Era um peixe que nadava. Nadava sempre, mesmo que não tivesse vontade. Vida de peixe é essa, nada sempre, sempre nada. Quem os vem no rio, diz que passam a vida sem nada para fazer. Nadam, sempre, e isso, acredite-lhes, é bastante para ocupar todo o tempo.
Este peixe não nada em rio. É de água salgada, do mar. Nada em alto mar, mar aberto. Peixe solitário, via só água por meses, e meses, e meses… Isso para um peixe é bom. Perigo para o peixe é encontrar outro, maior, que o coma. Ou terra, onde encalhe. Já viu terra, praia.
Conhece navios, há gente neles. Gente. Eles vivem na terra. Queria conhecer essas outras coisas que não há no mar: a terra, as montanhas, as florestas, os desertos, como alguém pode viver onde não há água? Queria poder chegar lá onde os peixes não chegam.
Já viu aviões e passaros, eles voam. Queria pode voar como eles, ver tudo de cima, ver como é este brinquedo chamado mundo, este aquário onde estamos.
Procurando comida perto de uma ilha, encontrou um pássaro grande, parecia morto, flutuando. Tinha acabado de cair, ainda estava morno. Resolveu pegar-lhe as asas. Eram maiores que o tamanho proporcional a seu corpo. Isso devia compensar ser mais pesado que uma ave.
Lembrou-se de Ícaro. Não queria, como ele, despencar se as asas descolassem, procurou quem lhas costurasse às costas.
Encontrou um peixe sapateiro, costureiro. Ele lhas costurou com cuidado, ponto a ponto, bem fundo na carne. Não chorou. Peixes não são capazes de chorar. Vivem com os olhos molhados por outros motivos. Animais não choram. Têm o instinto de fugir, de atacar. Chorar é inutil.
As asas ficaram perfeitas! Era até possível batê-las, fraco, lerdo, sem jeito. Batiam com um movimento do que deveriam ser seus ombros. Contudo, não era o bastante pra voar. Olhou para o céu, aviões não batem asas, e voam. Não conhecia a pipa, mas ela nem asa tem para bater, e voa. Conhecia os urubus. Eles têm asas grandes de penas, e planam. Voam planando. Suas asas são secas. Ele conhecia também uma ilha pequena, com uma montanha, uns duzentos ou trezentos metros de altura. podia se atirar de lá, como já viu urubus fazerem, e planar.
Foi para lá, não era longe, mas as asas já lhe atrapalhavam nadar. Imagina nadar arrastando uma trouxa de roupas.
Chegando à ilha, saiu da água, com medo. Não sabia se podia respirar em terra. Talvez devesse ter tomado tambem os pulmoes da ave. Surpreendeu-se por conseguir. Respirar fora d’água, quem sabe, fosse um poder adicional das asas. Mas, já que podia, não se preocupou mais com isso. Preocupou-se mesmo com como chegaria ao alto da montanha. Se arrastando. Devia ter pego também as pernas. De barriga no chão, subiu. E o chão machucava-lhe a barriga. Ardia, arranhada. Começou a escolher a sombra, o barro, chão mais úmido, folhas verdes. Em alguns lugares, não havia escolha e, mesmo onde havia, o chão lhe esfolava.
Escureceu, e temeu pela noite. Faltava muito ainda. Temeu pelos pássaros. Surpreendeu-se de nenhum ter-lhe vindo comer ainda. Devia ser outro poder das asas, afastava os predadores. tomavam-no por ave? Teria se transformado em ave? Uma ave sem pernas? Sem penas? Com o escurecer, aprendeu o que é o frio. Com a noite, o que é solidão. No mar, você está sempre envolto pela água. A temperatura é mais ou menos constante. É como uma mão, um abraço, um colo. Ali, não há nada além do chão frio.
