Edward scissorhand

I am not complete.

A Cá era uma menina da minha escola. Fizemos colegial juntos na mesma classe, os quatro anos. Os três primeiros à noite, o último à tarde. Na minha escola, escola técnica, o colegial tinha quatro anos. O pessoal achava que eu gostasse dela. Teve até uma vez em que uma amiga em comum me viu chateado e veio me falar que já tinha percebido que eu estava chateado pela Cá estar namorando. Eu fiquei bravo. As pessoas assumem como verdade as coisas que imaginam e tentam pescar alguma oportunidade para imaginar mais algo que sirva como evidência. Isso aconteceu até com o namorado dela que, antes de me conhecer, queria me bater, de tanto ciúme do quanto a Cá falava de mim.

1990 - Edward Scissorhands

Cá era muito legal, um amor de menina, mas antes de descobrir isso, eu já tinha me interessado por outras garotas. Ela era magrinha, branquela. Não era exatamente meu tipo. Acabamos ficando amigos. Voltávamos juntos da escola, conversávamos bastante. Enquanto as outras meninas só falavam de dançar, comprar roupa e namorar, ela estava sempre preocupada com alguma coisa dos irmãos menores, tinha seis. Era crente, por decisão do pai, desde quando tinha uns dez anos de idade, mas carregava um santinho de Nossa Senhora Aparecida na carteira e rezava para ela todo dia. “Meu pai me ensinou a acreditar nela. Não adianta ele me falar agora para fazer o contrário.”

Edward scissorhands - 4

Chegava da escola depois da meia-noite e acordava às seis para trabalhar. Trabalhava em período integral. Meus outros colegas de escola trabalhavam meio-período para terem dinheiro pra gastar com roupa e carro. A Cá era a única que eu via que trabalhava pra ajudar em casa. E gostava disso, se preocupava com os irmãos e se orgulhava em fazer sua parte.

Nas épocas mais puxadas, no fim da tarde, no intervalo entre sua saída do trabalho e o início da aula, nos encontrávamos na biblioteca da escola para estudar. Eu gostava de ajudá-la a estudar porque sabia que não era preguiçosa. Não tinha tempo de verdade.

1990 - Edward Scissorhands - 3

A lembrança que eu tenho mais clara dela é de quando eu me sentava na sua frente, entre ela e a Fá, nos meus dias tristes. Eu olhava o cabelão da Fá na minha frente. Sem me debruçar muito na cadeira, eu chegava perto e ele cobria minha visão como se me escondesse. Eu ficava ali, reparando nos fios do cabelo da Fá, um de cada cor, pensando nas besteiras que me deixavam triste. Invariavelmente, não sei se de propósito, a Cá me chamava (me chamava de Lê), não me olhava no rosto (talvez soubesse que não se olha no rosto de um Lê triste), pousava firme a mão magrinha e gelada no meu braço e me mostrava no caderno algo que estivesse estudando. Eu me distraia e procurava dar atenção.

No final dos anos oitenta, início dos noventa, quase ninguém ia ao cinema. Era a moda do videocassete e das locadoras. As meninas se juntavam no fim-de-semana na casa de uma delas, alugavam um filme e faziam uma sessão com pipoca. Uma segunda-feira, eu cheguei na escola, dei boa-noite, elas falavam do filme que assistiram no sábado. Cá me olhou com a cara esquisita, como se tivesse percebido algo ao me ver: “Lê, você tem de ver. É tão legal! Ele é tão como você.”

1990 - Edward Scissorhands - 2

Demorou mais de vinte anos para eu assistir esse filme. Acho que eu teria chorado de qualquer forma, achei tão triste! Tão triste mesmo! Mas eu tive de fazer uma pausa para tomar dois cafés e espairecer, antes do fim, porque ficou difícil segurar o choro quando me lembrei da Cá e de ela ter dito que ele se parecia comigo, porque comecei a perceber coisas que ela sabia de mim sem eu lhe contar.

Eu precisava de, no final do filme, ela ter-me posto a mão no braço e me desviado a atenção para alguma coisa em seu caderno.

Sweetheart, you can’t buy the necessities of life with cookies.

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