Visita ao Médico

Não acordei assim, mas na verdade já devia estar doente há algum tempo. Doenças não começam assim do nada. Há um protocolo: exposição, contaminação, incubação e por aí a fora.

Os sintomas começaram daí a pouco. Inquietação, mal estar. Curiosamente, a cabeça demorou a doer. Suspeito até que nunca tenha doido. Mas tinha uma sensação de estar vazia de idéias e cheia de uma doença pronta a estourá-la. Latejava, pesada. Havia muita pressão. A nuca esquentou, a testa gelou, as mãos perderam a firmeza. Foi pela hora do almoço que os olhos arderam, sem febre, e, irritados, lacrimejaram.

As lágrimas não ajudaram a aliviar a ardência. Escorreram devagar. Serviam só para molhar os olhos e atrapalhar a visão. Secavam sozinhas, ao vento frio. Sem ajuda de lenço, de guardanapo, nem da mão ou do vento frio. E ao secar uma, vinha outra.

O mal estar cresceu. A doença, parecendo tentar sair, empurrava as lágrimas para fora dos olhos. Elas aumentaram. Os olhos já irritados, foram depois as bochechas que elas salgaram. Então, escorriam e os olhos se esforçavam, teimosos, em não ficarem vermelhos.

Tonto já, sem poder enxergar direito, procurei ajuda, um médico. Ele examinou. “Abra a boca e mostre a língua.” A boca e a língua não tinham nada, não incomodavam como o resto, como os olhos principalmente. “Mas é por aí que você fala. Preciso saber se está conseguindo me contar direito o que acontece.” Por estranho que pareça, e era estranho mesmo, colaborei. Ele examinou ali e também o resto.

Sua cara não era boa, mas médicos são assim. Se a doença para nós é ruim porque pode ser mortal, para eles é ainda pior, é trabalho! Apalpou pelo corpo, pelo peito, pela cabeça. Perguntava se doía. Não doía. Chegou na orelha, apalpou o lóbulo. Perguntou. Também não doía. Desceu de volta ao peito. Encostou o ouvido, apalpou de novo, perguntou. Desceu um pouco (fígado? excesso de álcool? falta de álcool?) Os olhos já escorriam bastante. Encharcavam seca a cara toda. Atrapalhavam respirar pelo nariz ou pela boca.

Parou. Pôs-se ereto e segurou o lóbulo da orelha entre o polegar e o indicador. “Vamos fazer uma punção para isso sair.” Largou a orelha. Fiquei parado. O incômodo tem esse efeito. Qualquer solução, por mais improvável, é boa. E, se para ela, temos de ficar passivos, mais fácil ainda.

Ele voltou com uma agulha de injeção. Abriu aquela embalagem de plástico dela, parece um blíster com tampinha. Alcançou um papelzinho, rasgou-o e tirou de dentro um pedaço de gaze parecido com um curativo pequeno. Limpou o lóbulo da orelha. Segurou-o e espetou de leve a agulha. Senti pingar bastante. Ele pegou um algodão e aparou.

O mal estar pareceu aumentar, talvez pela expectativa do que iria acontecer à orelha. Mas logo passou a aparência e ele ficou como estava. O médico então encaixou a ponta da agulha onde já tinha espetado e, desta vez, furou, de lado a lado. A agulha ficou como um piercing, atravessada. Quando ele tirou. Os pingos viraram um filete esguichado.

Minha pressão caiu. Achei que ia desmaiar. Nada passava e ainda aquilo também me incomodava. O líquido esguichando, às vezes acertava meu ombro. Era o médico, que torcia a orelha para dirigir o esguicho. Ele pegou uma pequena travessa de metal para apará-lo. Curioso, fiz uma expressão de esguelha para enxergá-lo. Não tinha cor. Não era pus. “É lágrima.” Estava drenando por ali as lágrimas que saiam pelos olhos.

Não perguntei se bastava aquilo, se teria algum remédio, injeção. Parecia irrelevante. O que viesse depois, viria. Agora, eu tinha pressa daquilo passar. Parecia não parar, mas fiquei curioso de ver que a travessa demorava a encher. “Nunca acaba.”

Não sei se o médico entendeu isso como a surpresa que era ou a impaciência que também era. Ele largou a travessa e pegou um tubo de plástico, parecia um canudo de milk shake. Era um pequeno estojo. Abriu e tirou de dentro um bisturi.

Tenho medo de lâminas, dão-me aflição, mas dane-se. Ele puxou o lóbulo para baixo e picotou, até a borda da orelha. A água escorreu. Encheu a travessa e continuou. Ele não devia ter outra. Ficou só olhando as lágrimas continuarem escorrendo molhando meu ombro.

O mal estar aos poucos foi diminuindo, a pressão baixando. Quando as lágrimas pararam de escorrer pelos olhos, percebi que ia desmaiar por causa da pressão já bem baixa. Mas o alívio só aumentava.

O médico já estava em pé olhando há algum tempo. Deve ter-se enfastiado. Médicos são disso. Saiu da sala fazer outra coisa. Eu fiquei sentado na cadeira com aquelas lágrimas salgadas escorrendo pelo picote da orelha.

Não sei por quanto tempo fiquei ali, pois desmaiei. A queda da pressão me fez desmaiar como um boneco de inflar murchando. Quando o médico voltou, encontrou só meu corpo vazio, caído no chão feito bexiga murcha. As lágrimas haviam escorrido todas.

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