Televisão era uma coisa muito séria em nossas vidas de crianças. A mãe dizia que era culpa do avô. Funcionário mais antigo da Phillips na época, ele ganhou uma das primeira televisões logo que a companhia as começou a fabricar aqui no Brasil nos anos 50. O aparelho, uma caixa grande de madeira envernizada com tela grande de tubo tinha número de série 0004. O avô dizia que as três primeira tinham sido presentes para o presidente, para o governador e para o prefeito, e a quarta para ele. O avô, hoje eu sei, era paieiro mas eu nunca deixei de acreditar na história. Eu usei esse aparelho até meados dos anos 90, quando a avó faleceu e doamos para os franciscanos o que havia em sua casa. A televisão foi junto.
À tarde, nós tínhamos uma rotina de fazer lição, brincar e tomar café, que eu, orgulhoso, requentava, com leite, que eu também fervia, e pão com margarina, que chamávamos de manteiga. Depois do café, era a hora da televisão do fim dar tarde. Os programas tinham uma seqüência da qual já não me recordo direito. Era algo como: Bambalalão (no 2), Sítio do Pica-Pau Amarelo (no 5) e a Feiticeira (no 13). Depois vinham as novelas, enquanto estudávamos mais, o Jornal e mais uma novela. Jantávamos durante o jornal porque a mãe não gosta “de ver essas tragédias”.
Dos programas todos, gostávamos mais do Bambalalão, que depois descobrir que era filmado ao lado da minha faculdade, por atores do teatro da Taib. Do Sítio também gostávamos muito. O resto era para preencher o tempo já escuro antes de dormir.
Eu me confundia muito com o Marquês de Rabicó. Aliás, ele era quem me confundia. Em alguns episódios, era um ator com maquiagem, noutros um fantasiado que parecia uma bola amarela de pilates, acho que tinha mais um que parecia cofrinho. Eu nunca os reconhecia. As outras personagens, eu, mesmo pequeno, reconhecia todas: o Saci, a Cuca, o Cacareco. Até a Emília, que acho que teve mais de uma atriz.
A única, única, personagem do Sítio que eu nunca nem vi foi o Curupira.
Não sei como começou isso, mas sempre que anunciavam o Curupira nos créditos iniciais, ou quando tocava seu tema, ou quando queriam se divertir às minhas custas, os irmãos se viravam para mim desesperados: “O Curupira! Se esconde, rápido!”
O lugar para me esconder eu já tinha certo. Era a caixa onde guardava meus gibis. Era uma caixa muito grande de papelão, encostada na quina da sala de onde não se via a televisão. Ficava deitada como uma casinha de cachorro com a abertura virada para a janela, para deixar a luz entrar. Os gibis, eu os deixava empilhados como se fossem camadas de tijolos de suas paredes. Para as horas de bode, ou para as e ameaça de Curupira, tinha uma lanterna e um cobertor velho, grosso, que eu usava como porta para me isolar do mundo de fora.
Fechado ali, dava para imaginar, só imaginar, os fantasmas, bruxas, demônios, e curupiras voando em círculos do lado de fora, sitiando-me como urubus aguardando a vulnerabilidade da presa.
Meus irmãos fingiam preocupação e querer ajudar. Se eu puxava para o lado uma pontinha do cobertor para perguntar se podia sair, eles corriam, como quem acode, “Não, não, o curupira.” “Agora pode.” E então, para meu desespero: “Entra de novo. Ele voltou.” Eu rapidinho entrava e me encolhia.
Ficava de costas para a saída. É engraçado, bobo, pensando bem agora. É como se as costas não fossem parte de mim. Como se eu fosse apenas minha frente, o que eu conseguia ver de mim mesmo. E fazia igual a um tatu enroladinho em sua toca, oferecendo ao desconhecido sua carapaça resistente. Se pudesse cavaria mais fundo me beco sem saída, juntaria mais gibis para estreitar o espaço. O cheiro do papelão da caixa e do papel envelhecido dos gibis faziam-me sentir entre amigos. Que assim fosse impossível de algo dar a volta em mim por algum vão e mostrar-se a meus olhos.
Não tinha medo do escuro, como seria de se esperar de uma criança. Muito pelo contrário. Não acendia a lanterna porque meu medo era de que algo pudesse me aparecer à frente e eu não o visse.
Enterrado em minha caixa, no beco sem saída que construí, com calor e as costas doendo de ficar encolhido, estou acomodado. Tranqüilo de que nada desconhecido me surpreenda. Posso ficar ali o resto da vida. O resto dos tempos. Seria enterrado ali.
Talvez essa caixa fosse um dia meu caixão.
Fosse-me dada a escolha, acho que concordaria.