Almoço de Giz de Cera

Eu não gosto deste restaurante, é muito metido. Se acha chique, grã-fino. Mas a comida não é boa. Me parece ser só uma desculpa para afastar o público da avenida e atrair o do bairro. A avenida é freqüentada pelos funcionários das empresas e pelos clientes. Pela molecada que a usa de ponto de encontro e vê atrás de passeio, conversa, brincar de patins e skate, tocar violão, causar, diversão gratuita. O bairro é habitado pelos boyzinhos e pelas patys metidas a grã-finas, como este restaurante. O dono do restaurante não deve gostar da molecada. Quem mora no bairro não gosta. Ele deve morar nele.

Os garçons atendem mal, não dão atenção, torcem o nariz para quem pede as coisas mais simples, para quem não pede álcool e para quem recusa sobremesa. Demoram a atender. E a fila para conseguir mesa é grande. Não que faltem mesas, o lugar nunca lota, mas a menina que atende na porta e indica as mesas também atende mal.

A comida daqui é normal, tirando os pratos que tem bredo (folhas, mato). O bredo sempre vem encharcado. O preço é normal também, nisso não exploram.

Eu quando venho aqui me sinto como se estivesse fazendo cerimônia para comer bandejão. Aliás, raramente me lembro que ele existe. Lembrei-me hoje porque alguém da turma quis vir almoçar aqui. Disse que queria salpicão, com frango, pedaços de maçã, e que aqui tem. Tem sim, já comi uma vez, tem mais de quinze anos isso. Veio encharcado numa maionese rala, parecia lavado como o bredo da salada.

No caminho, já pensei no que pedir, na calçada ainda. Salada não. Hoje não seria salada meu almoço. Azar meu, pausa na dieta por hoje. A alface nadadora me deixaria mais mal-humorado ainda. E ninguém tem culpa de eu ser mal-humorado. Peixe, adoro peixe, e legumes cozidos, também adoro. Legumes na manteiga. Manteiga é tudo de bom, por isso faz tão mal. É um pedido simples, não há como errar, e eu gosto bastante. Se bem me lembro, e não mudaram, tem no cardápio.

Tem sim. Tem o meu peixe e os meus legumes. Tem também o tal do salpicão, num sanduíche? Sanduíche de salpicão, fico imaginando como que foram inventar.

O resto do pessoal demorou bastante analisando o cardápio. Cardápio que demorou a chegar, quando chegou já estavam todos com telefone na mão, teclando, provocando quem não veio conosco. Quando o garçom os colocou na mesa, ríamos das besteiras que dois de nós, um de cada lado da mesa, diziam assincronamente um ao outro, teclando. Quando foi embora, com os pedidos anotados, estávamos dispersos, cada um já teclando, jogando ou olhando algo diferente no telefone, menos eu. Não sei porque vim a um restaurante que eu não gosto, se minha companhia vai ser só o telefone, e a comida que eu poderia ter pedido noutro lugar.

Lembrei-me da primeira vez em que vim aqui. Ou melhor, acho que foi a terceira. Um amigo, então, pegou algo de entre os guardanapos e a galheteira e riscou o papel manteiga que cobria a toalha. Um lugar tão metido a besta e usam papel manteiga para proteger a toalha! Ele começou a riscar algo no papel manteiga e disse: “Os restaurantes agora têm isso de deixar um potinho com giz de cera para os clientes rabiscarem enquanto esperam.” Eu nunca tinha visto antes mesmo.

Lembrei-me do episódio com o amigo e procurei pelo giz. Tinha um potinho na nossa mesa. Com uns pedaços de giz. Azul, um azul claro, aguado, de um giz vagabundo, que parecia cor de roupa desbotada. Amarelo, de um giz grosso, do bom. Um toco do giz vagabundo também, preto, e outros, maiores, salmão, ou creme. Tinha também um quase inteiro do giz grosso que parecia de um preto diferente. É engraçado falar em preto diferente. Na escola ensinam que preto é preto, não tem tons, todo preto é igual. Mas, a gente, que não entende disso, sabe que há vários pretos diferentes.

