Capítulo #23

Eu estava caçando algo para a ceia. Qualquer coisa para dar gosto à sopa. Depois das árvores, eu cheguei à baixada que dá para o lago. Olhei para o meio, pensando se não teria sido melhor levar o caniço para pescar.

E, para mais adiante, dando um pouco a volta, vi uma pessoa no meio do lago, em pé. Era uma mulher, não sei se bonita, mas era muito gostosa! Gostosa mesmo! Ao menos, de longe, achei. Estava em pé, de vestido vermelho, e não parecia ter um barco nem nada. Era como se andasse em cima da água.

Eu fiquei curioso e fui dando a volta, para ver de perto em cima de quê ela estava. Ela não tinha o cabelo muito volumoso, mas atrás ele formava um rabo de cavalo que, caído pelas costas até abaixo dos joelhos, parecia um rabo peludo de animal. O corpo todo dela também, era muito peludo, um pêlo avermelhado, curto, bonito, que cobria o corpo todo. Ela parecia feita de pelúcia.

Antes de eu chegar a um ponto onde enxergasse o que a sustentasse sobre a água, ela chegou à margem e caminhou para a ponte, aquela antiga, do trem, que já não funciona mais. Eu, quando alcancei ali, procurei com os olhos pela água e não vi nada, nenhum sinal de balsa, barco ou coisa do tipo. Mas já estava escurecendo, meus olhos podiam não ver direito.

Ela havia passado por baixo da ponte, passei também, curioso com ela. Ainda não conhecia ali. Sempre pensei que, do outro lado da ponte, o parque continuasse com árvores, lagos, trilhas. Mas não, passando por ali, parece uma caverna, ampla, escura, com o teto bem alto. Não dava para andar ali sem enxergar nada. Não vinha nenhuma luz pela entrada da caverna. Esperei meus olhos se acostumarem e vi que havia pedras, e muita gente reunida sobre elas, olhando para cima. Na verdade, não sei se foram meus olhos que se acostumaram ou se uma luz surgia. Estava tudo iluminado por uma luz azul muito fraca.

Todos olhavam para a mesma direção. Olhei também e vi, no alto, ao fundo, tudo muito escuro, exceto por um par de olhos azuis. Não olhos azuis como os nossos. Eles emitiam luz, azul. Além de muito azuis, como nenhum olho humano pode ser, como pedras preciosas lapidadas, emitiam a luz azul que iluminava tudo ali. Os meus olhos sim são comuns e, quando se acostumaram, percebi algo que parecia o contorno de um corpo, com cabeça geométrica e orelhas que pareciam asas. Não dava para ter certeza.

Achei que fosse uma performance, mas uma voz alta, claramente enfurecida, que veio do corpo de olhos azuis me assustou: “Vocês parecem crianças brincando. Vocês acham que sabem mais do que brincar como crianças?” A voz só me assustou. O pavor das outras pessoas que estavam lá foi o que me apavorou. Todos começaram a correr, baratas tontas, trombando, tentando fugir. Assustado, corri também. A entrada da caverna, por onde vim, não existia mais.

Me escondi atrás de uma pedra pensando no que fazer, enquanto os outros se desesperavam, vi algo, longe, que parecia ter um tom diferente de azul. Podia ser uma porta. Corri lá, estava ainda mais escuro, e cheguei num corredor ou algo assim. Sem enxergar nada mesmo, andei devagar, com as mãos nas paredes, me guiando. As paredes, lisas, não eram de caverna. Tinham acabamento bem feito, deviam ser de alvenaria. Ali era um prédio ou uma casa. Talvez fosse um túnel por baixo das árvores do parque, tenho certeza de que era plano, não subi nem desci nada.

Depois de andar uns dez minutos por ali, e ja com medo de não achar saída, encontrei o fim do corredor. Palpando, senti uma porta pequena, de madeira rústica, à minha frente, a parte superior do batente não era mais alta que meu peito. Me abaixei, procurei pela maçaneta. Consegui abrir. Fui por ela.

