que, para ser astronauta, preciso ter assistido todas estas aulas, fazer uma prova sobre quadrinhos e usar roupas ridículas. Ou talvez, meu destino seja viver um dia igual atrás do outro.
Depois do almoço, é hora de jogar bola. Aí ninguém me impede, nem o destino. Bom, talvez o tempo. Mas não parece qua vá chover nem esfriar. O céu está com cor de céu, com aquelas manchas de céu que nós chamamos de nuvens, mas que bem podem ser poluição ou fumaça de escapamento de discos-voadores. Tanto céu! Chegando tão longe e nós aqui embaixo. Tem de ter alguma coisa lá.
Gostava de saber onde se penduram as estrelas. E a lua? Como se liga na tomada? E deve haver um chão lá também, para elas andarem assim no céu. O sol? Cadê o sol? Me ensinaram a não olhar direto para ele, mas algumas vezes olhei. Me pareceu uma luz forte, desfocada, vista de longe. Daquelas de iluminação, holofotes, em fotos. Nunca dá para saber direito o contorno do holofote. A luz faz uma nuvem em torno dele que borra a foto. O sol me parece ser assim. Deve ser um lustre daqueles globos de pendurar que estiveram em moda há alguns anos atrás, mas com uma lâmpada forte.
Os antigos achavam que o céu fosse um deus. Ora, eles foram os inventores da palavra deus. Se a usaram para o sol, é porque é isso que ela significa. Nós é que usamos errado. O que é um deus? Não sei, mas são o sol, acho que a lua, os planetas que eu não sei diferenciar das estrelas, o escuro, o tempo, o termo, o destino, a esbórnia, o fogo, o trovão…
Hoje em dia, nós acreditamos numa coisa que chamamos de Deus. Mas, se ela é tão diferente dessas outras em segundo nossa literatura, tão grande, poderosa, orgulhosa e vingativa, deve se ofender por ser chamada assim. Por ser chamada por um nome que pode significar qualquer coisa.
Nisso, vem um vento forte, quente, barulhento, como um espirro. Bagunçou as folhas, levantou poeira, sujeira do chão. Como o vento poderia ser um deus? Só serve para isso: fazer bagunça. E Deus de verdade, pra quê faria uma coisa assim? Se ele existe, não vejo lógica nessas coisas que faz. Medo, dizem que ele se ofende fácil e é vingativo.
Será que existe mesmo alguém lá em cima? Deus? Você está aí? Ou melhor, vós estais aí? Ele não responde. Talvez tenha sido muito atrevimento meu tentar provar-lhe.
As nuvens agora flutuam mais rápido. O vento forte pode tê-las agitado. Tem gente que se distrai procurando imagens formadas pelas nuvens. Para mim, todas tem forma de algodão, de tufos de algodão. Meia dúzia de tufos voando aqui, mais meia dúzia voando ali. O céu sempre da mesma cor. Um azul claro que nós ensinam a dizer que é cinza de poluição.
As nuvens, flutuando, cobrem o sol e posso olhar em direção a ele, filtrado por elas. Ele é uma mancha disforme, pouco redonda, em tons amarelos e laranjas, atrás da nuvem. As bordas da nuvem ficam escuras, interessante. É algum efeito de contraste. Iluminando o meio, a borda escurece.
A nuvem logo sai da frente do sol e ele me atrapalha os olhos. Incomodado, de surpresa, pisco algumas vezes virando o rosto para o lado. Vejo então um reflexo, uma imagem. Ilusão. Parece o desenho de um rosto, contornado a luz no céu, atrás das luzes.
Não era uma nuvem em forma de algo. Era uma imagem de luz, que durou muito pouco, atrás delas. Procuro de novo e não a acho. Escuto um trovão. O céu estava limpo. Procuro, longe no horizonte, de onde ele vem. Vem mais outro. O chão se levanta num terremoto calmo, numa onda sólida. Não é lento, mas não tem a violência que se espera de uma catástrofe natural. Não muito longe de mim, o chão se dobra. O lado de lá vem-me por cima, como se fosse um cobertor. É um livro que se fecha.