Peguei o giz preto ruinzinho. Ele tinha umas rebarbas finas, servia para esboçar. Fiz um risco fraco, rápido, de lado a lado, para ser o chão. Saiu grande, muito curvado. Eu devia ter pensado melhor e feito devagar. Agora não dava para apagar. Nem sei se eu precisava mesmo de chão. Isso reduziu bastante os desenhos que eu podia fazer. Agora tinha de ser algo no chão. Árvore, casa, flor… Tudo isso isso de desenho com chão é coisa tão batida, infantil!

Ficou difícil encontrar algo diferente. Desenho meu não pode ser como os de todo mundo. Tem de ser do meu jeito! É um jeito que não é fácil. Pra quê complicar tanto? Fiz um palito saindo da terra. Displicente. Saiu torto. Achei melhor fazer outro, em paralelo. Ia ficar um tronco grosso. Tronco de árvore. Uma árvore como as outras de desenhos de desenhos de árvores, todas iguais. Talvez até fizesse uma maçã no meio da copa verde. Não, não podia.

Olhei os outros na mesa, só levantando um pouco os olhos. Depois olhei de novo meu tronco. Podia fazê-lo pelado, de árvore morta. Algumas aves, urubus, corvos, pousados num galho, voando, em revoada, vindos de fora do papel até pousarem juntos num dos galhos secos. A idéia era boa. Mas não sei desenhar como ela merece ser desenhada. Essa idéia eu tinha de guardar. Não ia pegar o telefone para anotá-la. Pensei que tinha de me lembrar dela depois. Talvez assim me lembrasse. Se não, eu também não saberia desenhá-la. Isso não demorou tanto assim para eu pensar.

Em vez disso, sem galhos, fiz uma linha rodada, em caracol, como aquela jogo de amarelinha das meninas, no lugar da copa da árvore. Ficou parecendo um pirulito grandão. Um pirulito enorme, do tamanho de uma árvore. Uma árvore de copa de pirulito colorido. Meu pai vendia desses pirulitos no comércio dele quando eu era pequeno. Ninguém comprava por gostar. Era pelo gosto de andar pela rua com um pirulito grande, colorido, que não cabia na boca, igual aos dos desenhos animados.

Eu me lembrava dos pirulitos serem listrados, fiz as listras, como de uma cobra coral enrolada. Uma árvore de pirulito de cobra coral. Não, era só uma árvore, de copa de pirulito, como tantas outras. Achei engraçado, divertido, até me esqueci das cores. Não eram muitas. Como eu ia pintar aquilo? Amarelo, azul calcinha, salmão, preto… Não são cores de árvore, nem de pirulito… Não são cores bonitas, tirando o preto. Mas preto nem cor é. Eu usaria o preto grosso para o contorno.

Tinha de me virar com o azul, o amarelo e o salmão. Não são muita opção. Testei o amarelo. É uma cor estranha, na luz fraca dali, luz amarelada, que ironia, não dava para ver a cor direito. Xinguei. Fiquei só com o azul e o salmão. Fiz o pirulito alternando os dois pelas listras. Azul, salmão, azul, salmão, azul… Ficou uma copa de pouca cor, doente, de azul e rosa lavados. Achei melhor pintar o tronco com o giz preto que eu usei para esboçar o desenho. Pintando com o giz frouxo, ficou um cinza, um sujo. Dá para enganar que algumas árvores, no escuro, têm os troncos, as cascas, assim.

O chão deveria ser verde. Experimentei num canto do papel o azul com o amarelo para ver se ficava. Ficou uma coisa esquisita. Os dois gizes, de marcas diferentes, não se misturavam. Foi o chão azul, sem poesia, sem fantasia, que me impressionou. Não era nada, só um azul clarinho, sem vida, que eu não podia transformar em nada. Não dava para fingir que fosse um chocolate, nem um lençol ou um teclado de piano. Quase parei, mas a comida não chegou e todos jogavam, descaradamente, em seus telefones.

Peguei o preto grosso para contornar. O desenho estava feio, um esboço pintado com cores feias, mortas, tristes. Mas com um contorno forte, preto, todo desenho fica legal.

Comecei o contorno pelo tronco. A princípio pereceu legal mesmo, mas quando passei para o contorno do chão, a surpresa me decepcionou, o giz não era preto, era azul marinho. Eu devia ter percebido antes. Olhei o desenho antes de terminar. Antes de terminar o que conseguisse até que chegasse a comida.

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