There is a crack in everything.That’s how the light gets in. — Leonard Cohen, Anthem (1992)
Acordei tarde, na hora do almoço, tinha trabalhado a noite toda, até quase de manhã. Foi para a cama só depois do café da manhã. As duas canecas grandes, cheias de cafeína, não me atrapalharam dormir. O dia de sol, tempo bom, também não. Ainda assim, dormi pouco. Quatro horas, no máximo. Não que fossem o suficiente para descansar. O telefone não sabe a que horas eu me deitei, a pessoa que liga sabe, e não pensa duas vezes antes de me acordar pedindo um favor para sua comodidade. Sono disperso pela indignação, tomei banho e saí para almoçar.
Ia almoçar sem vontade. Saí mais pelo passeio. O restaurante como destino é apenas um reflexo da preguiça de pensar, característica de quem está cansado e com sono. Fosse ainda de manhã, teria ido para a padaria tomar café ou para o trabalho, sem pensar também. Como era almoço, o máximo em que pensei foi que, depois, queria passear, tomar café, queria comprar uma daquelas geringonças de passar a roupa no cabide, na vertical, com vapor, então iria a um restaurante próximo ao shopping. Não no shopping. Não gosto de comer lá. Muita gente, barulho, confusão, gente. Odeio multidão. O mesmo para o café. Só iria ao shopping para comprar a geringonça porque nem sei mais onde se encontram lojas de eletrodomésticos fora do shopping. Está certo que poderia ir a Pinheiros ou à Lapa, mas teria de aturar a mesma multidão, só que na rua, e sem opções boas para tomar café.
No metrô, a caminho para o restaurante, percebi que aberração que era almoçar logo ao acordar, não importa a hora. Comida de sal misturada ao gosto de cabo de guarda-chuva e bafo de pasta de dente. Quem consegue almoçar com gosto de pasta de dente na boca? Não que seja uma combinação ruim, mas pasta de dente é feita para depois, não antes da refeição. Trabalhar à noite bagunça nossas referências e idéias assim. É uma confusão que surpreende até por não sabermos o que nos confunde nela.
Sentado no restaurante, quase vazio ainda, com o cardápio na mão, tudo me pareceu estranho de mais para comer. Meus olhos ainda não estavam suficientemente acordados para não se incomodarem com o sol. Deviam até ter um pouco de ramela no canto. Tive vontade de pão-com-manteiga. Acho que associei meu sono, que ainda começava a dispersar, com a hora do café. Fugi da comida de sal, pulei para a sobremesa: “Tem coalhada fresca?” O garçom fez cara ofendida para responder que sim. Acho que pensou que eu perguntava se a coalhada não era velha. Eu me referia à coalhada de sobremesa, que as pessoas misturam com açúcar, batem com morango e chamam de iogurte. Restaurante árabe, ele devia saber. Eu gosto quase pura, só umas gotas de mel. A coalhada do almoço, que eles chamam de seca, é mais fermentada e muitas vezes vem batida com pepino. Faz-me imaginar um iogurte com sabor de salada.
Contrariado também por atender uma mesa que só pediu sobremesa, ele perguntou pela bebida. Água com gás… e um pedaço de limão. O pessoal da calçada se atirava para o balcão. Haviam acabado de sair do forno as esfirras. São muito boas as dali, a de carne e a de verdura. Se combinassem com acordar, pediria uma. O garçom já estava retirando o prato e os talheres que eu não ia usar, quando me lembrei da esfirra de queijo: “Me traz uma esfirra também, de queijo… branco.” Desta vez, ele anotou sem se ofender. Não consegui evitar rir. Quase pedi queijo fresco.
Comi em pouco tempo, não rápido. Era pouca coisa. Por mais calma que eu tivesse não conseguiria demorar. Até tentaria, mas esses dez ou quinze minutos foram suficientes para o restaurante pequeno, já normalmente apertado, lotar de gente esperando mesa para almoçar. Levantei-me e fui direto pedir minha conta direto no caixa, liberando a mesa para duas meninas que, folgadas, passavam à frente dos outros.
