Eu subia a rua de casa, de paralelepípedos ainda. Já há uns quinze anos que os cobriram com asfalto. As travessas ainda são de paralelepípedos, mas a minha rua não mais. Naquele dia, porém ainda era.
Era dia, tinha sol, embora eu me recordasse de ter saído do trabalho à noite. Talvez tivesse trabalhado de noite e estava chegando em casa de manhã. Ou tivesse passado a noite na gandaia, embora creia nunca ter feito isso.
À minha esquerda, onde hoje há aquele condomínio grande, era só grama. Mato bem cuidado, não muito alto, algumas touceiras de erva, arbustos. Meia dúzia, talvez uma dúzia, de árvores. Engraçado, também não me lembrava de ter conhecido ali assim. Pensei ter conhecido o bairro já depois de terem construído o condomínio.
Perto da calçada, uma vaca pastava. Parecia a vaca da capa do disco do Pink Floyd. Mas aquela olhava para trás, por cima do ombro que as vacas não têm. Está pastava, de cabeça baixa. De comum, estava de costas para mim, como a outra na foto.
Mais à frente, próximo à esquina, debaixo de três árvores que estavam muito juntas e faziam sombra, três vacas, ou touros, ou bois, se cobriam. Os três, um sobre o outro, empilhados. Achei graça, também lembravam algo do disco. Ri. Balancei a cabeça em “não”. Por que não? Por que uma coincidência dessas não podia ser coincidência? Um carro freou em cima de mim. Quase me atropelou. Ele subia a travessa, eu atravessava, sem olhar, pensando nas vacas. Lembrei-me de quando, brincando, meu irmão jogou uma tora em mim e me abriu a cabeça, quase fui atropelado atravessando a rua, correndo pra casa. Depois lembrei-me de quando ele atropelou a lateral de uma Kombi, fugindo de mim depois de me dar uma pedrada.
Acho que fiquei branco. Senti aquele gelo da falta de cor de quando se fica branco de susto, de medo. Acho que molhei a calça. Devo ter molhado nessas vezes também. Mas olhei, passei a mão, e não percebi nada.
Lembrei do carro que quase me atropelou, e eu parado ali na frente dele. Que indelicadeza! Não prestei atenção, ele conseguiu parar sem me atropelar, e eu parado atrapalhando, pensando em histórias de infância. Olhei para o carro. Ele já tinha ido embora. Não estava mais lá. E eu nem me desculpei.
No quarteirão seguinte, numa casa baixa, terreno rebaixado, em frente à árvore podada, esculpida pelo jardineiro, uma mulher, sentada na soleira da porta, dava o peito a uma criança. O pai, do portão, gritava com ela e com criança: como podia dar o peito para a criança, se havia aquele cheiro de esterco de vaca pelo ar? Ele tinha razão. As vacas tinham deixado um esterco fedido pela rua toda, o cheiro dava náusea. A criança não merecia mamar cheirando aquilo. Ninguém merecia, nem andar na rua com aquele cheiro.
O pai segurava uma pipa. E uma lata, com linha. Um barulho de moto e ele vira gritando. O motoqueiros freou, quase caiu. Havia linha passada de um poste a outro. De um lado a outro da rua. O pai devia estar passando cortante na pipa. Ignorante, sem razão, ainda xingou o motoqueiros que quase foi degolado pela linha do pipa: “Motoqueiro maldito, vocês não tomam cuidado?” O motoqueiro viu que o sujeito era ignorante demais pra se discutir com ele. Desceu da moto, se abaixou, passou por baixo da linha e foi embora.
Olhei para meu prédio, estava quase lá, para minha janela, num dos andares mais altos. E pensei ver, no alto do prédio, de novo, as vacas que pastavam e se cobriam. Distraí-me com um pássaro que passou voando baixo, e me esqueci delas. O pássaro era muito grande, branco, tinha algo nas costas.
