Zíper

 

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Acordei pela hora do almoço. À noite bebi muito, muito mesmo. Bem mais que o usual, que já é muito. As vezes as pessoas bebem para esquecer o que lhes deixa triste. Há os que bebem por costume, sem razão, ou talvez estejam constantemente tristes. Eu tenho o costume de beber meu uísque antes de dormir. Não em casa, sozinho. Quem bebe sozinho é alcoólatra. Bebo no clube, com os amigos. Clube é como chamamos o bar. Bar mesmo, não boteco. É o bar de um hotel perto de casa. Passo lá umas quatro vezes por semana, quando não tenho nada melhor para fazer. Às vezes passo também depois de fazer algo melhor. Outras vezes não passo, e não me faz falta. Lá, vão os tios, nós tios, que não têm com quem jogar vídeo-game à noite, ver novela, irmão cinema, essas coisas inúteis a que nós acostumamos por conveniência. Ao invés disso, vamos ao bar, ficamos sentados, em poltronas isoladas, por horas, com o copo na mão, olhando quem passa. Às vezes até conversamos, mas o assunto tem de ser muito bom e oportuno. O copo nunca pode chegar à metade. Corre-se o risco do garçom enchê-lo de novo. Ali não é lugar para se ficar bêbado. Um copo só, e beber sempre menos da metade. Quem vai ali beber, não vai para beber. Vai para ficar ali e olhar, em vez de ficar em casa, e não te o que olhar.

Ontem fiz algo diferente. Não sei se foi a bebida só ou algo mais forte, ou só algo diferente. Talvez tenham me dado algo. Alguma daquelas coisas que eu nunca quis experimentar. Talvez eu tenha pedido alguma dessas coisas ou feito alguma outra coisa. Dormi muito. Ou melhor, dormi até tarde. Não me lembro de quando me deitei. Podem ter sido só cinco, vinte minutos de sono e agora não me lembro. Não me lembro de nada depois de ter entrado pela porta giratória do hotel.

Lembro de ter ido para o hotel angustiado, eu sei bem com o quê. Não podia ter companhia para desabafar, não podia. Só podia contar a meus pensamentos e, mesmo assim, só quando já tivesse me preparado com algumas bicadas de uísque. As pessoas que iam e vinham, o faziam a calhar. Eram os parceiros imaginários ideais, desconhecidos, para a conversa que eu fantasiaria em minha cabeça, sentado ali, fazendo cara de homem maduro que não precisa de ninguém e a ninguém deve nada.

Lembro de fazer força para que a porta começasse a girar. Ela é pesada, é preciso esforço para anular a inércia, mas depois disso ela roda fácil, sozinha e pesada por um tempo. Para pará-la antes sim, é que se precisa de esforço de novo. Quando ela começou a girar, fui por ela, desequilibrado, mas em pé, andando. Desequilibrar-se é conseqüência do empurrão, todos que a empurram se desequilibram, mas a própria mão apoiada nela, empurrando, os apóia e sustenta para que não caiam. Isso não era novidade para mim. Novidade foi, ao ir pela porta, sentir-me como que abraçado por ela. Como se dentro dela existisse algo que me envolvesse. Algo que me levasse a outro mundo. O furacão da Dorothy talvez. Talvez aquele furacão que a levou do Kansas para Oz fosse o de uma porta-giratória rolando. Uma porta como a do hotel. Talvez o bar do hotel seja um castelo de Oz. Onde estaria a estrada e os tijolos amarelos?

Depois se estar na porta-giratória, vem o esquecimento. Total. Fui pela porta, à noite, e acordei, na hora do almoço. Como se fosse um filme editado, sem nada entre as duas cenas, além do subentendido. O que pode estar subentendido nisso? Acho que só quem realmente conhece minha história pode saber. Pelo jeito, eu mesmo não conheço. Não encontro nada entre essas linhas. Esqueci-me. De tudo. É de coisas ruins que nos esquecemos? Ou das constrangedoras e das traumáticas? Acho mais útil que se esqueçam as constrangedoras. Elas o são mesmo a cada vez que nos lembramos delas. Traumas e coisas ruins nos fazem crescer. Talvez mais as coisas ruins do que os traumas. É questão de como nós lembramos, de como pensamos nisso, de como falamos, e para quem. Talvez, sobretudo, de quem temos para conversar.