Senti falta do café, da cafeína. Não gosto do café dali. O espresso é daqueles ruins que têm gosto de terra. No coado, mania que esse povo tem, eles já açucaram, e muito, na própria cafeteira, ao coar. Eu prefiro guardar minha quota de cafeína para depois, descansado, num lugar tranquilo e com café bom.
Sem ânimo de fazer nada sério, pensei se voltava para casa. Lembrei-me do que queria comprar. Já havia algum tempo que eu não ia aquele shopping. Fui a pé do restaurante. Não gosto daquele caminho. Avenidas largas, movimentadas, poeirentas, barulhentas, sujas, fedidas, cheias de mendigos e trombadinhas. Ainda assim, aproveitei para olhar bem, ver se havia algo de novo. Não vi nada de bom, nada de novo.
Entrar no shopping, naquela multidão que o entope na hora do almoço, me deixa nervoso. Logo que entro, me arrependo e já quero sair. Vou buscar logo o que quero e puxar o carro. Deixa ver se ainda tem aquela loja no fundo do corredor da direita, não foi pra isso que vim, mas deixa aproveitar. No último fim-de-semana, andei um monte pela Liberdade atrás das outras duas filiais dela e descobri que eram só uns quiosques pequenos. Não tinham tudo o que eu queria. A loja fechou, agora é outra. Besteira ter procurado. O site mesmo não a listava mais. Banheiro. Acho que já andei muito. Não vejo a hora de sair pra rua de novo. Melhor ir logo embora, deixa pra lá o que vim comprar. Olhei uma vitrine antes de sair. Talvez ali tivesse e eu não perdesse a viagem. Nada a ver, não tinha. Saí. Ufa!
Não gosto de passear em shopping. Shopping por shopping não faz sentido. E olha que eu sou da geração que, quando adolescente, era chamada de “geração shopping center”, A molecada punha os panos, a roupa de marca, que noutros tempos seria chamada de “roupa de missa”. Na nossa época era a roupa de shopping, algumas mães da minha idade ainda falam assim: “Vou vestir o meu filho com a roupa de shopping pra sair.” Aqueles prédios de lojas eram novidades que, sem dinheiro, só servia para passear. Vestidos os panos, iam ao shopping só para andar e olhar, azarar as meninas, urubuzar. Ficavam bobeando encostados nos muros em torno das escadas rolantes. Eram os chamados “bobódromos”. Eu odiava. Com minha cara de pobre, odiava entrar lá e ser seguido pelos seguranças, ouvi-los conversando no rádio: “QAP? QSJ nariz passando para seu setor. QSL?”
Eu saí do shopping, para o sol. Ardia. Pensei em voltar a pé para casa. Aproveitar o sol. A gente que trabalha não tem o mesmo direito do preso a uma hora de bobeira no sol por dia. É preciso aproveitar. Além de tudo, eu gosto de andar. Atravessei a avenida. São uns quatro ou cinco quilômetros dali pra casa. O caminho é praticamente plano. Deve dar uma hora a pé. E desse caminho eu gosto, tem muita coisa para olhar. Mas muito antes dos primeiros trezentos metros, as minha costas machucadas, machucadas desde o fim-de-semana, acho que machuquei dirigindo, depois piorei com um tombo, doeram até me irritar bastante e me fazer desistir da caminhada. Doeram muito. Eu achei que não chegaria nem ao metrô.
Quase cheguei. Poucos metros antes do metrô, havia outro shopping. Na verdade, só uma galeria com nome de shopping. Esse já é o tipo de coisa que me agrada. Nessa galeria, já houve duas salas de cinema. Elas fecharam quando as grandes redes chegaram ao Brasil. Do outro lado da avenida, noutra galeria, também já houve mais duas salas, grandes, muito boas. Também fecharam poucos anos depois destas. No prédio ao lado, onde funcionam duas faculdades, um canal de televisão, e estações de rádio, houve também dois cinemas que fecharam. Mas, em seu lugar, abriram um teatro muito bacana e um cinema discreto, com quatro salas pequenas, uma lanchonete e um restaurante metidos a bestas, mas programação muito boa. É um dos meus preferidos. Eu havia passado ali no fim-de-semana e olhado a programação. Já era muito tarde. Não dava tempo de jantar e assistir algo, Eu morria de fome, mesmo, e deixei para outro dia o passeio ao cinema. E havia ali ao menos seis filmes que eu queria ver. Hoje podia ver um. Pensei em poltrona de cinema, com o encosto bem alto e levemente reclinável, e no alívio que seria para as minhas costas.