Representou-me um cisne, o que acho ser um cisne, pois nunca vi um. Só os vi em desenhos. Lembrei-me do cisne de Lohengrin. É uma história de amor bonita. Lembrei de meu amor. Vontade de vê-la, há muito não a via. Tive medo de ficar maluco e não vê-la nunca mais, e também de não vê-la e isso me deixar maluco. Se eu fosse Lohengrin, ou seu cisne, eu nadaria qualquer mar, voaria o céu, se não houvesse mar, para vê-la mais e conversar com ela ainda mais.
O pássaro voou para o horizonte, por entre os prédios, seguindo a rua. Perdi-o de vista, ofuscada por um Sol enorme que já baixava. Gosto do por-do-sol. Atravessando a rua para entrar no prédio, uma revoada de pássaros, cortou minha frente cantando. Já no quintal, tive impressão de atrás de mim, na calçada, onde havia passado a revoada de pássaros, outra revoada, agora de crianças, passar também cantando. Cantavam boa tarde, boa noite.
No elevador, quando entrei, já la estava uma garota. Eu a conhecia, e a queria. Quando a porta fechou, enfiei a mão por baixo de sua saia, por trás e puxei-a para mim. Ela deixou. Abri-lhe a camisa com uma mão e, com a outra, comecei a descer-lhe a calcinha. Ela só deixava. Beijei-a. Ela abriu a boca e deixou minha língua entrar. Incomodei-me com a passividade. Achei estranha. Parei, com raiva, e deixei-a.
Ela, rejeitada, desconcertada por ser rejeitada, não deve estar acostumada, arregalou os olhos, assustada e chorou. Não por perder-me, chorou por decepcionar-se, por perceber que não está acima de ser rejeitada. Com pena, e raiva da pena, tentei consolar-lhe. Que ficasse no elevador. Talvez ainda na mesma noite, encontrasse alguém com quem ficar. Ela me xingou. Minha pena passou, sobrou indiferença, e nem xinguei de volta. Saí do elevador no meu andar.
Entrei em casa. O café da manhã estava na mesa, pronto, à luz de velas. Tinha tudo, pão com manteiga, bolo, peru recheado de casaca e gravata borboleta, dois drinks coloridos, fluorescentes. Uma luz de boate dava movimento à sala onde a mesa estava posta. Duas pererecas bêbadas dançavam ao som das notícias de ontem no jornal da manhã, no rádio.
Chegando em casa, eu sempre vou ao banheiro. Gosto de tomar uma banho para descansar depois de ter suado na rua. Vou jogando a roupa pelo caminho, quando estou só de cuecas e meias, passo pelo quarto, coçando uma espinha que me nasceu na cotovelo. Há algo estranho no quarto, dou meia volta e olho para dentro dele.
Havia uma mulher dormindo na cama. Nem era a minha cama, mas estava no lugar da minha. A minha é de casal, esta era de solteiro. A roupa de cama, branca e muito florida, eu nunca compraria nada assim, não era minha.
A mulher falava dormindo. Eu queria uma explicação para ela estar ali. Aproximei-me e ouvi o que falava. Ela perguntava porque as vacas se cobriam e, depois, gritou “Cuidado!”, duas vezes.
Falou do cisne de Lohengrin, pediu que conversasse mais, elogiou o sol gordo, deu boa noite aos pássaros e às crianças. Perguntou do que eram os drinks do café da manhã e pediu para as pererecas aumentarem o som do rádio. Queria ouvir as notícias e dançar também.
Reconheci o que falava e, boquiaberto, parei. Tinha de sair dali logo, sem fazer barulho, com muito cuidado para não acorda lá. Disso dependia minha existência. Reconheci-me. Eu não sou mais que um sonho dela.
Uau! Tive que ler e reler esse texto… Pura magia, imaginação….
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Ainda tenho muito mais idéias pra rechear ele. Se fizesse com todas elas, ia parecer um diário.
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