Café no Posto

Eu cheguei cedo ao trabalho. Não muito. Mais ou menos meu horário normal. Mas, depois de marcar minha presença, pendurar a mochila e dar bom dia às vivas-almas que já tivessem chegado e eu quisesse cumprimentar, lembrei-me de que ainda não tinha tomado café. Ultimamente vinha tomando café no trabalho. Não gosto. Gosto de tomar café na padaria. No trabalho não tem pão fresco, e o café está sempre azedo.

Pensei nos problemas do trabalho, nos desaforos das últimas semanas, e o café azedo do trabalho, com pão de queijo de segunda linha, me pareceu o último desaforo. Já este inaceitável.

Lembrei-me do café do posto de gasolina. A mais ou menos um quilômetro dali. Quando chego cedo, ainda mais cedo, tomo café lá, antes de estacionar no trabalho. Saí para o posto como cheguei, sozinho. Tinha sono. Que não esperassem de mim comportamento mais civilizado que o bom dia automático que eu havia dito sem olhar ninguém. Voltei pro carro e fui para o posto, como se ainda nem tivesse chegado ao trabalho.

Sentei no primeiro tamborete do balcão, o mais da esquerda, último para quem chega — é uma questão de referencial. Para mim, o primeiro tamborete é esse. Nos mais à direita, mais próximos à entrada, você fica atrás da bandeja do bolo, da fruteira, do display com propaganda da máquina de café, — a de marca, automática, novidade que você pode ter em casa, eu gosto mesmo é do café da máquina tradicional — da estufa do pão-de-queijo ou da meia-bola de isopor onde ficam espetados os pirulitos de chocolate. Esses não merecem ser os primeiros. O mais da esquerda, os dois mais da esquerda, diga-se a verdade, são os melhores para fazer o pedido, vê-lo ficar pronto, recebê-lo e, ainda por cima! falar com a menina opera a cafeteira.

Quando eu cheguei, ela estava enxugando louça, com um pano de prato já úmido, debruçada sobre sua bancada. A cabeça enfiada no estreito vão entre a estufa e a propaganda da máquina de café, ouvindo algo do cliente do penúltimo tamborete. Eu já o vi várias vezes. Ele mora ali perto, trabalha em casa e toma café no posto, todo dia, no mesmo horário. Demora bastante. Coisa de quem trabalha em casa e não tem patrão. Conversa com todos do posto, leva trinta minutos para tomar o café com leite, fuma na calçada, conta o que fez no trabalho ontem e pra quê vai fazer o que vai fazer hoje. Ouve todas as histórias da menina do café. E as comenta, dando-lhe sempre razão. Parece coisa de quem está dando em cima, cercando a presa, mas tem algo nele que me faz acreditar que seja um interesse desinteressado. Deve estar ali sempre, e por tanto tempo, apenas para quebrar a solidão do trabalho em casa.

Depois de um tempo ouvindo-o, ela pediu-lhe licença e veio à minha frente, ainda secando a mesma louca, era um prato: “Oi, amore, vai querer café?” Ela pergunta só para ter certeza.

“Você faz com pouco café e bastante leite?” Eu também digo isso só para ter certeza de que ela ainda se lembra de como ensinei que gosto. Eles normalmente puxam muito o café, ele fica aguado e cabe pouco leite na xícara. Gosto de bastante leite, sem espuma, — espuma não é leite — com o café curto, forte.

Ela fez cara de se lembrar. Acho que fiz bem em dizer para lembrar-lhe. Finalmente pôs a louça no escorredouro, virou de costas para preparar meu café e, logo que encostou na máquina, voltou a conversar com o sujeito do penúltimo tamborete. Falou com a voz mais alta, erguendo-se nas pontas dos sapatos para falar por sobre a tralha que a atrapalhava vê-lo. Falavam sobre algum problema para ela tirar um documento. Procurei não ouvir mais do que as vozes altas obrigavam. Peguei o telefone.

Aproveitei para ver os recados que chegaram pelo caminho. Ignorei quase tudo. Só besteiras, nada de importante. Pessoal do trabalho falando mal dos outros, fotos espirituosas, vídeos pornográficos ou cômicos, não me animei a vê-los.

Meu café chegou ao balcão, quente, senti na mão, ao tentar pegar a xícara. Achei boa idéia usar o tempo em que deveria estar trabalhando para olhar os emails do trabalho. Quase tudo lixo também. O que não era, não me dizia respeito mais do que o lixo. Separei dois ou três, no máximo, para verificar e responder depois. Bebi um pouco do café, já estava bom.

Os emails do trabalho me enfadaram. Olhei um pouco pro telefone, procurando o que fazer. Olhei a agenda. Nenhum compromisso com horário marcado. Tentei umas quatro vezes abrir um site de notícias, mas o telefone não tinha sinal. Bebi mais café, cheguei na metade da xícara.

Segurava o telefone com as duas mãos, como se estivesse pronto a digitar algo. Pensei um pouco. Vi a imagem do fundo da tela, pensei se não podia ter escolhido uma melhor. Não que aquela não fosse legal. Lembrei das fotos do dia anterior, das dos últimos dias. Fotos de cafés, de algumas plantas, de um passeio, de um pica-pau no estacionamento do trabalho. Fui olhá-las. Quase todas tinham algo que eu queria mudar. O pica-pau estava irreconhecível, faltava uma boa lente de zoom. O passeio era igual a muitos outros, ou a todos. O café… era só um café. Nem sei por que tenho essa essa mania de fotografar café. Terminei o café, já morno.

Não sei se fiz alguma cara estranha. A menina do café estava ali à minha frente, dentro do balcão, enxugando outra louça. “Está tudo bem com você? Você está tristinho…”

Sorri, fazendo que não, que nada, com a cabeça. Pisquei-lhe o olho, para que ficasse claro que não queria conversar disso, porque era mentira ou porque não era verdade. Tirei um pouco a mão do telefone, a esquerda só, — o telefone, escondi no colo, com a direita — para empurrar-lhe a xícara. “Faz mais um pra mim?”

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