Desci ao saguão, na verdade, uma espécie de corredor, do cinema para olhar os cartazes. Não sei dizer o quê mas algo pareceu ter mudado desde o fim-de-semana. Os cartazes, sua disposição, haviam mudado. Claro, quinta-feira é dia de mudar a programação da semana. Talvez alguns dos filmes que eu queria ver não estivessem mais disponíveis.
Subi à bilheteria, do outro lado, atravessando todo o saguão e subindo um lance de escada para o nível da calçada, já do lado de fora. É a mesma bilheteria do teatro. Havia mais cartazes na parede externa, ao lado da bilheteria, com as salas e os horários das sessões, em letras grandes, nos rodapés, em etiquetas brancas grandes, impressas a laser. Eram só quatro, um em cada sala. Que pena! Ao que parecia, alguns dos filmes que olhei no fim-de-semana e minhas lombrigas queriam ver saíram da programação sem que eu os tivesse assistido. Logo hoje! Eu vim na quinta-feira. Devia ter vindo na quarta, antes de virarem a programação.
Esses quatro que ali estavam, pareciam todos muito bons, ao menos eu estava curioso de vê-los todos, mas queria vê-los de fim-de-semana, no próximo talvez, noutras circunstâncias, ou com alguma companhia. Fiquei com raiva de mim. Velho rabugento fica procurando motivo para não fazer as coisas. Resolvi que tinha de ver um e pronto. Que escolhesse um, em vez de arrumar desculpas. Não conseguia decidir. Olhei os horários para encontrar um que terminasse a tempo para eu não perder meus compromissos à noite. Alguns filmes tinham horários esquisitos. Intervalo de duas horas entre as últimas sessões, quatro entre as primeira. Algo estava faltando. Entrei no caracol, aquele que fazem com suportes e fitas vermelhas para organizar filas, não havia fila, só o caracol e um homem, que chegou sem olhar os cartazes e já foi direto à bilheteria. Era o único à minha frente. Indeciso, nem percebi que havia outros dois guichês além do que o atendia.
Apressado, ele foi direto ao guichê, já com a carteira na mão, e perguntou qual seria o próximo filme a começar. A moça respondeu-lhe um que não estava nos cartazes. Interessei-me. Havia outros filmes. Olhei em torno e, na ponta do caracol, encaixado a um dos suportes da fita, havia um pequeno painel, onde fixaram um impresso de meia folha de sulfite, talvez o resto do papel usado para os horários que etiquetavam os cartazes, camuflada pela poluição visual, com a programação completa, uns oito ou nove filmes ao todo. Além dos quatro dos cartazes da parede, que deviam ser os carros-chefes, das sessões noturna, as mais procuradas, havia alguns outros já a mais tempo em cartaz, com poucas sessões espalhadas pelo dia. Um deles tinha só uma sessão e era um dos que eu mais queria ver: nome sugestivo, bons atores. A sessão começava pouco depois das três, eram duas. Dava tempo ainda de tomar um café, recarregar a cafeina, e escrever, tentar escrever algo. Três e pouco mais entre uma hora e meia e duas horas, o filme acabaria antes das cinco. Perfeito, dava tempo, apertado mas dava, para tudo.
Pedi o ingresso. A moça me mostrou o mapa da sala para que eu escolhesse a cadeira. Todos os lugares estavam em verde. Até então eu era o único para ver esse filme. Quinta-feira, logo após o almoço, cinema europeu no meio da tarde. Não ha muitos esquisitos como eu vagabundeando pela avenida, procurando algo para ver, e descansar as costas.
