O cara era meio esquisito, isso já se sabe. Não tinha uma alimentação muito saudável, enbora comesse pouco. Aliás, dizia, tudo bem comer pouco, mas comer bem. Manteiga, pão, muito café. Ainda assim, não era da gordura que se esperava que morreria, do coração, pressão ou diabete. Antes, esperava-se que a loucura o matasse, ou o fígado. Não devia ser deste mundo.
Fazia coisas que gente deste mundo não se espera que faça. O chápeu fora de moda e as costeletas volumosas, quase suiças, que nada tinham a ver com as roupas de liqüidação de supermercado. Muito menos essas com o local e a ocasião. Bom, é bem verdade, com ocasião nenhuma. As longas caminhadas na hora do almoço, sem destino, a volta ao quarteirão. Que seria algo normal, não fosse o quarteirão um grande condomínio cercado pelo muro alto cinza que não dava vista a nada. Coisas que dizia com frequência, sem sentido, pareciam tiradas de relatos clínicos tomados num hospício. E quanto mais loucas as coisas que dizia, mais entusiasmado é apaixonado parecia por elas. Tomavam-no por maluco, ou drogado.
Álcool, dizia beber muito. Uísque, vinho, conhaque. Mas nunca foi visto com o copo na mão. Assim como, embora muitas fossem suas escapadas a pretexto de fumar, também nunca foi visto com cigarro ou isqueiro. Drogas eram, então, a óbvia conclusão dos que não o tomavam por maluco. Mas esses eram poucos. A grande maioria realmente temia pelo dia em que seriam incomodados pelo rabecão do hospício à sua caça. Muitos, por isso, lhe tinham medo.
E quando digo medo por isso, vejam bem, não é pela possível maluquice. Mas pelos mesmos motivos que os levaram a julgá-lo louco. Ora, havemos de temer a alguém que não se comporta como os outros, que não age como nós mesmos faríamos, a quê então temeríamos? Pode haver coisa mais assombrosa do que conviver com alguém cujas reações não sejam previsíveis e comuns à nossa própria normalidade? Se xingo-te a mãe e me respondes com outra ofensa ou com um soco, tudo muito bem. Mas, se, por galhofa, te empurro ao descer uma escada, para rir de teu tombo ou do esforço em não se esborrachar e, em vez disso, o que vejo é outra galhofa, que mais parece um passo de balé, acompanhada por risada e um grito histérico a chamar a atenção de todos que mata a mim mesmo de vergonha por ser tomado por amigo de alguém assim maluco… o que pode ser mais assustador?
E protagonizar cenas assim inesperadas e assustadoras não lhe era incomum. Poderíamos mesmo dizer que era um inusitado costumaz. De que outra forma haveríamos de chamar alguém que, encontrando uma mariposa machucada, a recolhesse do chão com todo cuidado, com carinho mesmo, pode-se dizer, e a jogasse para morte certa junto a um ninho de sabiás? Tenho minhas suposiçoes sobre isso. Você, que lê, tem as suas. Ele, só ele sabe porque fez assim.
O dia fatal começou normal. Era sexta-feira, como todas as de todas as semanas. Chegou cedo, como chegava todas as sextas-feiras. Normalmente se atrasava ou chegava em cima da hora. Nas sextas-feiras, não. Algo elas tinha de diferente dos outros dias, embora sempre iguais umas às outras. Pegou um pão de queijo e um pingado na lanchonete e se sentou na guia da calçada, olhando a terra em torno das plantas. Digo olhando a terra, mas podiam ser formigas, folhas caídas, quem sabe? Talvez guardasse se as raízes de alguma planta tentassem crescer tortas para fora da terra. Que faria então? Enterraria-as de volta? Comia o pão de queijo com preguiça. Preguiça de mastigar, mas também sem pressa de lhe arrancar pedaços pequenos com os dedos. Talvez tivesse alguma constante dor de dentes, pois nunca se soube que mordesse e arrancasse com os própios dentes um pedaço do pão de queijo. No pingado, dava bicadas, mínimas também, até terminar de comer. Daí pegava o copo e terminava, a bebida provavelmente já gelada, em dois ou três goles grandes. Ainda olhava um pouco à volta, talvez para verificar se o mundo não havia mudado durante seu desjejum, e piscava os olhos várias vezes antes de se levantar e entrar. Levantava-se com a preguiça de quem acorda, mais devagar ainda do que comia. O movimento lento automaticamente espreguiçava e alongava os músculos de seu corpo como naquele desenho animado da flor no vídeo do Pink Floyd. Aquele em que a flor cresce, se estica e abre devagar antes de engolir algo. Ele, se era uma flor, engoliu antes.
Entrou. Subiu as escadas puxando-se pelo corrimão como se ele fosse o cipó do Tarzan. Sentou-se entre os colegas com cara de enfado e o olhar baixo direto para a mesa. Tornozelos cruzados embaixo da cadeira. Cotovelos apoiados na mesa. Tão igual quanto todos os dias de semana são iguais. De quando em quando passava a mão sobre parte da testa e sobre o olho. Espreguiçava as pálpebras e bocejava. Devia ser um exercício aumentar a tolerância ao fastio. Isso parecia acordá-lo por alguns segundos. Neles, olhos arregalados, olhava para a frente, depois corria as meninas dos olhos de lado a lado, via tudo à sua volta. Tomada essa consciência da existência do resto do mundo e de que continuava vivo nele, adormecia de novo a cabeça baixa, novamente mergulhado em prestar atenção à própria mesa.
