Tem coisa que a gente faz sem saber porquê. Eu fiz, ou faria, uma agora há pouco.
Cabeça vazia é oficina do demônio dizem. Eu já concordo com isso. Nem sempre concordei. Hoje sei que cabeça vazia não pensa. E quem não pensa, todos sabemos, é vegetal. Gente não é vegetal. Não pode ser. Tem de pensar, para não ser, para ser gente.
Às vezes, e todo mundo passa por isso, a gente não quer pensar porque pensar força, a cabeça pode doer. Se doe, sempre se pode procurar uma distração. Mas que seja uma distração que não atrapalhe pensar.
É assim, pensando, com a cabeça doendo, e dói muito, muito mesmo. Antes seja a cabeça a doer, não o coração, este só me aperta. Doer, quem dói agora é só a cabeça. É assim, pensando, que eu peguei o livro de receitas. Não tinha fome. Dor de cabeça embarga o estômago. Folheei sopas, saladas, guarnições, massas… Folheei página por página.
Não vou dizer que o verde das folhas de verdura não tenha trazido algum conforto aos olhos. Aos olhos sim. Não prestava atenção. Sei a ordem das sessões, depois, porque este livro é meu velho conhecido. Lembro-me da cor verde, só pode ter sido nas saladas, talvez não.
As partes de que mais gosto são a de carnes e a de peixes. Aves tenho nojo. Coisa de quem conheceu produção. A sessão de aves fica entre as duas. Não me lembro de ter folheado nenhuma delas, mas o fiz, estavam ali, como em todas as outras vezes em que peguei este livro. Não podiam, sem mais nem menos, ter saído para passear logo hoje. Não podiam, creio eu. Creio, só creio, não sei, não notei.
Depois vêm as seções de sobremesas e de bebidas. Essa última não ensina a fazer as bebidas. É apenas um guia do que combina com o quê. Fala de cervejas e vinhos. É sutil demais para mim, parece ter os mesmas dicas para todos os prato. Não entendo, é complexo demais para mim. Bebo o que gosto, não importa o prato. Nisso simplifico, se me sabe bem, não ligo para o que diz o especialista.
Mas não cheguei a essa sessão, a das bebidas, ela é a última. No meio das sobremesas, e eu não queria sobremesa, meus olhos bateram numa foto linda! Precisava fazer aquilo. Era o que eu precisava, antes mesmo de ver a foto. Agora, olhando a foto, a página da receita, e nem escrita era, apenas um montagem, fazê-la era necessário.
Corri pegar as chaves para sair, o chaveiro de prender no cinto. Eu estava de moletom, o moletom velho que uso de pijama. Não se usa cinto com moletom. Pus o chaveiro no bolso. Quase saí de chinelos. Não se pode dirigir de chinelos. Do cesto de roupas sujas peguei as meias que tinha usado de dia. Já tomei banho, é nojento, mas tenho pressa. Calcei as botinas. O figurino é bizarro: camiseta velha, moletom esgarçado, botinas. Saí. Corri, ou melhor, dirigi para o mercado.
As compras eram simples, uma bandeja de frutas e uma barra de chocolate. Não precisava comprar mais nada. Ainda assim, demorei escolher. Podia pecar pela demora, mas as frutas tinham de ser as mais vermelhas e suculentas, grandes, limpas, as melhores que encontrasse. Não eram para qualquer coisa, nem para qualquer um. Eu tinha de escolher. Escolhi. Demorou. Devo ter pego todas as bandejas antes de decidir. Ainda assim, decidi pensando que em algum lugar do mundo devia haver melhores. O chocolate, já sabia qual queria, foi rápido.
Na fila, impaciente. Tive medo de esquentar as frutas ou derreter o chocolate em minha mão, pousei-os. O cliente à minha frente notou minha pressa talvez. Passei as compras e paguei, cartão, não me identifiquei na nota fiscal. Digitar onze dígitos ia me atrasar.
De volta, na cozinha, ralei o chocolate, deixei para derreter em banho-maria. Lavei cada fruta, com carinho. Há de se ter carinho no que se faz com carinho. Há-de se fazer, e fazer com carinho. O que importa é o que se faz e como se faz. Do que fica de lado não importam o como nem as intenções, não foi feito. Cortei aquela coroa verde das frutas, mas não as piquei. Inteiras, ficam mais difíceis de enfiar na boca, mas são bonitas e parecem suculentas quando as mordem. Deixei-as inteiras, arrumadinha numa pequena terrina redonda. Na disposição que escolhi, pareciam pétalas de uma flor. De uma flor vermelha. O chocolate já estava no ponto. Derramei-o. As pétalas agora estavam lambuzadas. Não era muito chocolate, podia enjoar, não era o que queria. Essa flor não tinha miolo, improvisei um com um montinho de açúcar. Ficou bonita. Achei que ficou, talvez tenha achado por ter sido o autor. Achei bonita minha flor de morangos com chocolate.
Com o chocolate ainda morno corri para a janela. Coloquei a pequena terrina no canteiro, no meio das plantas. Preparei dois cafés, sem tirar os olhos dela. Imaginava a visita que eu queria que, voando, viesse experimentá-la.
Que delicia!!! Morangos e chocolate! Perfeição! Aposto que dois cafés foram poucos para o dizendo chocolate rsrs
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Acho que a companhia veio.
Não vi se voando rs
Só um dos chocolates era pra mim.
“Dizendo” ?? rs
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Erro de digitação… Para “tanto”
Chocolate era o que eu queria dizer! 😉
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Era pouco chocolate. rs
Tem os morangos pra quebrar o doce.
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