Ao lado da janela do guichê, no pequeno balcão de madeira, havia uma pequena pilha de folders de programação. Peguei um, para programar o fim de semana. Não gosto de fazer as coisas assim tão de improviso. Fui para o café, não o do cinema. Fui para o da galeria ao lado. Lá o cafe é ruim, mas o lugar é muito mais confortável, e eu não preciso pedir café. Tem outras coisas, chá, shake, suco, chocolate. E também gente interessante passando. No daqui, só poucos casais sentados tagarelando, disputado quem é mais intelectual. Imagino o que fazem da vida, que têm a tarde livre para isso.
Andando ainda os primeiros metros, abri o folder, curioso. Dei de cara com o filme que eu ia ver. Duas horas de duração. Eu não tinha conferido antes. Duas horas, mais trailers, propaganda etc. Não terminaria antes das cinco e meia. Eu tinha compromisso às sete e ainda de passar noutro lugar antes. Fiquei preocupado de me atrasar, não podia. Tentei relaxar, pensava nisso depois. Estava ali para relaxar mesmo. Entrei na fila do café. À minha frente, um rapaz brigava com o namorado que estava indeciso sobre que que queria. A menina do caixa pediu-lhes licença para me atender primeiro. Eles, distraídos discutindo, nem perceberam e ela me perguntou o que eu queria. Pedi meu chá, english breakfast, um bem grande e quente. Depois corrigi, gelado. Estava muito calor hoje, quente não cairia bem. Ela concordou. Hesitou em algo, me olhou, olhos arregalados, caiu na gargalhada: “Esqueci o código do chá.” Eu me lembrava. Peço tanto que já sei o código que usam. Ela ficou encabulada pelo cliente ter-lhe ajudado com isso. Fez piada sobre sua trapalhada. Tentou desviar a atenção falando das gorjetas grandes que recebeu. Aí ficou ainda mais sem graça e pediu desculpas, que não estava dando indireta para receber gorjeta. Achei graça. A trapalhada me distraiu, o chá estava pronto antes de ela terminar de cobrar.
Sentei-me num sofá, com dificuldade. Muita dificuldade. O sofá já era baixo e o fundo do assento, a parte mais junta ao encosto, mais baixa ainda. Fiquei com vergonha de me verem arcando com esforço. Sentando feito velho caquético de piada. Já todos dizem que sou velho e que pareço ainda mais velho do que realmente sou. Com esta barba cheia de tufos brancos que cultivo nos últimos dias (promessa, que me está saindo uma agradável experiência) e ainda dificuldade para sentar e levantar, tomar-me-iam por ancião. Talvez eu fosse mesmo.
Eu não ia conseguir digitar com o copo na mão. Puxeu com o pé uma mesa de centro para perto de mim, foi difícil alcançá-la. Pousei o copo. Ainda assim, com o fundo do sofá mais baixo que a frente, a sensação de estar com as pernas pro ar e a dor nas costas, era difícil alcançá-lo.
No sofá ao lado, à minha esquerda, em “L” com o meu, duas meninas, uma delas linda, por sinal, namoravam e riam muito. Mais riam do que namoravam, algum chato poderia dizer. Esses chatos não sabem que rir junto é uma das melhores partes do namoro. Riram de minha cara de dor tentando mexer no tablet e no copo. Não as culpo, deve ser mesmo engraçado ver alguém, sem mais explicação, franzir a testa e gemer para digitar. Coisas completamente desconexas.
Bebi só um pouco de chá e fucei meus rascunhos. Não tinha nenhum que eu me animasse a terminar. Fucei um a um. Não achei nada nada. É engraçado, tenho várias anotações de coisas sobre as quais eu gostaria de escrever, coisas que quero elaborar, rascunhos, memórias, mas, a maioria, eu nunca encontro um momento em que queira trabalhar. Eu olho, acho bom, legal, mas deixo para depois porque quero outro coisa. Mesmo tendo mais de uma centena de rascunhos, quando vou escrever, quase sempre, estou com vontade de algo diferente, que não tenha nada a ver com nenhum deles. Acho que perdi meia hora nisso: abre rascunho, confere, fecha, passa para o próximo. Devo ter aberto ao menos duas vezes cada. Não me apetecia trabalhar em nenhum. Assuntos bons, mas passados, eu acho. Às vezes, encontro três ou quatro histórias para escrever, mas como só consigo uma de cada vez, deixo as outras para quando acabar a primeira. Quando acabo a primeira, as outras já ficaram datadas, para mim. Já passou o momento que me motivou a escrevê-las. Caem na caixa de saída, esperando que um dia o carteiro as venha pegar.
