Eu não entendia direito por que não podíamos comer os morangos.
Morango, na década de 80, era coisa chique! Não vendiam na feira, nem nos mercados de bairro. Hipermercados eram coisa que ainda não existia. Eu só via morango na TV, nas revistas, ou no Ceasa, quando ia com o pai passear. Pobre, então, passeava no Ceasa, dava pra fazer feira mais barata, comprar peixe fresco e, ainda por cima, xeretar o Feirão de carros e os boxes que vendiam bichinhos, de estimação ou para criação.
No Ceasa, havia morangos, mas o pai dizia que era coisa muito cara! Comprávamos outras coisas que ele dizia que eram caras: palmito, uva, algumas vezes até alcachofras, mas morangos não.
Na casa de minha avó, nasceu um pezinho. Miúdo, miúdo, morangos mais verde-brancos do que os vermelhos que apareciam nas fotos e na TV. Nem pareciam a mesma fruta. Nasceu no fundo do quintal, embaixo da romãzeira, ninguém sabia como. Ninguém plantou.
Talvez algum egoísta tivesse arranjado um morango, sabe-se lá como e, prevendo que teria que fatiá-lo bem fininho para repartir com todos, tenha se escondido no fundo do quintal para comê-lo. Depois descartado o resto, aquela coroa verde, na terra.
Ou o vizinho, ou uma ave. Todos da família juravam não saber como, aquilo que pensávamos a princípio ser boldo, sálvia ou alguma outra erva pra chá, nasceu ali, logo ali.
A madrinha foi quem primeiro reconheceu a planta. A casa da avó tinha outra casa no fundo, que era usada para guardar as bagunças. Minha madrinha usava o único cômodo dessa casa como sua oficina de costura. Ela havia sido costureira profissional, de couro, e tinha por hobby costurar para a família. A antiga máquina de costura alemã fica junto à janela. Sentada costurando, a madrinha mal tirava os olhos do pezinho de morangos. Sempre foi assim, eu me lembro, antes mesmo do pezinho nascer, ela costurava olhando, sempre que conseguia, ali para onde depois nasceu a planta.
A avó foi quem explicou, um dia em que achou que não agüentaríamos a vontade: “Não pega isso, filho. Aí, vosso avô enterrou a Lady.”
Agora sabia porque dali não podíamos comer nada.
Lady era o nome da cadelinha da madrinha. Não a conheci. Mas a vi em fotos, no colo, no ombro, no braço, não arredava de perto da dona. Minha madrinha logo saia de perto quando uma foto dessas aparecia. Chorava baixinho.
Eu tive cachorros, mas não entendia o apego dela à bichinha.
Foi a avó também quem entregou a história, muito tempo depois. “Vossa madrinha, teve um noivo. Um pouco antes do casamento, uma mulher veio em casa, esperou-a chegar. Quando a madrinha chegou, a mulher lhe disse. Contou que era da vida e que dormia com ele, que não largaria de dormir com ele para que se casasse com ela. Que onde ela fosse, onde ele fosse, um jeito ela daria de ele continuar a dormir com ela. Que não se iludisse, ela seria o próprio cão infernizando vida dela e até acabar com aquele casamento.”
A madrinha, tão triste ficou, não quis mais saber de casamentos, de homens, de nada. Perdeu o apetite, adoeceu. Meu avô e meu pai tiveram ganas de matar o sujeito.
Um dia, costurando à janela, ouviu alvoroço na casa da vizinha. Correu olhar pensando que alguém precisava de ajuda. Não era alguém, ou melhor, o alguém não era pessoa. A cadela da vizinha havia dado cria. Era uma dessas tipo vira-latas que chamam de fox paulistinha.
Limparam os filhotes e os puseram para mamar. Eram quatro. A madrinha se emocionou quando os vi ali, espremidos no quentinho dos irmãos e da barriga da mãe.
“Três já têm dono. Quer ficar com o outro?”
A madrinha logo aceitou, impulso. Calhou-lhe uma fêmea. A filhotinha recebeu o nome da protagonista do desenho animado. A Dama e o Vagabundo, Lady.
Foi companheira para tudo por quase vinte anos.
Quando morreu, meu avô enterrou-a onde ainda fizesse companhia, ao menos durante as tardes de trabalho na costura. Acho que, por isso, ela costurava tanto.
Não… Esse morangos não podiam ser comidos! Eram as borboletas da Lady!
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Eu me lembrei dela triste quando nos mudamos.
Agora deu vontade de chorar.
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