Achei que era uma saída. A porta deu para uma casa simples de teto muito baixo. Tive de ficar arcado para não bater a cabeça no teto. Um cômodo só, me pareceu. Mesinha de centro e poltronas perto da porta, cozinha à esquerda, um beliche e uma cama de casal à esquerda. À minha frente, do outro lado do cômodo, uma mesa com poucas cadeiras e outra porta.

Alguém gritou: “Maria, eles vieram. Por favor, não queremos ir embora.” O teto baixo se justificava, eles eram pequenos. Foi difícil encontrá-los. A tal Maria estava na cozinha, atrás do fogão. Algumas crianças, de tamanhos variados, mas todas pequenas, o que não me permitia imaginar suas idades, bagunçavam a cama e o beliche. O homem que falou, estava na mesa. Ele mesmo, era pouco mais alto que meu umbigo. Levantou-se e veio me receber com um gesto cerimonioso.

“Eu não vim para vocês irem embora.”

As crianças correram se esconder todas no beliche, que fecharam com um cobertor, como se ela fosse uma barraca. Lembraram-me cachorrinhos amontoados, escondidos na casinha dos pais.

“O senhor não veio nos despejar? Não é o senhorio? Não veio da parte dele?”

“Não. Eu estava fugindo daquela confusão que o sujeito, não sei o que era aquilo, com os olhos luminosos azuis causou. Eu tinha entrado na caverna atrás de uma mulher de vestido vermelho, com pele que parecia de raposa.”

“Ah! Está fugindo.”

“Eu quero voltar pro parque.”

“Aqui não tem voltar. É um eterno fugir. Venha por aqui.”

Saímos pela outra porta, a oposta, ao lado da mesa. Depois dela, havia sol, areia e um lago, mar, oceano, não sei, o cheiro era de água salgada.

“Vai sempre em frente, aqui não há voltar, só o em frente, fugir do que ficou pra trás antes que ele te pegue de volta. O em frente é por aí. Vai.”

Ri: “Como? Aquela mulher parecia andar por cima da água. Vou andar por cima também?”

“Ela te deixa passar.”

Ele chegou à beirada da areia e afagou a água como faria a um cão, a um bicho de estimação. Ela, já sabendo o que ele queria, abriu-se, como se lhe puxassem um zíper, formando um vale, entre duas altas montanhas líquidas.

Eu devia estar pasmo com isso, mas não estava. Foi como se já imaginasse que algo assim iria acontecer. Agradeci.

“Não agradeça, siga.”

Caminhei pelo vale do fundo exposto do mar para sair do outro lado. Era muito longe, mas a distância foi vencida como se eu estivesse num filme editado, com vários cortes das partes de mesmice de caminhada. Lembro-me de andar um pouco. Depois, de estar mais à frente, mais cansado, andando. Depois, de estar ainda mais à frente, mais cansado. Meus tênis pareciam as botas de sete léguas. Ou minha memória não guardou todo o caminho que fiz.

O vale terminou. Subi para a praia do outro lado. O zíper que separava a água se fechou, bem devagar, causando só algumas ondas grandes que, no entanto, disciplinadas, não invadiram a praia.

À água, me esqueci de agradecer. Fiquei olhando-a e ouvindo seu barulho, suas ondas se acalmando. Até que esse barulho, enfraquecendo, se confundiu com uma música que vinha do meio das árvores, depois da praia.

Lembrei-me de ir sempre em diante e segui a música. Era chata. Parecia aquelas músicas incidentais que fazem fundo para cenas com anjos, nos filmes. Encontrei uma mesa de picnic. Ao lado, no chão, ao pé de uma árvore, alguns adolescentes improvisavam a música em instrumentos simples.