Com o amanhecer, conheceu o alívio. Levou três dias até o alto. Faminto, não sabia o que comer do caminho. Talvez as asas lhe dessem também o poder de comer o que os pássaros comiam. Mas não lhe deram o de encontrar e reconhecer essa comida. Não havia porque se preocupar em comer agora. Comida pesaria na barriga, dificultaria o vôo. Barriga vazia deve voar melhor. Se não conseguisse voar, se caísse e se esborrachasse, não seria a barriga cheia que o salvaria. Será que foi isso que aconteceu com a ave de quem pegou as asas?
Lá no alto, chegou-se a beira da ribanceira. Olhou para baixo, o verde, plantas, árvores, depois a areia da praia. Depois as ondas. Ao fundo, o mar. O mar, seu mar. A água conhecida. Olhou, pulou, de asas abertas, sem saber se conseguiria. Sem criar coragem. Coragem pra quê? Não faria diferença ter coragem ou não. Ele saltaria mesmo. E saltou, sem a coragem. Aproveitaria o que viesse. O vôo ou a queda livre.
Planou. Sem mexer as asas, conseguiu planar parecido com como os urubus faziam. Logo perdeu altura, caia suave, aos poucos, aterrisou, na areia da praia, antes do mar.
Subiu de novo. Algo havia de errado. Pelo caminho, olhou os urubus. Eles se inclinavam para subir, para descer e para virar. Daí mais três dias, quando chegou de novo ao alto, tinha na cabeça o que fazer, como fazer. Na beirada da ribanceira, teve medo. Dessa vez, teve medo. Não de se machucar. Teve medo de errar e de ter que subir tudo de novo, mais três dias. Prestou muita atenção antes de tentar. Criou coragem, coragem de tentar e talvez errar, e pulou.
Planou de novo. Foi atrapalhado tentar até conseguir. Nunca havia imaginado que o ar pudesse se parecer com a água e apoiar o corpo, as asas, servir de guia. Antes de perder metade da altura, conseguiu subir de novo. Subiu mais. Ganhou o mar. Errou uma curva, acertou outra. Retornou para sobrevoar a terra. Deu algumas voltas na ilha, por uma manhã inteira talvez, até sentir-se confiante. E foi embora.
Voou dois dias de mares.
Chegou a um grupo de ilhas. Algumas iguais à sua. Outras maiores, outras menores. Umas que eram só uma pedra. Uma grande, que parecia não ter fim.
Viu plantas, árvores e rios largos, tão largos que pareciam o mar.
Viu gente plantando na areia e nas pedras.
Viu guerra num campo verde.
Viu cinco homens esfolando uma foca, numa praia gelada. Uma praia só de neve e gelo. Cercados por outras focas, que os olhavam de perto sem medo.
Viu uma floresta cortada por vales. E nos vales, rios de água prateada, espumosa, alimentados por cachoeiras que se atiravam da ribanceira, como ele se atirou para voar.
Viu montanhas altas onde, voando, pode subir sem esfolar a barriga. E, do alto da mais alta, viu o mundo todo.
Voltou e pousou numa ilha. Uma que tinha também uma montanha de uns trezentos metros, com uma ribanceira, como a ilha de onde começou seu vôo. Não sabia se era a mesma. Tinha visto tanta água e tantas ilhas iguais, de lá do alto. Desacostumado, a visão extensa lhe tirou a referência. Estava perdido. Mas era uma ilha, como a sua de partida. E, se era igual, lhe servi igual. Pousou, no alto da montanha igual, que poderia mesmo ser a mesma.
Pousado, descansando, deixou-se ficar à beira da ribanceira. Se tivesse pernas, sentaria com elas balançando ali. Olhou as árvores, iguais a tantas, e ao fundo, o mar, o oceano, a água, como tanta água.
Estava cansado, mas não exausto. Triste por algumas coisas que viu, mas feliz por tê-las visto todas.
Cansei de revisar este aqui. E ainda acho que falta muita revisão.
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