Pedróquio

Parecia que brincava, e brincava mesmo. Eu peguei um pedaço de barbante, a avó ficava danada de eu acabar com o barbante dela, não sei por quê, nunca a usando barbante para nada. Prendi, na ponta do barbante, uma latinha de leite condensado. Vazia. Furei-a com prego, a marteladas. Passei o barbante pelo furo, de dentro pra fora. Fiz uns três ou quatro nós na pontinha que ficou para fora do fundo da lata. Não ficou muito equilibrada, Deitava mais para um lado do que para o outro. O furo estava torto. Não fazia diferença.

Passei o barbante por cima do varal, icei a latinha a mais ou menos um metro do do aquaradouro, e amarrei, com um laço parecido com o dos sapatos, a outra ponta na treliça da lavanderia. Meu avô, do outro lado da treliça, sentado, fumando, ouvia rádio. Ele ouvia rádio a manhã quase toda, depois de tomar café e cuidar dos passarinheiros. Meu avô era do rádio, do futebol e dos passarinhos. Criava canários, vários, num viveiro grande, do tamanho de uma piscina. Tinha também um sabiá, mansinho numa gaiola grande. Teve um papagaio, mas eu não o conheci.

A latinha, pendurada feito pêndulo, virou um. Balançava-a, Criança precisa de coisas assim, banais para ser feliz, nós adultos é que complicamos tudo. Inventamos uma coisa a que chamamos ambição e a usamos para justificar nunca estarmos felizes com nada. A latinha sozinha não servia à minha brincadeira. Do jardim da frente, peguei algumas pedras, meia dúzia, pequenas. Aumentaram o peso da lata, não a estabilidade. Para alinhá-la, não que precisasse, mas é uma questão de estética, você entende… manipulei o barbante dentro da lata de modo que as pedras lhe torcessem um pouco. Torcido, ele tomou a forma, a posição, em que a latinha parecia alinhada. O suficiente para que, se solta, caísse de fundo, não de quina.

Retardado que sou, todo moleque é, peguei o estilingue, outra pedra e brinquei de acertar a lata. As duas primeiras pedradas esfolaram a parede abaixo da treliça. A terceira acertou a própria treliça. O barulho de martelada na madeira, assustou o avô e o periquito da madrinha, sua gaiola ficava pendurada por dentro da treliça. Tomei bronca. São as coisas que nós fazemos antes de crescer e perceber que mais coisas à nossa volta do que nossas próprias brincadeiras. Ainda assustaria ao avô, e ao canário, outras vezes, noutros dias, até aprender isso. Naquela manhã, o medo de outra bronca me desviou da brincadeira.

Sentei no cimento, entre a treliça e o aquaradouro, com o banquinho que o padrinho me fez. Não sentei no banquinho. O fiz de mesa, para a massinha de modelar. O banquinho ficou na grama do aquaradouro, embaixo da latinha pendurada. Eu sentado no cimento, pra evitar as formigas e pôr as costas na parede.

Não era só um resto de massinha, mas era aquela fase em que as cores estão já todas misturadas. Formam uma massa só de cor indefinida, mais escura que bege, mais clara que marrom, cheia de restos coloridos que ainda não se misturaram inteiros. Eu precisava de uma personagem para brincar comigo. Qualquer um. minha brincadeira precisava de um companheiro. Eu precisava de um companheiro de brincadeira.

Nunca fui artista. Agora menos ainda. Quando pequenos, ainda temos a desinibição de fazer as coisas, achando que, ainda um dia, aprenderemos a fazer direito. Talvez desinibidos, porque ninguém liga, só nos querem quietinhos no canto, brincando, sem dar trabalho. A criança pode fazer o que quiser e mostrar só se achou bom. Adultos, temos vergonha de nós mesmos vermos que não fique. Não deveria interessar como fica. O importante deveria ser a brincadeira. Adulto tem medo de brincar.