Sentada num dos bancos da mesa, a mulher do vestido vermelho segurava um copo de bebida, uísque com gelo, creio eu. Bebericou um gole, dois. Passou o copo para a outra mão, que manteve sobre a mesa, e virou-se para mim, com uma perna de cada lado do banco. Encarou-me. Não era bonita, mas seu corpo delineado pelo vestido vermelho justo era perfeito. Sua pele parecia mesmo de um animal ou de pelúcia, coberta com pelo lustroso castanho avermelhado, mesmo tom dos cabelos compridos, não totalmente presos atrás. Pelo decote grande, via-se que seu pêlo, no peito e na barriga, era branco. Viam-se também os peitos deliciosos. Não sei se tinha mais vontade deles ou de alisar a pele dela. Era difícil resistir, quase impossível. O desejo era tanto que tive medo de não conseguir, perder a cabeça e atacá-la. Ela percebeu, bebeu o terceiro gole e largou o copo. A mão que tirou do copo, pousou no lindo pêlo castanho da coxa. Com a outra, começou a afastar o ombro do vestido, oferecendo-me o colo. Não terminou. Subi no banco, também uma perna de cada lado, e abracei-a. Terminei eu de afastar o ombro do vestido, devagar com minha mão enquanto lhe beijava e apartava de encontro a mim. Forcei seu corpo para trás e ela teve de se apoiar com a mão no banco. Pôs suas coxas ao redor de minha cintura e com uma mão me puxou para si, enquanto, com a outra, se apoiava no banco para que eu não a deitasse nele. Apartou-me contra si e eu apertei-a contra mim. O abraço foi tão justo que me atrapalhou a respiração. Fiquei mais doido por ela. Senti fome, muita fome. Não era de comida, era desejo. Ela era muito forte. Seu abraço apertou todos os músculos de meu corpo, me deixou todo dolorido, dos dedos dos pés aos das mãos. Excitado demais, foi no meu peito e na minha boca que senti o latejamento e os espasmos de gozar. Surpreso com aquele prazer incrível, procurei seus olhos. O que achei neles foi aquela luz azul, fria, sem expressão, agressiva. Me assustei. De repente, seu corpo me pareceu frio, um cadáver, e seu rosto agressivo, odioso. Lembrei-me de algo que não lembro e me senti maldito transando com o demônio.

Assustado, transtornado e comas as pernas ainda bambas do prazer que me apavarou, corri, pelas árvores, sem pensar nisso, mas fugindo em frente. Pés descalços, calças de moletom, que eu uso de pijama, caindo com o elástico da cintura frouxo ou estourado. A camiseta de algodão grosso encharcada de suor gelava no vento do dia que se fez escuro, nublado e frio. Meu pé, desacostumado de andar naquele tipo de chão, se machucava em tudo que eu pisava, pedras, gravetos, raízes, folhas… O medo era maior, continuei correndo. Respirava o vento gelado, que incomodou meu peito. Faltou ar, faltou força para respirar. Achei que ia desmaiar. Não tinha coragem de parar.

Percebi que tinha chegado a uma plantação, uma espécie de pomar de árvores baixas, todas muito juntas. Escondi-me no meio. Agachado entre duas árvores, coberto pelas copas delas, que se emaranhavam, se confundindo. Quase me acalmeu e consegui chorar. Só escorreram algumas lágrimas, meus beiços tremeram e olhei para cima, para tentar pensar direito. Foi quando vi o pior. Vi as frutas das árvores. Eram bolas vermelhas, de fogo, sólidas. Chamas redondas brotadas, penduradas, nos galhos. E o fazendeiro chegava perto. E eu olhei onde ele estava, pra fugir dele, e vi… seus olhos… também eram daquela luz azul.

Fiquei sem reação, paralisado. Ouvi outra música. Crianças passaram de mãos dadas, brincando, acho que de roda. Elas me viram e pararam brincando ali. A música que eles cantavam parecia marcial. As mãos, eu vi então, não estavam dadas, eles se seguravam em algo que parecia uma corda, mas que era uma cobra grande, morta.

