Banho

Entrei no banho, é um dos momentos mais relaxantes do dia. Embaixo do chuveiro, sozinho no banheiro, água morna ou fria, dependendo do dia, da noite e da temperatura. Já tive banheira, tirei por causa dos problemas hidráulicos, vazamentos. O morador anterior instalou errado, ela vazava e infiltrava pela casa toda. Sinto falta de ficar deitado, ouvindo música, por mais de uma hora, quase dormindo, antes do jantar. Agora vou de chuveiro mesmo, é gostoso, mas tem de ser mais rápido. E não dá para deitar quase dormindo.

Meu banho tem uma seqüência certa: primeiro molhar a barba com água quente, espalhar o gel no rosto, ele também serve pra limpar os cravos. Fazer a barba. É coisa de preguiçoso fazer a barba à noite, acho que sou preguiçoso mesmo. Molhar o cabelo, passar shampoo. Cuidado pra não escorrer gel no olho. Espera três minutos, de olhos fechados, limpando a orelha. Enxágua, começa pela barba, com cuidado pra não espalhar toco de barba pelo corpo. Depois o cabelo, o rosto, tem que tirar todo o shampoo e todo o gel. Aí lava o resto do corpo com sabonete, de cima pra baixo. Cuidado nos pés pra não tomar um tombo. Enxaguar tudo pra tirar todo o sabonete. Desligar o chuveiro. Aí passar um gel ou óleo pro corpo — não precisa ser veado pra fazer isso, fica cheiroso depois — e esperar pra abrir de novo o chuveiro e enxaguar. No final é me secar com a toalha, gosto de deixar o cabelo bem úmido, passar o creme da babar, desodorante e colônia. Ah! Tem de pôr a roupa!

Este banho de agora, tem uma coisa estranha no meu pé, parece uma farpa, mas é sintética, preta. Encontrei quando lavava a sola do pé. Havia um esfolado, uma espécie de pele grossa, descascando, do tipo daquelas que minha madrinha lixava — na verdade, ela ralava, feito queijo — com a lixa de metal, a de madeira não dava conta. Quando ela terminava de lixar, ficavam sempre umas rebarbas levantadas, secas. Foi algo assim que eu encontrei na sola do meu pé, um pouco abaixo dos dedos. Mas era um esfolado pequeno, to tamanho de um calo. Não parecia de calo, muito fino, ao menos não de calo de homem. Bom, minha pele sempre foi fina, lisa. Não é por causa do gel não. Tomava banho com sabão ou sabonete vagabundo quando era criança, com bucha. Hoje em dia, as crianças nem sabem o que é bucha. Pensam que se fabrica, que é sintética ou de palha. Quando eu era pequeno, a gente pegava a bucha do pé, parece um chuchu gigante, comprido. Pendurava ela no sol até secar. O sol consome o líquido e a polpa rala, fica aquela esponja fibrosa, seca, que arranca a pele. A avó me ameaçava de banho de caco de telha se não esfregasse a bucha direito. Usávamos, de medo. Já então minha pele era fina e lisa. Macia, me zoam. Sempre tive inveja de quem tem a mão calejada. O esfolado até podia ter sido de um calo, um calo fino de minha pele frágil. Mas acho que não, acho que eu teria notado. Fazer o calo e pisar com ele até esfolar.

Ali não parecia ser calo, parecia uma farpa. Cutuquei com a unha, pra arrancar. Quase não tenho unhas, uso uma pra lascar a outra. Minha unhas são muito pequenas. Não servem pra nada, ainda mais moles do banho. Eu até que insisti bastante.

Lembrei de usar a pinça. Eu tenho uma pinça de sobrancelha, confesso também. Às vezes me nasce um pelo muito grande nela. Grande, grande, todo torto, de uma hora pra outra. Parece que, por troça, alguém me pegou distraído e me plantou um pentelho na sobrancelha. Por isso,meu deixo uma pinça à mão. Se tivesse unhas boas, usaria-as. Como não tenho, uso a pinça.

Fechei o chuveiro, senti na privada com a pinça. E toca, tentar puxar a farpa. Não sei como não sentia incomodar, pisar com ela ali. Era difícil de tirar. Forcei uma ponta da pinça como pá por baixo da farpa. Consegui levantar um pouquinho. O suficiente para tentar de novo com minhas unhas ruins. Não deu muito certo. Voltei à pinça. Não conseguia puxar. Com esforço consegui levantar, como me ensinaram no curso de primeiros-socorros. Melhor abrir um pouco mais a pele que deixar algo dentro. Levantei, cutucando com a pinça, para deixá-la espetada. Parecia maior do que uma farpa. Uma tripinha de plástico. Igual àquelas balinhas de alcaçuz, mais fina.

Levantei o suficiente para conseguir segurar com dois dedos. Aí puxei, não podia ser maior, era. Puxei pro outro lado, abrindo mais a pele. Consegui, ele foi abrindo a pele e saindo, igual se abre uma embalagem de biscoito. Aquelas que a gente puxa o fio vermelho e ele rasga a embalagem. Aquela tripa preta rasgou minha pele, não doeu, impressionante. Dizem que as primeiras camadas da pele são mortas, não têm sensibilidade. Deve ter sido por isso.

Fui puxando e ela foi me abrindo, como se eu fosse o pacote de biscoito. Como se eu tirasse o contorno de um desenho, como se eu fosse um desenho. Enervei-me e puxei o que sobrou com pressa, toda a volta do corpo, passando pelos braços, cabeça. Ao terminar, percebi que, como desenho sem contorno, exatamente como desenho sem contorno. Perdi a forma, as partes de meu corpo se misturavam. Admirado, parei olhando. Vi meu corpo se desmanchar aos poucos, escorrer sua tinta para o chão molhado. Misturado à água, escorrer pro ralo.

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