Precisava escrever, produzir. Talvez algo rápido sobre minha dor nas costas. Curto, rápido, só para não perder o embalo. Já me aconteceu antes, cada dia sem escrever, deixa o dia seguinte mais difícil. Se descuido, acabo me esquecendo do gosto, me acostumando a deixar de sonhar, murcho por dentro. Uns quarenta minutos ainda para o filme. Eu, o tablet e meu chá. Escrevi umas linhas, texto curto, uma pequena entrada de diário. Serviria como uma anotação para eu saber, no meu timeline, em que época machuquei as costas. Não que isso seja algo memorável, mas eu vou me lembrar e, encontrando o post sobre isso, vai ser mais fácil situar os outros no tempo.Não ficou grande coisa, nem precisava. Era algo para publicar. O importante é continuar publicando, continuar falando, continuar respirando. “Aconteça o que acontecer, continue respirando”, me disseram uma vez num treinamento motivacional. Treinamento que esqueci, mas a frase cai bem aqui. Escrever é falar, falar é respirar, e tenho que continuar respirando.
Uma japonesa, seus quarenta e poucos anos, sentou-se a meu lado. Não ficou ali nem dois minutos. Mudou-se de lugar, me olhando. Eu devia estar fazendo careta, com uma expressão horrível que a deixou com medo de ficar no mesmo sofá. Uma balconista veio ao vão entre meu sofá, agora de novo só meu, e o das namoradas. Trazia um copinho para as meninas. Disse que era chantilly, cortesia, um copo cheio só de chantilly. Não havia quando elas pediram suas bebidas. Agora que terminaram de fazer, ela achou por bem trazer-lhes um copo cheio e agradecer a paciência. Elas, encantadas com o copo que parecia coisa de criança, agradeceram e comeram de colherinha, rindo da lambuzeira, até enjoarem as duas.
Enquanto isso, eu tentei escrever. Foi rápido. Relativamente. Eu escrevo devagar. Mesmo esse texto curto. elas terminaram chantilly, provavelmente enjoaram antes de terminar, mais rápido do que eu digitei. Foram embora. Eu, em vinte minutos, já postava meu texto, cru, sem arte nenhuma, e me levantava para ir ao banheiro. Interromper cinema para ir ao banheiro não dá. Na saída do banheiro, voltei ao balcão pegar algo para beber no cinema ao invés do tradicional refrigerante com pipoca. Agora o chá que peguei foi quente. A sala de cinema é fria, tem ar-condicionado.
Apressei o passo pensando estar atrasado. Nem precisava, é muito perto, não fez diferença a pressa. O garoto na porta da sala (bilheteiro? lanterninha? ainda se diz lanterninha?) me cumprimentou errado: “Bom filme, senhor, bem vinda. Digo, bem vindo.” Eu já estava dentro da sala quando processei o que ele disse. Procurei meu lugar, Terceira fila, bem perto da tela. Eu gosto. Me concentro melhor no filme, vendo bem de perto. E ali, eu ia ficar bem apoiado na poltrona um pouco inclinado para cima, esticando as costas. Era uma boa fisioterapia.
Encaixei o chá no porta-copo do braço da poltrona. Sentei. Arrumei a mochila, pendurada no meu joelho. Havia algumas pessoas só, poucas. Uma mulher tagarelava muito algumas filas atrás de mim. A filha dela estava em Páris e ela precisava contar sobre a cidade antes que sua amiga, ou amigo, não olhei, visse no filme.
Ajeitei o corpo ao encosto. Ah! Que alívio! Muito melhor que chá! que café! sexo! que colo! que coçar urticária! Só quem já machucou as costas sabe como é. Não é uma dor que cause sofrimento. Mas incomoda os movimentos. Sem perceber, você se torce todo para tentar fazer as coisas e não consegue. Na poltrona do cinema não. Aquela poltrona era uma massagista, numa massagem que teria final feliz.