O último que chegou, não segurava a corda de cobra. Estava solto e não cantava. Segurava com as duas mãos um copo d’água e olhava vidrado para algo dentro dele. Cheguei perto, o copo tinha alguma bebida alcoólica. Percebi pelo cheiro. Perguntei por que nao brincava com as outras crianças. Ele não respondeu. Ficou olhando, por cima, o líquido do copo, sorrindo.

Tudo então ficou escuro. A gente pensa que o escuro é preto. Pode ser branco também. Aquele foi um escuro todo branco. Um apagão branco seguindo de um barulho tão alto que não dava para ouvir. Mas eu o senti nos ouvidos e no corpo, quando já não via mais nada. O barulho mais alto que todo o resto silenciou o mundo todo. Foi uma explosão, atrás de mim. Longe eu acho. Olhei de volta as crianças. O que vi foram seus corpos queimados, como carne queimada de churrasco, e cinzas de todo o resto espalhadas em torno. A plantação sumiu em dunas de cinzas que se mexiam como ondas no vento que sobrou da explosão.

Eu não consegui ficar horrorizado com isso. Nem mesmo com a morte das crianças. Atordoado, caí no chão e achei fofas as cinzas que me receberam lá. Cansado já, imagine como! Vi outras plantas brotarem ali, um novo jardim. O paraíso ou o inferno brotando, a pronto e de pronto, saindo da terra, de sob as cinzas que lhe serviam de alimento.

Nasceram, que eu vi, um pé de borboletas, outro de veados, um com coisas de plástico, de várias cores, um pé de sexo com romance, outro de pura sacanagem. Eram árvores, arbustos, plantas, trepadeiras, mato, flores, cada um mais inimaginável que o outro. Do labirinto bagunçado que formaram saiu mais bagunça. Uma galinha cacarejou, mas botou um gato, não o ovo que eu esperei. O macaco ficou em pé sobre uma flor, mas afundou no chão de terra sólida. O sol balançava no céu, ao sabor do vento, como se estivesse pendurado por barbante.

A bagunça e o absurdo eram tão grandes que eu não conseguia olhar para tudo. Meus olhos simplesmente não conseguiam focar nas imagens que eu não entendia. Senti-me mal, muito mal. Senti-me mais bêbado do que imagino que alguém possa ficar, e ainda estava consciente. O mundo começou a girar, não a meu redor, como acontece quando a gente bebe. Girou sentado numa roda-gigante, eu junto. E eu não tinha bebido nada. Nem usado nada, nada, nada. Não faço isso, usar algo. Beber bebo, mas não tinha bebido. Ao menos não me lembro de ter bebido. E, se tivesse, tanto a esse ponto, me lembraria.

Com medo de perder o equilíbrio, sentei-me na cadeira da roda-gigante em que se transformou a realidade. Tive vontade de vomitar. Não saiu nada. O choro, aí sim, encheu meus olhos e molhou o mundo todo. Parecia chuva. E choveu mesmo.

A cabeça doendo, achei que ia explodir, como se alguém bombasse água dentro dela com tanta pressão que me saísse tudo, as lágrimas e a chuva, pelos olhos.

Uma luz vermelha, à minha frente, iluminou tudo e outros olhos azuis apareceram. A luz vermelha tentava engoli-los. E eles a ela. Eu não vi nada disso. Sí conseguia chorar. Chorei, chorei até que, de tanto e tão alto chorar, parece que minha cabeça finalmente explodiu. Senti uma pancada forte nela, de metal contra metal. Minha cabeça soou alto, longe, como um sino.

Novamente tudo ficou branco de tanta luz ofuscante, o mesmo barulho. Outra explosão de escuridão branca e barulho imenso que silenciou o mundo. Congelei de medo esperando o que viria então.

Demorou para os olhos fazerem foco e os ouvidos escutarem de novo. Aos poucos, fui enxergado uma névoa tomando forma e percebendo um som baixo que a principio ecoou. Depois, ambos tomaram forma e reconheci primeiro tua voz, depois teu rosto, aqui do meu lado.

E acho que foi aí que eu não agüentei e comecei a chorar de verdade.

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