Agora que acordei, este pedaço de minha memória que falta, não me faz falta. Intriga-me, é curioso, mas não me faz a mínima falta. Pelo contrário. Embora saiba que dormi muito, que suspeite ter sido, ou ter-me, dopado, sinto-me, e isso é involuntário, sinto-me muito bem. Leve, realizado,livre. Algum peso tirei de cima de mim. Qual peso? Não me lembro, mas não serei eu a me punir por não saber o motivo de meu bem-estar. Aproveito-o. Aproveitarei-o, por quanto durar. Que seja eterno, que só melhore.

Tenho os olhos abertos já há alguns minutos, pensando nisso. Só agora me dou conta, este quarto não é o meu. Não. Não estou noutra casa. Estou em casa, em meu quarto, em minha cama. Mas este meu quarto e está minha cama não são os meus. E mesmo assim, sei que são os meus.

Há-de me perdoar a confusão que talvez lhe cause, ou lhe tente, mas imagine como é partimos também, ter a consciência de algo, mas não conhecê-lo. E suspeitar, saber, que o ignorado que aconteceu é o motivo. A confusão que causo é a confusão em que estou. Espero causar também o bem estar que sinto.

A cama em que deito, a roupa de cama, a decoração do quarto, não se parecem com nada em que me deitaria. Mas me deitei e são meus, eu sei, não sei como. Sei também que há no banheiro alguém com quem nao me deitaria, mas deitei. Fiz na noite de ontem, coisas que nunca faria.

Levanto-me. Vou à janela. Esta é minha janela, mas não é a vista que tenho. Pelo contrário, muito melhor, é a vista que sempre quis ter. Quando comprei este apartamento, procurava algo à beira do lago, com vista para o lago, e para a serra ao fundo. Não encontrei. Não há nada assim por aqui. A cidade me cerca e cobre tudo. Não poderia encontrar. Mas cá está. A vista que sempre quis. O lago, a serra, lá embaixo o passeio, o pôr-do-sol ao meio dia. Lá está tudo, real e perfeito. Real. Perfeito. Como eu sempre quis. Passo minutos olhando, não acredito. Belisco-me. É real. Ou não sou eu real? É real.

O quarto, sei que é o meu. Não vejo o meu, nada está igual. Nada é como era, como o decorei, como o deixei. Mas é o meu. Reconheço-o. É como deveria ser. Tenho medo. É tudo muito diferente. Só pode ser armadilha. Se algo é muito perfeito, muito como quero, só pode ser armadilha.

Por um instante, acredito neste bem estar, aceito-o. E ponho meu destino nas mais do destino. O que quer que tenha acontecido. O que quer que aconteça. Estou gostando, não vou lutar contra. Por muito tempo lutei. Agora aceito e me entrego.

O chuveiro já está desligado. Logo confirmarei, diante de meus olhos, quem lá não deveria estar, mas está. Está, e estou eu muito feliz por isso. Ganhei o mundo. Ganhei meu mundo. Finalmente, meu mundo meu.

Ponho-me em frente à porta do banheiro, esperando, pronto para o abraço, quente ou frio, segundo a temperatura do banho. Ninguém mais manda em minha vida, não serei eu a mandar no banho de ninguém. Fico, aqui à porta do banheiro, esperando o abraço e o beijo. E tudo o mais, feliz. Leve.

Esta espera é um sonho. E é esperando assim que olho para o lado e encontro o espelho. Meu velho amigo espelho está lá, o mesmo. Nele, não estou eu. Estou, mas não sou mais eu. Reconheço-me, mas sou já outra pessoa. Alguém — eu? — despiu-me desta mentira que me fantasiava. Este não sou eu. Mas sou mais eu. Estou aqui. Finalmente.

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