Chamavam-no Avestruz. Tanto pelo pescoço e pernas compridos, coincidência apenas, quanto, e mais tanto, pela cabeça baixa concentrada no que fazia. Parecia que a tinha enfiada no buraco de um poço e que ali era capaz de passar horas procurando algo ao fundo.
Às onze, em ponto, podia-se dizer com certeza que eram onze em ponto, pois coincidiu com a sirene da telefônica — a sirene do prédio da companhia telefônica tocava breve a cada hora cheia, dia ou noite, exceto ao meio-dia, quando tocava longo — ele começou a se encolher na mesa com cara de quem está chupando algo muito azedo. Os olhos e a boca apertados. Os músculos se enrijecendo enquanto se encolhia, dobrando-se. A mesa virou recheio de sanduíche entre seu tronco e suas pernas. Levando os joelhos em direção à cabeça, chegou a tirar a mesa do chão, suspensa por eles. Isso sem ruído ou gemido nenhum. Aliás, foi como se tudo ao redor, de repente, silenciasse. Como quando se cai de cabeça no chão duro e a pancada, reverberando pela caixa craniana, abafa em susto e analgesia qualquer barulho. Fica só aquele zumbido metálico, bem fraco, perdido no fundo do labirinto do ouvido. Tudo se calou. Conforme reparavam e se tocavam do que acontecia, todos ficaram quietos, pararam e, boquiabertos, assistiram confusos, sem saber o que era realmente aquilo, ou o que fazer. Até que ele afrouxou as pernas, pendeu para frente, a mesa caiu para frente, e então ele pendeu para trás, a cadeira se desiquilibrou, como a balança a que lhe retiram a mercadoria ou o fiel, e caiu para trás. O barulho então, primeiro que se ouviu, foi de sua cabeça, batendo forte, pesada e dura, contra o piso.
Assustados, a maioria, só dois se chegaram para tentar ajudar. E nem conseguiam imaginar como. Não puderam com seu peso, o que era de se adminirar porque, embora acima do saudável, estava longe se ser grande a ponto de dois não lhe conseguirem levantar. Um terceiro ligou aos bombeiros, pedindo por socorro.
A cena, em torno, era de curiosidade e medo. Curiosidade que se explica. Medo que, em outra situação, provocaria risos. Como se o infortúnio fosse contagioso. Os de trás erguiam a cabeça por cima dos outros, espreitando. Pareciam ter medo de que serem pegos olhando o colega caído lhes trouxesse algum mal.
Os bombeiros não demoraram, pareciam mesmo premeditar o ocorrido e já estarem por ali de prontidão. Vieram em dois, fortes, de camiseta vermelha com grossas jaquetas e calças de brim cáqui. Junto um médico, ou enfermeiro, novo, franzino, camiseta e jaleco brancos tradicionais, bolsa de couro que me lembrou a marmita de meu pai.
Ajoelhado, em um joelho apenas, o outro pé postado, ao lado do desfalecido, cumpriu o ritual que aprendeu na faculdade. Auscutou-lhe o peito em vários lugares, o abdôme. Sentiu-lhe o pulso. Iluminou os olhos, a orelha. Voltou ao peito, de novo com o estetoscópio, depois com a mão. Por fim com o ouvido, encostado ao peito do paciente.
Cara assustada. Pegou da mala um bisturi grande. mãos firmes as do médico, mas seus olhos tremiam. Rasgou-lhe a camiseta, à partir da quina do “V” da gola. Passou-lhe os dedos pelo peito procurando algo. Tomou pressa então, com dificuldade, forçou um corte perto do pescoço e foi descendo até quase a barriga. Nunca imaginei que fosse tão difícil cortar alguém. O médico também parecia nunca ter imaginado. Largou o bisturi de qualquer jeito no chão. Xingou. Deve ter percebido que fez besteira. Se precisasse do bisturi de novo, ele estaria contaminado. Com as mãos, protegidas por luvas ensangüentadas, lambuzou a bolsa de couro preto procurando algo. Pegou uma ferramenta grande que parecia uma furadeira. Testou no ar. Era uma serra elétrica.
Tateou o corte feio, sujo de vermelho e preto que fez no peito do paciente. Afundou ali um ou dois dedos de um jeito que me revoltou o estômago e, tenho certeza, teria revoltado também o dele, não fosse a adrenalina do susto, do medo e do medo de não conseguir. Ligou de novo a serra e serrou ossos ou outras coisas que eu nem imagino existirem ali. Demorou serrando. Testava tateando com os dedos por dentro do corte. serrava mais. Mexeu de novo na bolsa. Agora sujou-a com poeira e lascas que saíram do corte. Pegou uma espécie de morsa. Fixou-a no peito da vítima e girou uma chave, separando-lhe os dois lados do peito aberto. Serrou mais, separou mais. Tateou. Enfiou a mão, procurando algo. Com a mão direita dentro, usou a esquerda para forçar mais o peito a abrir. Ouvi algo se quebrar, deviam ser ossos, quando o rosto do médico se aliviou e, ato contínuo, algo apareceu se mexendo na abertura do peito.
Algo procurava passagem. O médico forçou mais uma vez a abertura com as duas mãos. Um guincho foi ouvido e o que tentava sair se soltou. O coração. Grande. Pulou para fora do peito e alçou vôo. Vermelho, tingindo-se de colorido ao procurar uma janela que lhe chegasse ao céu. Saiu por ela, batendo barulhento, como se batesse asas. E talvez as tivesse mesmo.