As luzes logo se apagaram. Pouca propaganda, poucos trailers, o filme começou. Me lembrei de colocar o telefone e o tablet em mudo. Não quero que me odeiem como odeio quem deixa telefone tocar no cinema. Como eu poderia me ofender com os outros se isso acontecesse comigo também? Ainda bem que me lembrei a tempo. Guardei tudo e me ajeitei de novo na poltrona.
A primeira cena do filme, achei-a estranha, escura, pesada, barata. Depois, logo em seguida, com a música, e, depois, com a apresentação da história, comecei a achar tudo muito bonito: fotografia, som, atuação, história, a música incidental. Vi outras cenas, de outras histórias, passarem, na minha memória. Em menos de cinco minutos, antes mesmo da música terminar, quando alguns nomes ainda passavam na tela, uma lagrima escorreu de um de meus olhos. Não a limpei. A luz estava apagada, ninguém me via.
Percebi que assisti tudo, ou quase tudo, sorrindo. Cara de bobo de quem pára de pensar só pra achar bonito. Percebi e deixei. O sorriso ali ficou, olhando a tela, atá a bexiga incomodar. Minha mania de chá. Olhei o relógio. Faltava ainda uma hora. Estava exatamento na metade do filme. Eu tinha de agüentar, estava muito bom. E agüentei.
O sorriso persistiu, por muito tempo ainda, enquanto a bexiga queria se revoltar. Esqueci-me dela, por longos momentos. Aquela lágrima do início há muito já havia secado. Agora o sorriso assistia, emocionado, o melhor e o pior que acontecia às personagens. Assistia assim, cruel, sorrindo, não importa o que acontecesse, encantado com tudo. Sorrisos encantados, persistentes, são assim cruéis. A culpa não é deles. A culpa é nossa por, tristes, nos ofendermos com o sorriso, em vez de abraçá-lo.
A bexiga apertou mais. No desespero, olhei, faltava quase meia hora. E o filme chegava a um momento que prometia. Abaixo do horário, o telefone acusava várias ligações perdidas e um SMS, mensagem indesejada. Eu não devia ter olhado, Maldito chá. Tem gente que procura de todas as formas um meio de incomodar e chamar a atenção. Parecem mosquitos procurando a fresta da veneziana pra incomodar o sono do casal que dorme feliz, cansados da noite, de conchinha.
A mensagem me distraiu, quase fez a bexiga estourar. Contrariado, o velho rabugento voltou a se manifestar em mim, saí para o banheiro pensando que perderia a melhor parte do filme. Da porta, olhei para trás, para a tela. Pelo choro do protagonista, estava perdendo mesmo. Saí, nervoso, irritado, com vontade de vomitar fel. Ainda assim, fechei com carinho a porta atrás de mim, com cuidado para não fazer barulho, nem deixar nenhuma fresta por onde passasse luz ou ruído que atrapalhasse os outros.
Fora da sala, parei na escada que leva ao banheiro, ele fica no subsolo, respondi o SMS e desci pensando se, depois, voltava. O frio dos azulejos do banheiro, azulejos velhos, feios, que destoam do resto do lugar, esse frio se refletiu todo em minha direção e me deu vontade de chorar. Choro sem o sorriso, expontâneo por hora e meia na frente da tela. Não chorei, só perdi a vontade. Triste fiquei.
Na volta, subindo a escada, não sabia se entrava de novo para ver o fim do filme. Deviam faltar ainda uns vinte minutos. Sem pensar, parei um pouco para complementar a resposta que havia dado à minha mensagem indesejada. Escrevi e enviei embora com a resposta a raiva que começava a aparecer.
Achei melhor não pegar o resto do filme. Não correr o risco de estragar tudo conhecendo o final que talvez não entendesse por conta do tempo no banheiro. Voltaria no fim-de-semana para rever o que tinha assistido e ver com calma o resto. Talvez outra lágrima escorresse e, depois dela, outro sorriso penetra aparecesse.
Ao menos, com essa saída, ainda tinha tempo de caminhar com calma até o metrô para espairecer e ter certeza de não perder meu compromisso.