Meu amigo de massinha, no começou, pareceu ser uma batata, cheia de marcas de dedo. Depois um cone. Depois outro tubérculo qualquer, sem espécie definida. Uma batata e uma batatinha. É difícil o trabalho de criança. Experimente dar forma a um amigo de massinha. Não são fáceis de se fazer. Molda a perna, falta massinha na barriga. Faz o nariz, a bochecha amassa. Não é só conseguir fazer a amizade. Há de tomar cuidado para não arruiná-la com um amasso desmedido no lugar errado.

O meu amigo se parecia, a certa altura, com um boneco de neve pardo. Acho que é assim que todos eles devem se parecer. É um desafio, não rir dele, chamá-lo de amigo. A madrinha passa e dá risada. Ela não é amiga dele. O amigo sou eu. Eu não posso rir. Respeito-o. Respeitá-lo é respeitar-me. Não preciso olhar feio para a madrinha. Ela sabe que é inconveniente e sai.

Cansei de tentar moldar-lhe braços e pés. Não venço fazer e consertar. Ponho a mão suja no short. Ele fica sujo também. Vai ser outra bronca. Será que nunca vi, na televisão, fazerem um, para lembrar-me do passo-a-passo? Na televisão não. Nem no Bambalalão, no Daniel Azulay, nem nos filmes e desenhos. Nesses, não mesmo. Filmes e desenhos americanos. Acho que americanos não brincam de massinha, devem ter algo mais avançado. Eles fazem bonecos de neve. Meu amiguinho, assim, com poucos detalhes, parece um. Um boneco de neve bronzeado. Como pode? Isso os americanos não podem ter, se não têm massinha.

Os bonecos de neve dos filmes não têm braços e pernas de neve. Fazem-lhes os braços de galhos. Pernas, não me lembro de ver em algum, na televisão não. Nariz de cenoura. Olhos de pedra. Cachecol de cachecol. E cartola… Onde eu arrumaria uma? Não precisa. Esta é uma brincadeira informal, e é minha. Eu não quero ninguém de cartola por aqui.

Fui ao pé da pitangueia, minha avó só tinha uma, meu pai tem várias, procurar um graveto que servisse de esqueleto para os braços. Achei um, cor bonita inclusive, cor de madeira. Nem sempre madeira tem cor de madeira. Quem procura um graveto sabe. A gente olha, olha, alguns são escuros, outros sujos, muitos são desbotados, estão molhadas, suas cores não são a da madeira. Encontrar um bonito, com a cor certa, não é fácil. Eu não exigia muito. Logo de cara, por coincidência, vi um bonito, saudável e limpo. Mais ou menos do tamanho certo. Caído no chão no meio de outros gravetos e folhas. Precisava ainda trabalhá-lo um pouco.

No quarto da madrinha, eu tinha uma caixa de papelão com algumas coisas minhas. Lá estava meu canivete. Eu tinha um canivete pequeno, de cortar fumo, foi de meu avô, ele me deu. De certo, achou que eu um dia fumaria com ele. Não foi o caso. Voltei para o quintal. Com o canivete, desbastei o graveto. Era pequeno, uns vinte centímetros. Cortei-o em dois. Pareciam dois braços mesmo. Um com uma mão de forquilha de dois dedos. Outro com três dedos na mão. O de dois dedos era maior, mas o de três tinha cotovelo. Ficaram assim os braços.

Meu amigo ainda não era gente. Não tinha nome, nem olhos, nem nariz. Nem eu era Gepetto ou fada-madrinha. Não foi difícil encontrar pedrinhas miúdas. Nem precisavam ser tão miúdas. Duas brancas foram os olhos. Uma preta, o nariz. Uma unhada fez a boca, meio torta. Os olhos de pedra me pareceram piada: Pedróquio. Chamei-o. Ainda assim não era gente, nem eu Gepetto.

Meu amigo estava pronto e já podíamos brincar.

Excitado, puxei a ponta do barbante junto à treliça. O nó se desfez e a latinha, com o peso das pedras caiu quase em cheio na cabeça do Pedróquio. Esmagou bem. Ficou parecido com uma panqueca bem grossa, com os pães de batata de minha avó. Depois veria que o fundo da lata ficou gravado, como sinete, nele.

A madrinha riu: “Que burrico! Tanto trabalho e fez isso?”

Ela não era mais criança. Não sabia mais que essa é que era a graça da brincadeira.

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